quinta-feira, novembro 30, 2006

pequeno símbolo de uma gota

Piratas, monstro marinho cantando a canção de solitude. Quando os tritões pensaram-se perdidos em meio á tempestade, quando comandante Francis vencera a batalha, quando Mizudinie não pôde defender Luna sozinha, um tiro de canhão ecoou na noite fria. Outro Francis, outro mundo. Navio.

Do alto de Luna, no campanário do templo de Kan Dui, Neyleen imita a canção que ouvira do mar. Tentáculos, batalhas navais, sentimentos.
Mizudinie respira devagar, apoia-se em Cleena Tétis, as duas se olham temerosas. Ouvem o monstro cantar, seguindo a canção de Neyleen.
Prisão, fôrca, destino, grilhão, batalha, remorso.
Mar azul, azul... escutar o grande monstro cantar com toda a dor; rodemoinho, maremoto.

Francis, o pirata e vê na vantagem contra Francis o comandante. Navio emborcado, canhões em posição.
Água, água

Chove pesado sobre Luna, quando Mizudinie luta com tudo pela sua liberdade.
Água,
água,
água.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Uma idéia de história

Assistindo um dia a um programa de Tv na rede Cultura, uma idéia me pegou. Foi assim, de jeito. Quero falar algo sobre o qual venho pensando faz alguns meses.
O programa era "O Poder do Mito", com Joseph Campbell sendo entrevistado por Bill Moyers. Sim, é o programa que originou o livro que estou lendo. Afinal, lendo, cheguei na parte interessante que ouvi na Tv faz um tempo. Transcrevo agora:

Moyers: Um dos meus mitos favoritos é uma história persa, que diz que Satã foi condenada ao Inferno porque amava demasiado a Deus.

Campbell: Sim, essa é uma idéia básica do islamismo, a de que Satã é o maior dos amantes de Deus. Há várias maneiras de pensar em Satã, mas esta se baseia na questão: Por que Satã foi lançado ao inferno? A históra convencial diz que, tendo criado os anjos, Deus disse-lhes que não se curvassem senão diante dele. E então criou o homem, que ele concebeu como uma forma mais elevada que os anjos, pedindo a estes que o servissem. E Satã não se curvaria diante do homem.
Pois bem, isso é interpretado na tradição cristã como sendo o orgulho de Satã. Ele não se curvaria diante do homem. Mas, na história persa, ele não se curvaria diante do homem por causa do seu amor a Deus; ele só se curvaria diante de Deus. Deus mudou os sinais, você percebe? mas Satã estava tão envolvido com o primeiro conjunto de sinais que não poderia transgredi-los, e em seu... não sei se Satã tem ou não um coração... mas em sua mente ele não podia curvar-se diante de ninguém, exceto Deus, a quem ele amava. Então Deus diz: "Saia da minha vista".
Bem, o pior dos padecimentos do Inferno, a julgar pelo que sabemos dele, é a ausência do Bem-amado, que é Deus. Então, como Satã se mantém no Inferno? Pela memória do eco da palavra de Deus, que lhe disse: "Vá para o inferno". Isso é um grande indício de amor.

Moyers: Bem, na vida, não há dúvida de que o pior dos infernos que alguém pode suportar é estar separado de quem ama. Por isso me tocou o mito persa. Satã é amante de Deus...

Campbell: ... e está separado de Deus; essa é a sua verdadeira dor.


O que eu imagino ser esta história é o seguinte: o inferno de Lúcifer é não ser amado. Aquém das noções de tempo e vida após a morte, vamos considerar que Paraíso e Inferno sejam aqui, neste momento.
Ser amado e amar nos leva ao Éden; ter cortados os elos que nos ligam aos outros é a condenação total. Falo em amor, e quero dizer o sentimento de um modo amplo:
Amor por um pai, por irmãos, por amigos, por namoradas, por desconhecidos, por um lugar etc.
Amar algo é abrir-se para algo. É perder os limites e as barreiras e ser um onde antes havia "dois", havia "bem e mal", havia separação.
(Isto seria pensar um pouco como Ipásia talvez?)
Shaitan (forma islâmica de Satã) ama sem limites, mas é um amor barrado, rompido, irrealizável (afinal, como ser amado pelo Criador total, o Uno supremo?). Isso cria o Inferno, onde, ao invés do fogo, nós temos a fria solidão, a desesperança total, a falta de tudo.
Curiosamente, outro dia encontrei um poema do William Blake que falava sobre o que, para mim, era a mesma coisa (desculpe por ele ser em inglês):

The Clod & the Pebble

Love seeketh not Itself to please,
Not for itself hath any care;
But for another gives its ease,
And builds a Heaven in Hells despair.

So sang a little Clod os Clay,
Trodden with the cattles feet;
But a Pebble of the brook,
Warbled out these metres met.

Love seeketh only Self to please,
To bind another to its delight:
Joys in anothers loss of ease,
And builds a Hell in Heavens despite.


William Blake

Tradução livre: O amor busca prazer não para Si / Nem a si mesmo tem cuidado / Para outro dá seu bem-estar / E cria um Paraíso no desespero do Inferno
Assim cantou um pedaço de terra (ou chão, ou lama) / Amassado pelos pés do gado / Mas um seixo do riacho / Cantou os seguintes versos bem certos.
O amor busca apenas a si felicitar / Prender o outro a seu deleite / Goza em ver o outro no mal-estar / Cria um Inferno do desprezo do Céu.

Falando rapidamente, o amor que o Clod of Clay (chão de lama) canta, é o amor realizado, ou o amor abnegado, que busca apenas amar e se felicita ao abrir-se para o mundo. É o amor que cria o Paraíso em nós, que nos enche de esperança e acaba com o desespero do Inferno.
Já o amor cantado pelo Pebble (o seixo) é o amor que busca possuir (não sei se está correto dizer assim, mas é o que pensei), que busca prender e firmar ao invés de libertar. O desprezo do Céu, a recusa de Deus em amar Shaitan de volta, o amor que não consegue existir, se torna então o Inferno.
Satã está preso porque ama demais algo que... não está ali. Algo que não pode ser preso em palavras ou ações. Lúcifer não pode amar Deus porque nada pode amar Deus. E isso o prendeu ao Inferno, onde é sempre desesperador e desolado, sem nada a iluminar a sua dor.
Um pouco paradoxalmente (mas é só impressão) o que pode salvar Lúcifer é justamente o Amor. O Amor que abre e liberta, que cria o Paraíso no meio do desespero.

Talvez, mais do que tudo, é disso que a gente precisa.

Moyers: Gosto do que você diz sobre o velho mito de Teseu e Ariadne. Teseu diz a Ariadne: "Eu a amarei para sempre, se você me mostrar como sair do labirinto". Ela lhe dá então um fio enrolado, que ele vai desenrolando à medida que penetra no labirinto, e depois o segue de volta, até encontrar a saída. "Tudo o que ele tinha era o fio. É tudo quanto você precisa".

Campbell: É tudo o que você precisa, um fio de Ariadne.

Termino com uma fala de uma personagem chamada Penélope do (eu sei, é esquisito) seriado Lost. (Por sinal, foi essa personagem que me deu vontade de criar a Penélope do Sark)...
"All we really need to survive is someone that trully loves us."

terça-feira, novembro 14, 2006

Por que não estás onde estou?

