A história das pessoas solitárias
Está vendo aquela garota sentada ao lado das flores? Preste atenção ao modo como seu rosto se vira ligeiramente para os jovens conversando adiante. Ela quer olhá-los, deseja ardentemente poder encarar o modo como suas bocas se movem felizes em uma conversa, ela deseja saborear cada movimento de suas mãos e de seus corpos felizes. Mas tem vergonha demais de encará-los de frente, despudorada. Vira os olhos e finge que não vê.
Ela é um deles, uma solitária.
E o rapaz que se encontra no meio da multidão sem ter ninguém com quem conversar? Pode ver o seu rosto, que tenta disfarçar a dor o máximo possível, tenta sorrir e dizer a todos que não está sozinho, que está contente como todos eles. Ele anda pelo salão segurando um copo e vai de conversa em conversa buscando um lugar para ficar mas acaba se levantando em poucos minutos sem dizer nada.
Quem vai se lembrar dele no dia seguinte? Quem vai saber quem ele é?
E o homem que não consegue dizer para ninguém que está apixonado? Seus olhos pulam de um a outro de seus amigos mas ele não encontra ninguém para dizer o que sente; ele está sozinho porque não sabe como falar.
A mulher que está em casa e de repente percebe que não tem nada para fazer. Vai passar outro dia com seus pais, assistindo à televisão antiga e lendo revistas velhas. Ela percebe tarde demais que não há ninguém para sair com ela, ou estão todos ocupados ou não existem, e ela se sente burra demais por não saber onde ir. E se ela sai na rua, de repente se vê olhando para o caminho, para os carros, para as lojas fechadas e os supermercados lotados. Se eu pegar este caminho vou dar em tal lugar, ela pensa, mas não consegue econtrar nenhum motivo para ir aos lugares onde ela pode (mas não deseja) chegar. Volta para casa e se deita na cama, desejando que este dia passe depressa demais.
E o rapaz que, muito desesperadoramente, descobre que não consegue estar sozinho no meio de uma multidão.
Consegue ver os rostos solitários que despontam levemente dos outros pela sua tristeza? E se tivéssemos olhos capazes de ver o invisível, veríamos o quê separando-os de todos os outros?
Todos eles estão juntos, porque pertencem ao mesmo mundo secreto que se esconde atrás de nossas vidas. Juntos e separados, não é curioso? A irmandade mais dividida que existe; sentem todos a mesma coisa e não podem se ajudar.
Afinal, o que os separa dos outros?
A história do homem que não sabia como viver.
Via a xícara de chá e se entristecia. Tudo era um sinal, tudo significava alguma outra coisa.
Como ele conseguiria viver neste apartamento em que qualquer um dos objetos lhe dizia sempre a mesma coisa repetidas vezes, bastando que olhasse para eles?
O armário verde do canto. O fogão, no qual cozinhava seu almoço frugal. A estante cheia de papéis até o topo, todos os seus textos antigos e embaralhados que não sentia a menor vontade de ler.
Cada uma destas coisas lhe falava em tom baixo, porém pungente. E ele escutava resignado, como se não lhe restasse alternativa senão existir em meio a eles.
- Gostaria de ser alguma outra pessoa - ele dizia a si mesmo - Alguém para quem uma xícara de chá é apenas uma xícara de chá, e não o retrato vivo de alguma calamidade.
Uma calamidade tão grande que o arrastara para esta nova existência, muito distante da que levara até então. Antes era... bem, se não feliz, ao menos quase. Ou deveria ter sido. Porque, comparada à esta nova vida, ele tinha certeza, a antiga não era nem um pouco tão ruim quanto esta. Atravessara sem querer uma linha. Era um homem para quem o futuro e o passado adquiriram, do dia para a noite, uma nova configuração. Perdera tudo o que tinha em um instante - sua memória foi totalmente alterada, tudo o que ele pensava era o seu oposto. E quem perde a memória, perdeu-se no tempo.
Por isso a estante de textos antigos fechada. Ele não ousava abrí-la para contemplar o homem que tinha sido até então. Tão ingênuo, tão... se não feliz, ao menos próximo disto.
A estante dos papéis era a que falava mais alto, a que lhe jogava realmente na cara tudo aquilo que mudara. Ao se transformar em um novo homem, ganhara inclusive um novo passado, que não era aquele no qual escrevera os textos ali guardados. Por isso seu medo de se encontrar de novo com as ilusões da antiga vida.