Sabem, o que vou dizer agora é blásfemo e proibido. Mas é algo que tem me incomodado muito esses dias e não acho a solução. Qualquer que seja a solução - ela pode não existir.
Se bem que devemos considerar que a resposta provavelmente será algo como "Deus não existe". Mas isto também me incomoda: para mim o ateísmo é uma religião.
Escutem, o que eu gostaria de perguntar é: onde está Deus no mundo?
E tudo começou quando conversávamos com um garoto que não havia passado em uma prova. "Na próxima eu passo" ele disse, ao que outro cara adicionou: "Se Deus quiser a gente passa".
Algo me bateu nessa hora: o que tem Deus a ver com passar ou não? É Ele quem escolhe o que vai acontecer? Imediatamente pensei: "Não, Deus não controla o nosso destino. Senão, para quê estudar para a prova? Deus é quem vai decidir se a gente passa ou não, a gente não tem nada a ver com isso. Posso responder tudo errado, mas se Deus quiser, Ele faz uma magiquinha e tudo fica bem."
Assim, pensei, Deus não está no controle dos nossos destinos. Ele não manda em nós, não pode nos controlar (vide Adão e Eva).
Bom, então digamos que Deus é um ser inserido no tempo, sei lá, vamos imaginar. Ele pode mudar alguns eventos, mas não entrando em nossas cabeças e nos fazendo fazer coisas. Ele pode, sei lá, colocar uma luz em uma floresta escura para ajudar alguém perdido, colocar um galho ao alcance do afogado, afastar a doença de algum bebê, esses milagres de sempre...
Então Deus pode evitar problemas, ele tem o poder de influenciar-nos e mudar a direção de certos eventos. Então, porque não impedir as guerras, as chacinas? Sei que não há como ele mudar a idéia fixa de destruição na cabeça de um certo general, mas ele poderia proteger os chacinados com tempestades de areia, ferrugens nos tanques, aqueles truques impressionantes do Velho Testamento. Ouço alguns falando "Deus me iluminou e me ajudou a ver que o (insira problema de vida aqui) era um caminho ruim. Agora fui salva por Jesus!" Ok, Jesus salva pessoas de (insira problema de vida aqui) mas deixa as crianças entrarem no ciclo do tráfico de drogas, carregando metralhadoras. Onde está Deus ali? Quem sabe é isso o que acontece com as pessoas que rejeitam o caminho divino? Não sei, não sei...
Ao fim e ao cabo, Deus não tem lugar aqui. Eu olho para o céu e vejo que ele não está lá. Simplesmente não consigo entender uma força onipresente que decida nossos destinos, que tenha poderes sobre nós. E se for o caso de alguém dizer que ele não tem poderes sobre nós (somos livres), ou que não cabe a Ele criar tempestades para evitrar guerras então me digam: para que serve Deus? O que afinal ele faz no mundo? Só existe? Só está lá? Então não há motivo para rezarmos, para irmos aos templos. Não há motivos para crermos em Deus, ele não pode nos ajudar mesmo.
O que quero dizer é que a sociedade está mudando. Agora já não há mais lugar para Deus, o ateísmo se espalha com rapidez. Se a modernidade tirou a Terra do centro do universo a Era contemporânea deu um passo à frente e extinguiu Deus.
Venho imaginando, cada vez mais, que Ele é apenas uma invenção humana. Um recinto seguro para onde se voltar em épocas de problemas. E não há nada errado com isso! É absolutamente humano e natural crer em algo maior. Tenho até um pouco de preocupação ao ver as pessoas "matando" Deus, profetizando seu fim. Porque o ser humano precisa de religiões, precisa de fé. Como eu disse, o ateísmo é uma religião também, tem ritos e dogmas e visões de mundo. Sentir-se seguro ao rezar é o ato mais humano possível, é desejável até. Confesso, não sem um certo embarasso, que por mais que não acredite em Deus já rezei a Ele em certas ocasiões.
Talvez Deus esteja lá, mas seu pensamente é tão diferente do nosso que não podemos compreender. É claro que ele não pode parar as guerras que estão acontecendo: para ele elas já foram, ou ainda serão. A vida humana é vista de um todo, um mesmo instante. Se eu fosse uma criatura onipotente e onipresente eu... Não sei o que eu faria, mas não me preocuparia de modo algum com o resultado de uma prova. Talvez. Eu não acredito em Deus do modo como as religiões o apresentam, eu não consigo entender algo assim no mundo.
Salman Rushdie disse que o espaço para Deus é um espaço para sonhar. Um dia eu entendi o que isso queria dizer, mas agora esqueci; hoje só sei que faz sentido. E sonhar é algo que sei fazer. Talvez seja saudável resgatar os mitos e a espiritualidade que o mundo contemporâneo esqueceu.
Quem sabe até mesmo Deus esteja em algum lugar por aí.

segunda-feira, novembro 13, 2006

A tristeza de Angkor Wat


- O que as pedras falaram? - perguntou Mizudinie, sentando-se ao lado da arqueóloga.
- Não sei ainda, não ouvi nenhum sussurro - respondeu Hoshy abaixando o caderno. - Não sei o que há de errado aqui, mas não sinto aquela curiosidade em descobrir o que há por trás. Como se as pedras quisessem ser deixadas sozinhas.
- O passado quer descansar. Vocês historiadores estão sempre tentando acordá-lo e revive-lo - sorriu Mizudinie - O que você acha deste templo?
- Até agora conheci o observatório, onde eles desenharam as constelações no chão, a sala de audiências onde o grando rei Khmer recebia seus convidados e os porões onde eram torturados os prisioneiros. Às vezes a fantasia é melhor que a realidade. Eu gostaria que este templo e o palácio fossem apenas lugares incríveis, sem ter que me lembrar de todas as crueldades e problemas que aconteceram em seus corredores escuros.


Hoshy tenta, ao fim, se lembrar de coisas que não existem mais. O que resta das pedras senão a sua tristeza e vontade de ficarem em silêncio?
O que resta das pedras senão seu nome de pedras? O que antes era tomo, chave, portão, estátua, banco, marca, agora se mistura e fica tudo uma coisa só, com aparência de tempo e noção desconhecida.
As estrelas dos khmer não tem mais seus nomes hoje. O som se perdeu. As coisas se perdem.
Onde estão, neste labirinto de pedras, os sons pronunciados nos cumprimentos de vizinhos, ou nos rituais de encantamento, para que o mundo ficasse de pé.
- Hoje em dia nós não temos rituais para mantermos o mundo de pé - comentou Hoshy - e calmamente suspiramos nossas vozes sem saber que elas também sumirão no tempo, ficarão vazias e cessarão de existir.
O tempo é uma ilusão, disse Buda.
Khmer está aqui hoje, junto à Hoshy e Mizudinie no portão. Charles escreve enquanto a guerra primitiva se desenrola. Ao mesmo tempo o homem descobre o fogo, o garoto descobre o amor e a arqueóloga a câmara subterrânea.
Se estamos todos no mesmo tempo, porque a tristeza no sorriso da estátua?




O Anjo de Puerto Sol



Quando o furacão subsistiu e se acalmou, os habitantes de Puerto Sol foram saíndo de suas casas e esconderijos para ver a cidade destruída. José Horácio, o carpinteiro, se viu preso por sob os escombros de sua casa, sem conseguir sair.
Sua filha Maria correu para buscar ajuda. O que viu pelas ruas foi o medo e a surpresa estupefata dos cidadãos diante de uma tragédia tão irreparável. Muitos ainda não acreditavam no poder desencadeado pela Rainha e olhavam assombrados o que sobrara da cidade colorida.
Maria passou correndo pelo padre Miguel e pelo coronel aposentado. Foi direto para onde Hoshy estava deitada atõnita e pediu-a:
- Ajude-me Viajante. Meu pai está preso sob as madeiras.
A historiadora assentiu, sem palavras diante da força do vento destruidor. As duas correram pelas ruas de volta até a orla de núvem onde antes havia uma casa branca.
- O que houve? - perguntava José Horácio - Quando que pecamos tanto para merecer um castigo assim?
Hoshy calou-se de raiva pelos atos crueis que a Rainha demonstrara. Maria mandou chamarem muitos homens para levantarem as madeiras para ver se podiam retirar o carpinteiro ali debaixo.
Depois de várias tentativas comandadas por Hoshy, os cinco irmãos José e Teobolt largaram cuidadosos a grande viga que segurava o pobre homem ao chão.
- Ai Deus! Ajude meu pobre paizinho, por favor - rezou Maria.
Pouco tempo depois chegava do céu o mensageiro divino trazendo um milagre. Era Etlyr que assistira à tragédia do alto, que falhara em sua luta contra o furacão. Arrasada, ela descia para desculpar-se perante Puerto Sol, quando viu Hoshy acenar.
José Horácio conta até hoje aos seus netos a história. Quando se sentia preso pela viga e pronto a encomendar sua alma de volta ao Criador, uma luz se acendeu e brilhou em seu rosto.
Ao olhar para cima ele viu a mais magnífica presença descendo em sua direção.
- Minha Nossa Senhor da Conceição! ele gemeu enquanto a figura branca tocava de leve sua mão, com o olhar mais puro e mais doce que ele já vira. Era um olhar sobrenatural, ao mesmo tempo alegre e triste, capaz de curar todas as dores.
Com a maior das gentilezas, quase sem fazer nenhuma força com sua pele de vidro, a mulher luminosa puxou-o para fora dos escombros, sem nenhum arranhão, sem nenhuma dor, sem esforço algum
As núvens estávam douradas no céu, enquanto a aparição ia deslizando pelas ruas, concertando tudo o que havia de errado no mundo. Sua existência era certamente a contraparte luminosa da Rainha, ela era o anjo iluminador de asas douradas, a Piedade. Quando ela andou pelas ruas todos estivemos bem.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Prólogo

Era uma vez uma terra onde não havia nem Sol nem Lua. Os dias e as noites se alternavam repetidamente monótonos, sem nenhum astro a brilhar lá em cima. Claro, escuro, dia, noite, azul, estrelas. A alternância permanecia, mas sempre com a ausência: Sol e Lua haviam sido roubados há muitos e muitos anos.
O nome desta terra era Kyzywky, e seus habitantes, cansados de viverem em um dia claro, porém cinza, e nas noites ecuras, porém assustadoras, começaram a inventar lendas e histórias, esperando que algum dia voltassem ao céu os raptados astros. A história favorita destes habitantes era a lenda dos Escolhidos.
Dizia essa lenda que muitos e muitos anos atrás as Trevas chegaram a Kyzywky e os deuses foram raptados e aprisionados. Principalmente o Deus Sol e a Deusa Lua, que nunca mais passearam iluminantes pelo céu. Era preciso então que alguém resgatasse os deuses e os trouxesse de volta a Kyzywky; mas seriam necessárias pessoas especiais, com poderes vindo direto do panteão mítico e celeste, capazes de controlar os elementos. Essas pessoas, que seriam selecionadas pelos deuses diretamente de seus cativeiros, foram nomeadas de Escolhidos. Era preciso que os escolhidos voltassem, afirmavam as pessoas que passaram a esperar.
Em Kyzywky essa lenda circulou durante muito tempo, até que novas religiões foram inventadas e as pessoas resolveram que haviam coisas mais úteis para se fazer. Demorou muito tempo sem que nada acontecesse, e logo a lenda virou lenda, virou estória, e ninguém mais queria saber de sair em busca de poderes divinos para resgatar um certo Sol e uma coisa chamada Lua, o que quer que fossem isso. Tudo do passado foi deixado no passado e uma nova sociedade, acostumada ao céu cinzento, se estabeleceu.
Era uma vez ou não era. Talvez tenha existido ou foi tudo inventado. Quem sabe o que está além da nossa memória?
Um dia, (ou talvez nunca) uma história começa, e é uma história que acredita nas histórias antigas de Sol e de Lua. Ela começa em uma cidadezinha pequena, chamada Hinée, onde as pessoas eram tranqüilas e onde moravam três pessoas que se tornariam personagens desta narrativa.
Porque aqui se inicia uma história diferente e esquecida. Sobre o Sol, a Lua e sobre Kyzywky.
Era uma vez:

terça-feira, novembro 07, 2006

Luck? Nimb? Not for me...

- Fomos passar o dia no Jóquei. Era almoço de aniversário da Carol, ela chamou amigas e tal, foi divertido. Bom... Exceto pela parte em que eu e a Gabi (amiga da Carol) descobrimos que somos verdadeiros azarões na hora de apostar em cavalos. Resolvemos decidir (de brincadeira) qual cavalo ganharia a cada rodada. Depois de um tempo perdendo, resolvemos levar a sério. Ok, vamos olhar bem para os cavalos, prestar atenção, seguir os instintos. Uma hora a gente ganha.
A Gabi escolheu o cavalo nº4. Parecia bom, era rápido, ganhara antes. Eu escolhi o cavalo nº1, chamado de Almirante. Almirante! Que nome legal...
Começa o páreo, todos olhamos ansiosos. E qual cavalo sai na frente? O nº4! Gabi, você não tem mais azar! O seu cavalo está na frente. Vai lá nº4!
A corrida continua e os cavalos aceleram. A Gabi, um tanto confusa vê o seu 4 perdendo posições. Segundo... Terceiro... Quarto... Quinto... E achávamos que o azar tinha terminado!
No final o cavalo da Gabi chegou láá atrás.
E o meu? Boa pergunta, e o meu?
Depois que todos os cavalos passaram, procurei pelo nº1. Cadê? Ele não correu?
Todos os cavalos passaram. Aí o nº4 da gabi. Então um intervalo e por fim, passa o cavalo nº1. Só o cavalo. Sem o homem em cima. Só o cavalo. Sabe aquele que eu tinha escolhido? O Almirante? Então, ele derrubou o seu jóquei e terminou a corrida sozinho, por último.
Somos ou não somos azarados? Dessa rodada em diante, ninguém mais apostou nos cavalos que escolhíamos (o que foi bom, nenhum ganhou mesmo...)