Seu apartamente se transformara em um limbo, no qual as coisas, perdidas no tempo, não podiam continuar - como saber para onde? A vida é o pior tipo de labirinto possível: aberto e sem paredes, como o mar. Se não há caminho, avançar se torna nada. O que ele deveria fazer? Abria a janela na esperança de um sinal. Às vezes as nuvens nubladas eram enormes. Às vezes a cidade irradiava um céu vermelho. O que isso quer dizer? Como entender o que eu vejo?
O que é isso?, ele sentia vontade de perguntar.
Como as pessoas podem continuar vivendo? Elas entendiam o céu? Entendiam o azul de algumas tardes, o bramido da chuva, o vento batendo naquela árvore?
E por que ele não entendia? A estante estava lá, como quem parece oferecer uma resposta, mas é uma resposta destinada a um outro homem que ele não é. Só aquele homem seria capaz de decifrar os sinais escondidos e sorrir diante dos mistérios revelados naqueles textos. Somente aquele homem poderia extrair um caminho daquele passado e ele não podia mais porque fora arremessado para fora de tudo aquilo e sonhava, nas noites insones, que quase podia ver um outro ele, alguém que fosse exatamente como ele havia sido um dia, que entrava em seu quarto sem dar por sua presença na cama e abrisse o armário dos papéis, lendo-os um por um e sorrindo diante de seu sentido que, ele sim, podia compreender e dali tirar alguma esperança.
- Quero ser outra pessoa - ele dizia a si mesmo, sem saber quem queria ser, sem ter um futuro, sem conseguir voltar atrás.
A história da mulher que ficou
As cores vibrantes do entardecer estavam encobertas pelas nuvens. A mulher em cima da plataforma não se importou de ver a noite cair, mesmo sabendo que na ilha em que morava aquela era a hora em que os espíritos e fantasmas saíam para passear. Para ela, nada importava. Ficar ou ir, morrer ou viver, quem sabe qual realmente é a diferença?
Ela queria muito viver uma aventura. Quando não viveu nada, a decepção a atingiu com força.
Um dia ela acordou pensando. Não sinto mais vontade de viver. Viver é uma tristeza e uma chateação, ela se viu dizendo enquanto olhava o teto sobre sua cama.
Mas não tinha coragem de tirar a própria vida. Então iria dedicá-la a algum projeto insano que levasse certamente à morte. Ela imaginava a si mesma cavalgando em um corcel em meio às setas e maças inimigas, luzes brotando por entre a fumaça de batalha. Esssa seria uma morte fantástica! Se ela dedicasse sua vida a algum caminho destes, estaria satisfeitas. Sem coragem de fazer fluir seu próprio sangue, deixaria que os outros o fizessem.
Sem medo, permaneceu na plataforma marítima, esperando que algum fantasma ou espectro a cercasse. Ou algum outro habitante da ilha poderia aparecer com uma arma na mão e ameaçá-la. Encarar o fundo do cano de um revólver, aí estava seu desejo! Levar o navio direto de encontro à tempestade onde raios espoucavam de segundo em segundo, entregar-se a um único e válido instante de gloriosa felicidade.
O Vento Escuro da Noite, único espectro acordado naquele crepúsculo nublado, viu com interesse a nulher se decepcionar novamente com sua sina vazia. Ele sabia que naquela noite seu desejo não seria satisfeito: estavam todos os fantasmas ocupados com um chamado e os homens da ilha dormiam todos. Observou-a pender aos poucos a cabeça para a frente. Escureceu completamente e velado assim aproximou-se.
Ela adormecera sobre a plataforma, indiferente ao bramido do mar.
Ele soprou ao seu lado e deixou-a descansar em seu colo.
- Permita-me.
ergueu-a devagar, sorriu com seus dentes cintilantes, único brilho na noite escura. Pôs seus pés de vento na água e paulatinamente foi descendo e descendo para dentro do mar, carregando consigo a mulher que ficara na plataforma. O vento escuro soprou para dentro do mar naquela noite, levantando ondas e espuma, encharcando a plataforma vazia na ilha onde dormiam os homens que não se levantaram com suas pistolas naquela noite.
sábado, janeiro 10, 2009
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