Penélope - três / H. Sark - cinco


"No meu quinto dia de estadia no templo de Campostela eu tentei o proibido: experimentei os meus recém-adquiridos poderes. Depois de verificar se o austero quarto estava trancado e se o corredor lá fora estava silencioso, reclinei-me sobre a cama espartana e olhei as sombras dançando no teto por efeito da vela bruxuleante. Eram horas silenciosas, da madrugada fria, e acho que apenas eu estava acordada naquele momento.
Sabendo-me sozinha, comecei a mover as mãos em uma dança sem sentido. Percebi assustada que as sombras me seguiam, que a matéria escura estava junto aos meus dedos: eu poderia controlá-la e movê-la o quanto quisesse!
Fiquei orgulhosa, e também me odiei por isso. Ainda não havia aceitado ser Escolhida, portanto estava proibida de me divertir movendo sombras. Era um destino que eu relutava, negava, e que, por enquanto, não seria aceito sem explicações. Mas não havia maneira de entender. A estátua não voltou a falar, o deus ficou silencioso; mesmo agora a Sala das Sombras foi fechada sem razão e não posso mais rondar por ali, esperando outra manifestação divina (Que provavelmente não virá nunca).
Porque gosto tanto de ter poderes? Acho que isso me faz sentir única, o que significa que as atenções se voltarão para Penélope. Eu, que tinha inveja dos peregrinos por terem deuses para pedir, tenho que ser a deusa de alguém, oferecendo o que me pedem.
Não que alguém tenha me pedido alguma coisa. Ainda. Não sei. Talvez nunca saibam sobre mim.
Eu terei de dizer para as pessoas que sou a...
*
Por outro lado, acho que tenho um certo orgulho de meus poderes, por causa Dele. Sim, eu gostaria que ele prestasse atenção em mim. Será que o que eu quero é impressioná-lo? Mostrar a ele que sou única e supreendente? Isso seria tão mesquinho e arrogante!
Vi-o poucas vezes depois de nosso primeiro encontro. Uma vez no refeitório, com seus estranhos companheiros de viagem; outra caminhando ao redor do altar central; e a terceira foi no salão vazio cheio de janelas.
Não cheguei a conversar em nenhuma das vezes. Ao contrário, quem me interpelou outro dia foi seu companheiro, um tal de Ganz, que perguntou:
- Senhorita, conhece a Sala das Sombras?
- Conheço, respondi timidamente, esperando um olhar do outro estranho.
- Já ouviu falar de coisas anormais acontecendo lá dentro?
- Não, respondi. (Isto é, sem contar com a garota que entrou lá dentro outro dia e escutou um deus falar pela voz de uma estátua, escolhendo-a para salvar o mundo).
Insatisfeito, o homem foi embora.
E ontem mesmo a Sala das Sombras foi fechada. Pensei que poderia levar o estranho até lá e mostrar a ele as estátuas, tudo uma desculpa para conversarmos e eu conhecê-lo melhor. Mas agora já foi. Agora já acabou.
É por causa dessa Sala que estou aqui, em meu quarto, esperando o silêncio atingir o corredor para poder praticar ainda mais. Já consigo coisas incríveis: desde que tentei pela primeira vez minhas habilidades cresceram e se aprimoraram: Agora consigo escurecer levemente uma sala - declinar a luz e aumentar a sombra de um lugar. É divertido praticar em meu quarto, fazendo a vela dançar de confusão.
Também aprendi sozinha uma habilidade sem nome, a que eu chamo de "pegar" as
sombras. Nada mais é do que poder mover a matéria escura, como se eu tivesse uma mão sobrenatural capaz de tocar o abstrato.
Posso sentir as sombras, saber onde está o escuro e em que lugar é noite.
Consigo mover este elemento e moldá-lo. Já tenho muitas habilidades, mas ainda não sou um Escolhida, não sei lidar com meu poder. É que, afinal, não sei para que usá-lo! Ninguém nunca me pediu nada (mas ninguém nem sabe de nada!), não saí daqui de dentro do templo, não busquei ajuda. Tenho medo do que pode acontecer nestes tempos turbulentos. Notícias terríveis chegam do norte, de Estafansa. Dizem ser o fim de Olstomé.
Consigo mover as sombras, mas será que eu terei que... atacar? Luta? Guerra? Eu não! Me recuso terminantemente a matar outra pessoa, não sou do tipo de brigar. Mas agora nem sei mais de que tipo eu sou, vida roubada que tenho.
Ouviu Penélope? Você é a Escolhida das Sombras.
Acontece que não sei quando e por quê usar os meus poderes.

Eles já me meteram em confusão. Devia ter ficado quieta, mas insisti em ser curiosa e em testar-me. Pois bem. Aconteceu.
Outro dia comecei a reparar nas sombras das pessoas (de um certo modo, estes exercício são muito bons, pois distráem minha mente dos grandes problemas). É engraçado perceber como as nossas sombras têm dentro de si muito de nós. Elas nos tráem; contam para os outros quem somos. Muito silenciosa e dissimulada eu espreitei os peregrinos que chegavam, vendo na sua projeção escura seu segundo eu separado do corpo. Vi alguns sonhos, de relance. Desejos, insinuações, tentativas e coisas que poderiam ter sido. Descobri a minha mais incrível habilidade: conversar com sombras.
Elas não falam com vozes, como nós. Mas usam palavras. Como se isto fosse a sua matéria-prima, sua comosição inicial.
É possível saber o outro através de palavras? Pois eu soube sombras, rastros de pessoas, irmãs-gêmeas tristes e vingativas.
Dizem, em lenda, que quando uma pessoa está para morrer sem cumprir o seu destino, sua sombra a salva. Ela é a eterna companheira, elo de ligação com a morte. Assim, as sombras podem acelerar ou retardar nossa partida.
Se tenho medo? Claro que mexo com coisa perigosa, além do sentido humano normal, mas medo não tenho. Ou melhor, ele é afastado pela sensação de que, uma hora ou outra eu tenho que fazer isso, então vamos em frente, vamos lá, ouvir o que elas tem a dizer. Não sobra tempo para o medo.
Mas a maior das descobertas, a que desencadeou toda essa escrita, foi na madrugada que iniciava o meu oitavo dia no templo.
Era tudo silêncio àquela hora. Cansada de sempre treinar na solidão do meu quarto, fui dançar com as sombras por entre os corredores vazios de Campostela. As estátuas se erguiam mais ameaçadoras do que nunca e eu temia ser descoberta.
Coração palpitando, fui tentar mais uma vez entrar na Sala das Sombras. Nada. Desisti. Era impossível abrir aquela porta fortemente trancada. O que havia de tão proibido ali? De repente, percebi: será que sabiam sobre o deus? Era por isso que trancaram a sala, para que ninguém se encontrasse com o divino? Será que eu corria algum risco? Sabiam sobre mim também? E quem era esses eles que minha paranóia insistia em criar?
Ah não, ah não, ah não!
O que será agora? Perceberam tudo o que eu tentei dissimular?
Corri pelo escuro, o medo dominando meus pensamentos. Na hora não fui esperta, não percebi as pistas que me deixavam. Com medo de estarem me seguindo, fugi na direção do meu quarto.
Quando parei, ainda na sala das janelas, não conseguia mais respirar. O que será que haviam descoberto sobre a Sala? Eu estava em perigo?
Tentei me acalmar olhando para as colinas de capim ondulante sob o céu noturno.
- Eles não sabem de nada.
Saindo das paredes uma voz grave e sibilante cortou a escuridão. Arfando mais do que nunca eu gritei:
- Quem disse? Quem é? O que está acontecendo?
- Eles não sabem do que nos aconteceu. O deus vai ficar bem. Nós ficaremos bem.
Comecei a tremer sem saber de onde vinha a voz misteriosa. Estava apavorada, amaldiçoando a minha curiosidade, quando percebi:
Era minha sombra quem falava. Encostada na parede da sala a minha sombra conversava comigo!
- O que... O que... balbuciei
Tenho a impressão de que ela deu uma risada. Era um som chiado e penetrante que me deixou mais assustada ainda.
- Sou sua irmã, (foi essa a palavra usada pela sombra: irmã) não se assuste. Eu queria dizer que estou orgulhosa do seu progresso, você vai bem como Escolhida. Por isso achei que esta era a hora de me revelar, de conversar contigo.
- Eu não... eu não entendo!
- Ora, você já conversou com outras sombras antes! Já a vi tentando com os peregrinos. Por que comigo é tão diferente assim?
- Eu não sei, respondi. Conversar com a minha prórpia sombra era algo pessoal e esquisito. Ali, na semi-escuridão da luz de velas, estávamos sozinhas. Tive medo do que ela pudesse fazer.
- Vamos, não tema, não tema. Eu vim aqui com um conselho.
Afastei a cabeça com suspeita. Ela fez o mesmo.
- Queria te contar, minha cara Penélope, sobre o seu caminho como Escolhida. Está disposta a ouvir?
- Estou, falei. Mas antes, eu tenho uma curiosidade: como eu posso te chamar?
Ela riu novamente, e quando moveu a cabeça para o lado eu fiz o mesmo. (Começara a imitar a minha sombra?)
- Pode me chamar de Epolenep, só por diversão.
- Não acho que vou conseguir pronunciar isto...
- Escute: vai ouvir o que tenho a dizer? (aquiesci com a cabeça) É isso, tenho que lhe falar sobre uma missão que pensei para ti. Você deve começar a agir como Escolhida, portanto elaborei algo que poderia fazer para ajudar as pessoas. (a encarei com suspeita e um pouco de raiva. Não queria ser a Escolhida. Ainda não. Mas bem, vamos ouvir tudo o que ela tinha a dizer.)
- Você já ouviu falar, minha querida Penélope, do Rei das Sombras? Nunca? Eu sei. Sombras sabem coisas além dos seus gêmeos. Por isso te digo: aqui perto de Campostela, em uma colina mágica e perigosa, existe uma série de túneis subterrâneos, esquecidos há anos pelos humanos. Lá dentro é o palácio do Rei das Sombras, onde as Sombras-livres, aquelas sem os seus humanos-irmãos, moram e dançam o dia todo. Se você for até lá e prender o Rei, você terá salvo as pessoas das vilanias e crueldades das Sombras-livres. Não é isso o que uma Escolhida deve fazer? Ajudar o mundo? E como fica aqui perto, eu imaginei que você gostaria de começar a sua... carreira.
- Parece um bom plano, mas você se esquece de que eu ainda não sei usar os meus poderes. Se terei que prender uma criatura tão perigosa como você diz ser esse tal de Rei das Sombras, prefiro descobrir a extensão de minha força antes, ou poderei morrer sozinha em algum dos túneis devido ao meu despreparo.
- Bobagem, não creio. Você parece estar pronta. Eu te ensinarei tudo sobre as sombras e com esse conhecimento você poderá derrotá-lo.
- Mas eu nunca briguei com ninguém antes. Agora terei que derrotar uma criatura?
- Não, basta uma magia para prendê-lo. Eu te ensino tudo o que você precisa saber. Conheço-te a vida inteira Penélope, conheço-te por dentro e sei que você é capaz. Cansei-me de te ver aqui nesse templo escuro e velho; vamos sair, vamos nos mover. Quero ver os seus primeiros passos como Escolhida!
A vela rodou no vento, fazendo a sombra se indefinir.
Acenei afirmativamente e Epolenep começou a me ensinar tudo o que hoje sei sobre as sombras. Ela falou das lendas sobre a nossa morte e nossa sombra andarem lado a lado, sobre o aspecto vingativo e traidor de nossas irmãs-gêmeas, sobre como elas espiam nossa vida, mas podem escapar à noite sem que saibamos e sobre o perigo que são as Sombras-livres, capazes de fazerem o que quiserem. Ficamos conversando na sala e depois no quarto escuro. Por fim, quando achou que eu estava pronta, a minha irmã escura se calou e ficou sendo apenas uma imagem na parede.
Apaguei rapidamente a luz, para que ela sumisse dissolvida no escuro.
No entanto, a noite toda senti sua presença, querendo, sussurrando, instruíndo...


Quando pensei estar pronta para enfrentar o Rei das Sombras, nós duas, eu e minha irmã-gêmea, saímos para fora do grande templo negro de Campostela. Era o entardecer do meu nono dia ali.
Assim que coloquei os pés na grama macia, minha sombra se dissolveu no capim alto e sumiu muda nos múltiplos feixes de planta. As primeiras estrelas piscaram sonolentas e, por costume, fiz um desejo:
"Que tudo corra bem".
Um grupo de peregrinos extasiados passou por mim, todos rindo contentes. Dei alguns passos ouvindo o shoque shoque de grama raspando em roupa, quando uma voz me chamou:
- Você já vai embora? ele perguntou doce e angustiado (quase cortante, disfarçando). Engoli em seco e virei-me, dando de cara com o estranho que olhara em meus olhos outro dia.
Desta vez nos encaramos com sobriedade. Olhares sérios e comuns. Vi o seu cabelo escuro, suas mãos nervosas e seus ombros largos.
Ele baixou o olhar encabulado - Me perdoe, foi desrespeitoso de minha parte intrometer-me assim em sua vida.
Eu, que havia visto sua alma, que poderia dizer?
- Não foi nada desrespeitoso senhor! (e, para evitar um silêncio:) Eu não estou indo embora. Pensei apenas em caminhar por estas colinas, conhecer um pouco a região.
- São lugares perigosos, principalmente à noite, é melhor não ir sozinha.
- Conte a verdade.
- Como? perguntei de um salto
- Me desculpe! (atrapalhou-se o estranho) Pareceu que eu estava te oferecendo minha companhia, mas, acredite, não queria forçá-la a nada (colocava as mãos atrás da cabeça e depois as torcia e depois coçava o rosto, sem saber como se desculpar) Só estava preocupado, as colinas são mesmo perigosas.
Sorri diante da sua confusão. Mas estava mais interessada era na terceira voz, que logo repetiu:
- Conte a verdade.
- A verdade? sussurrei olhando para Epolenep. A sombra estava quieta.
O viajante me encarou sem entender.
- Conte-lhe a verdade.
- Quem é? falei assustada. Dera para ouvir vozes misteriosas agora? Olhei para a longa parede do templo e a compreensão bateu-me.
Encarei devagar o estranho e expliquei a ele minha triste situação.
- Gostaria que não pensasse em mim como louca. Porém (por que dizia isso ao homem por quem eu me apaixonara?) o caso é que a sua sombra está falando comigo.
Desta vez seus olhos se fecharam. Baixara as cortinas do assombro, incredulidade e surpresa.
- Conte-nos tudo, pediu a sua sombra.
- Meu nome é Penélope Noite (eu comecei. Por essa loucura perderia meu amor?) e consigo falar com as sombras e entender o escuro. Eu estava saindo na verdade para encontrar o palácio do Rei das Sombras-livres, porque sou...
- Mas não tudo! gritou-me Epolenep - Vamos ter alguns segredinhos, pois não.
A sombra do homem concordou com um aceno de sim.
E o homem? E meu caro estranho que eu queria tanto impressionar?
Pois ficou ainda um tempo parado, olhando para mim come se fosse mesmo uma maluca pregadora de algo inconcebível. Que minutos mais desesperados! Não achávamos, nenhum dos dois, algo a dizer para o outro. Como já havia dito demais, resolvi ficar em silêncio. Por fim, ele disse:
- Meu nome é Sark. (e pausou, olhando agora em meus olhos) Não sei se acredito no que você diz, mas uma garota tão determinada como você parece decidida a ir atrás deste Rei das Sombras. Como eu havia dito, as colinas são perigosas, então me ofereço para te acompanhar. Desta vez ofereço mesmo minha proteção de guerreiro. Minha cara Penélope, você aceita?
Seus olhos brilharam de ironia e alegria, talvez entusiasmado por ir atrás de algo desconhecido. Só posso imaginar, mas me sinto segura ao dizer que os meus olhos brilharam de volta com esperança. Finalmente saía de dentro do detestável templo escuro e mergulhava nas colinar-mar. Melhor do que isso? Era acompanhada pelo belo viajante, que se oferecera para proteger-me. Tudo o que precisara era afirmar-me como Escolhida... Algo pelo qual relutara, mas...
(hesito)
Não sei agora o que quero. Não sei mesmo meu caminho. Gostaria de poder escolher quem sou, ao invés de estar à disposição de um poder divino silencioso.
Por enquanto me basta narrar o nosso breve passeio:
- Muito obrigado viajante (agradeci enquanto dávamos nossos primeiros passos pelo capim macio) Me sinto muito contente agora (shoque shoque). Mas, se me permite uma pergunta: você disse que o seu nome é Sark, mas (olhe minha intromissão!) poderia jurar que ouvi seus companheiros te chamarem diferentemente, outro dia, lá no templo.
Seu rosto se fez uma careta.
- É uma brincadeira, um jogo de mau gôsto. Eles às vezes me chamam pelo primeiro nome(ele pausou). Mas eu prefiro Sark. É um nome mais forte, intimidador.
- E você quer ser intimidador? Eu gostaria de saber o seu primeiro nome.
Ele riu, baixou o rosto e voltou a olhar para as estrelas.
- Eu me chamo Henry Sark, se você insiste.
- Eu insisto. E prefiro muito mais te chamar de Henry. É mais doce.
- Eu não sou doce, ele afirmou categórico.
- Não vejo razão para não ser. Você me parece triste e sozinho, mas não é alguém cruel ou malvado. (olhei para o seu rosto. Ele ficou quieto. Sark entendia a extensão de seu ser. Talvez eu estivesse enganada. Ele era cruel? Gostaria de sabê-lo, entender até onde ele ia.)
- Você pode me cahamar de Kras, disse a sua sombra, dando continuidade à brincadeira dos nomes invertidos.
Caminhamos em silêncio pela grama alta, buscando uma referência qualquer. O que seria uma colina mágica e pergisosa? O que seria, naquela escuridão estrelada, uma colina?
- O que vamos fazer com o Rei das Sombras quando o encontrarmos? - Henry Sark me perguntou.
- Eu vou derrotá-lo.
Olhou para mim incrédulo. Era porque sou uma menina? Por entender minha inexperiência? Por ainda me achar um tanto maluca?
Ergi o pote-estrela e expliquei: Aqui dentro deste vidrinho está um feitiço, capaz de prender sombras-livres em seu interior. Minha própria sombra me ajudou a fazê-lo. Se jogarmos isso em cima do Rei quando ele estiver enfraquecido, o feitço irá prendê-lo.
- Mas e se o vidro quebrar?
- O vidro tem que quebrar. Por isso devemos jogá-lo em cima do Rei, para abrir e liberar, e com isso prender.
Caminhamos silenciosos.
- Eu já vi coisas muito estranhas, ele confidenciou. Creia em mim, o mundo é um lugar esquisito. Então, quando você diz coisas sobre o escuro, eu decido acreditar.
Nos olhamos de novo. Ele tinha decidido acreditar em mim? Não via mais hesitação em seus olhos.
Porém... Em sua sombra, ainda havia um rastro...
- A sua sombra te contou tudo isso?, Henry perguntou, com suspeita - Eu não acho seguro confiar em algo tão maligno e traidor.
- Porque você diz isso delas?
- Por que ela traiu suas iguais. Se ela te contou tanto sobre o Rei delas e como capturá-lo, as sombras não passam de traidoras vingativas. E ninguém é capaz de contrariar a sua própria natureza. Você devia ter cuidado com o que ela te ensinou, pode ser tudo enganação.
Mais um pilar de segurança caiu.
- Não gostei de nosso companheiro - resmungou Epolenep - Muito maledicente se você quer saber.
- Mas ele está certo - continuou Kras - Ninguém pode ir contra a sua natureza.
E a minha natureza, qual era? Escolhida, filha, apaixonada? Eu iria descobrir isso algum dia? Talvez agora, caminhando por entre o ondulante capim noturno, em direção a algo sinistro e desconhecido, eu descobrisse, afinal, quem é a Penélope Noite. Ou então eu estaria, nesta aventura assustada, construíndo quem eu sou.
...
Quem eu sou? Talvez as sombras saibam a resposta.
(shoque shoque fazia o capim, à medida que avançávamos)
De repente, não estava mais com tanta vontade de avançar.



Quem é esta garota? Por que em sua presença eu me desdobro em ridículas gentilezas? Resolvi segui-la em sua peregrinação até o Rei das Sombras-livres. Acreditava nela? Não sei. Conversar com o escuro... suspeito de enganação.
Mesmo assim a dama Penélope precisava de um guerreiro que a protegesse de sua prórpia curiosidade. Deixei Ganz e Pátroclo dormindo lá em cima e caminhamos pelo capim alto.
Coloquei a mão sobre a bainha de Kagemonji. Seguro. Prendi a capa de viagem para afastar o frio e olhei para ver se Penélope não se sentia incomodada no anoitecer. Ela caminhava devagar, atenta para o seu passo incerto.
Tento entender agora, após todos os acontecimentos, o que senti naquele momento. Era um sentimento apreensivo, tímido, ainda suspenso em desconhecido nas névoas da minha consciência. Não havia nome, mas em mim havia uma falta de ar, um constante deslumbramento.
E era tudo por causa dela. Agora eu sei, tenho um nome. Posso definir e cercar este sentimento. Não vou dizer por enquanto, mas era coisa tola, juvenil. Eu sei, eu sei, que vergonha! Mas tenho as idades trocadas.
Nunca tive juventude. Passei da curta infância à maturidade séria rapidamente, graças à minha estadia em uma tumba e ao treinamento severo de mestre Haramis. Agora, que me empenhava em ser um adulto respeitável, esta garota aparece e me transforma em um jovem suspirador.
Me confundo. Que idade tenho? Como devo agir? O amável, prestativo e cheio de ideais Henry ou o cruel, decidido e poderoso Sark?
H. Sark (eu) terá de viver como uma eterna contradição.
Mas de volta à história:
O vento aumentou e agora o capim ondulante nos fustigava os braços e rosto.
- Minha sombra nos diz que devemos nos apressar - falou Penélope - Pois logo vai chegar o dia.
- Achei que sombras se enfraquecessem na luz - respondi, pronto a desacreditar aquela maluquice.
(Após uma pausa, em que ficou a olhar o chão à sua esquerda, ela me respondeu: )
- Não. Durante o dia a escuridão se concentra na gruta e o Rei fica mais forte. Então vamos logo, ela ordenou.
A grama farfalhava alegre enquanto buscávamos alguma trilha por onde passar. Olhei novamente para Penélope, que transitava com os olhos entre o capim e as estrelas, talvez atrás de uma pista qualquer.
Por fim, ao chgarmos às colinas, e ela sorriu-me, e o luar branco de seus dentes encantou-me de tal modo que ainda fiquei por um momento parado, deslumbrado pelo seu eco. Meu coração deu uma fisgada - que papel de tolo eu faço - e abandonei o reflexo para correr atrás da dona da ilusão, que deslizava em seu vestido escuro por entre o mato.
- Kras diz que é logo ali naquela colina, ela sorriu. E como era lindo o seu sorriso!
- Quem é Kras? Uma das sombras?
- A sua sombra, ela respondeu impaciente, fazendo-me olhar com extrema suspeita para a figura escura que caminhava ao meu lado.
- Não vejo nada por aqui, só as colinas - Estávamos agora no alto, com uma bela vista do Campo das Estrelas sob o céu noturno, uma das mais lindas visões no mundo todo. Lá longe se via o vácuo no céu que identificava o templo de Campostela. Por todos os lados os astros celestes nos confidenciavam segredos e mistérios, junto ao balouçar sereno do capim no chão.
- Olhe só Sark! - Penélope chamou, mostrando-me algo no chão: um enorme buraco, mais escuro que a treva da noite, no topo da colina maior.
Era definitivamente a entrada do Palácio do Rei das Sombras. Quem entraria primeiro?
- Eu vou, - falei, decidido a agradá-la e já colocando as pernas para dentro da boca negra.
- Cuidado, ela pediu - Epolenep me diz que as sombras-livres são extremamente perigosas. Sem seus humanos-gêmeos elas podem liberar toda a sua maldade e vingatividade. O mesmo vale para homens que perderam a sua sombra-gêmea: estes não tem arrependimento.
Acenei devagar com a cabeça.
- Dê-me o seu pote, eu vou enfraquecer o Rei para você. Deixe que eu o prendo enquanto o distraímos: não quero te ver chegando tão perto de uma criatura perigosa.
Penélope demorou para responder. Por fim, resolveu dar-me o pote-estrela com o tal feitiço dentro.
Olhamos um para o outro mais uma vez. Que brilho era esse que eu enxergava em sua íris? Seria todo um arco colorido de sentimentos desconhecidos? O que os meus olhos lhe revelavam? Seria aquele desconhecido e brumoso sentimento-sem-nome?
Perturbado afastei a cabeça. Começara a minha missão; era tempo de ser um guerreiro.
Entrando pela terra seu sorriso me iluminou a queda escura. Com um baque, cego e tonto, aterrisei sobre uma matéria desconheida.
Com outro baque, Penélope aterrisava sobre mim. Doloridos e assustados pela súbita cegueira que a treva nos provocava, começamos a tatear as paredes de terra.
- Epolenep! Epolenep! ela chamava - Ah Sark!, onde estão as nossas sombras? Que lugar é esse? Não vejo nada neste escuro.
- Está tudo bem, acho que há um caminho por aqui. Segure minha mão.
De fato. Conseguimos seguir por um corredor estreito, temendo pela tolice irrevogável de nossos atos. Quando viramos a esquina - uma luz!
- Há algo ali, sussurrei devagar. Vamos tentar ser o mais discretos possível.
Caminhamos agachados pela escuridão, eu com meu sentimento desconhecido e simples, ela com seus segredos. A luz aumentava, vindo de uma série de archotes colocados nas paredes. Estranhamente, também a música aumentava: vindo de algum lugar do fundo da caverna um som macabro e crepitante tocava, nos arrepiando até os ossos. E nos seguindo, mais definidos do que nunca, iam os sinistros Kras e Epolenep.
A caverna estreita se abriu em um grande salão, iluminado por milhares de chamas no teto. No centro, infinitas figuras escuras de sombras-livres rodopiavam sozinhas no ar, independentes dos restritos anteparos. Apontei para Penélope uma sombra maior, sentada em um não-sei-o-que-em-ruínas - uma porta, um portal? - com uma brilhante e reluzente coroa na cabeça - isto é, supondo partes humanas para sombras.
Estávamos no Palácio do Rei das Sombras-livres!
Involuntáriamente nossas mãos se buscaram. Por pouco tempo ficaram unidas em seu abraço cálido antes que uma presença fria e ameaçadora pousasse sobre elas: Epolenep debruçou-se ao nosso lado, olhando fixamente para o centro do salão. Como que então as sombras ainda ligadas deram para moverem-se sozinhas? Reparei na face pálida de Penélope e encarei furioso a minha própria sombra, ordenando interiormente que ela ficasse quieta.
- Ela diz... - suspirou a garota, falando obviamente de sua sinistra irmã-gêmea - que devemos nos apresentar. Que é mais educado assim. Ou senão - e seu rosto empalideceu ainda mais - Epolenep o fará por nós.
- Maldita! sibilei. Coisa velha e escura, monstro terrível! Deixe a pobre Penélope em paz!
- Não Henry, está tudo bem.
- Não, não está! - revoltei-me briguento - Se essa bruxa vai nos trair de qualquer modo, deixe que eu vá. Você fica aqui escondida e tente não se preocupar. O pote está comigo, eu ficarei bem.
- Cuidado então. Por favor, não faça nada perigoso - ela pediu. A doce e encantadora Penélope! Enquanto ela me encarava com temor, sua sombra se interpunha dissimulada entre nós, sem revelar emoção alguma, fingindo não ser com ela.
- Fique aí - eu ordenei, enquanto descia a escada circular para o luminoso salão. Assim que meus pés tocaram o círculo interno, a música e os guinchos pararam de um rasgão. Uma risada tenebrosa ecoou e o Rei das Sombras, erguendo-se mais alto do que dois homens, falou a mim:
- Humano! Que diversão! Olhem sombras-sombras, quem veio nos visitar.
Precisava ganhar tempo, me aproximar. Comecei a conversa:
- Meu nome é H. Sark. Eu vim do norte, do decadente reino de Olstomé.
- Um reino decadente? E o que as Sombras-livres têm a ver com sua tola política? Tudo patetagem para nós! - ouvindo isto todas as figuras escuras do salão se aproximaram de mim - Vamos ouvir, o que você tem a dizer que interesse a nós, habitantes das profundezas.
(e agora, o que dizer?) - Vim aqui fazer um trato.
- Um trato? - todas as sombras se inclinaram.
Acenei ao Rei para que este se aproximasse, como se tivesse um segredo a contar-lhe. Mudando sua forma para deslizar pelo ar, ele colocou o seu ouvido escuro próximo à minha boca - fora pego!
Comecei a sibilar palavras sem sentido para o ouvido ávido - Lá em cima... no Campo... das Estrelas - minha mão pegou secretamente Kagemonji e entrei em posição - onde... tem... uma... grande... Agora! - com um grito saquei a espada e cortei um rasgo no rosto parado e atônito do Rei.
Percebi lívido a minha estupidez. Nenhum arranhão - era óbvio - na grande sombra negra!
Erguendo-se alto e furioso, a coroa piscando brilhante, o Rei das Sombras urrou:
- Olstomé? Campostela? Acho que você não veio aqui falar de nenhum dos dois, não senhor! Eu enxergo a sua intenção. Você pode tê-la ocultado em seu rosto, mas seu gêmeo - sua aberração gêmea! - me diz que você busca me matar!
Então, pela primeira vez - e foi neste momento em que qualquer dúvida a respeito de Penélope se dissipou - eu ouvi Kras falar, talvez efeito daquela caverna que fazia as sombras agir tão estranhamente:
- Me desculpe irmãozinho, nada pude fazer. Você é um bom companheiro, não desejava te fazer mal. Mas não posso contrariar a minha natureza traiçoeira, me desculpe Farei o que pudermos para não nos matarem, prometo.
Eu sorri para o meu irmão-gêmeo. Certo, não podemos evitar, o que eu fiz era estupidez de qualquer modo. Não seria certo culpar apenas minha sombra, por agir como sabia agir.
- Que aberração! Que aberração! - o Rei gritava enquanto seus súditos me prendiam em seus abraços opacos e arrepiantes - Olhem que humilhação, que tonteira! Uma grande sombra se rebaixando perante um homem qualquer! Vamos meus amigos, vamos libertar este companheiro de sua prisão de carne. Tragam a faca!
- A faca! A faca! A faca! - cantavam as sombras-não-mais-gêmeas, dispostas a me matarem para que Kras se unisse às suas legiões. E não vou dizer que este foi contra, afinal, como ele disse, sua natureza traiçoeira não era contornável.
O Rei das Sombras, segurando em suas mãos uma reluzente faca de prata, cresceu e mutou em um monstro pluriforme, de vários braços e olhos sombrios, pronto para dilacerar o intruso que era segurado contra uma parede de terra. Ele que viesse! Já segurava em minha mão o pote-estrela com sua magia, e me preparava para joga-lo sobre o monstro. Talvez não funcionasse - o Rei estava forte e poderoso naquele momento - mas era minha única chace de sobreviver!
Já levantava as mãos segurando o recipiente de vidro quando um grito interrompeu e silenciou o ritual macabro:
- Parem!
As sombras arfaram de surpresa, olhando para onde Penélope estava de pé, sozinha no salão. Tanto Kras quanto o Rei permaneceram impassíveis, este último ainda me segurando firme contra a caverna com um de seus múltimplos braços.
- Não Penélope! eu gritei.
A garota andou até o Rei e ordenou a ele "Solte-os!". Era preciso coragem - devo admitir - para ordenar ao monstro o que quer que fosse.
Foi com uma gargalhada cruel saída de suas muitas bocas dentadas que ele respondeu:
- Eu sou o Rei das Sombras-livres! Vivo em meu Palácio subterrâneo com minha côrte, praticando a cada dia atos de vingança livre-arbitráriamente! Ninguém pode me matar: sou sombra - como seu amigo acabou de perceber. Meu trono é uma das portas dos antigos, a Porta da Morte. Vê agora o meu poder? Meu reino é esta caverna de terra, o medo, o sussurro intencionado, o temor do fim, o desespero dos condenados e o oculto por trás dos assassinatos! É isso o que eu sou. E você?, você pode me vencer? Quem é a garota que desafia as sombras-livres?
No silêncio que se seguiu todos rondaram a pobre Penélope.
E ela? Ela olhou para o Rei. Olhou bem dentro dos seus olhos - poços de trevas. A garota versus Sombra-Rei. Encarando-o firmemente ela lhe disse:
- Eu não quero ser quem eu sou. Minha missão ainda não aceitei. Por isso, por explicação, eu digo apenas: Eu sou Penélope Noite.
Como um vento, como um chiado, Rei das Sombras ergueu a faca e condenou sua adversária à morte.
E, como um eco débil de sua irmã, Epolenep gritou:
- Parem!
Desta vez todas olharam surpresas.
- Há uma solução... - começou dizendo a sombra-irmã. Ah! Aquela bruxa, aquela monstra! Certamente planejava algo... - Proponho, me escutem bem, uma troca. Talvez o Rei concorde. - e, se aproximando teatralmente do centro do salão, expôs seu plano - Talvez possamos deixar os dois humanos escaparem com vida. Para isto basta deixarem algo para trás. O que proponho, meu caro Rei, minha querida Penélope, é o seguinte: se nós duas nos separarmos e deixarmos de ser irmãs, vocês podem escapar. Assim todos teremos o que queremos: eu serei livre, o Rei aumentará sua legião e os intrusos ficarão à salvo. O que acham? É um excelente trato, não é?
- Maldita sombra interesseira! - gritei com fúria, fazendo apertar o abraço aprisionante das sombras - Era isso o que queria desde o princípio! Foi por isso que nos trouxe até aqui, não é mesmo, criatura do abismo? Sombra maldita! Monstra! Não acredite em uma palavra do que ela diz, Penélope.
- Devemos admitir irmãozinho - disse Kras seriamente - que estamos sem opções. Epolenep parece oferecer a única saída. Mas será seguro confiar nela?
Olhamos todos para Penélope, afinal, era sua a decisão:
- Você me ensinou bem, minha cara sombra-irmã. Mas nem você ou Kras serão libertados. Acho que agora eu entendi, já sei do que as sombras sã feitas. Se por um lado você me trái para unir-se ao Rei, também escuto seus sussurros propondo-me outra alternativa. Eu declino a sua oferta. Vou derrotar o Rei do meu modo.
A esperta Penélope! Será que já esboçava o seu plano àquela altura ou antes mesmo já sabia o que devia ser feito?
Ela estava certa. Sombras são parte de nós. Uma parte escura e sussurrante, muito além de um apêndice removível, que pode atrair ou afastar a morte. Como Penélope mostrou, o faziam ao mesmo tempo.
- Eu quero que vocês dois, Henry e Yrneh - ela disse à mim, usando meu primeiro nome para brincar de inverter - se preparem para o momento certo e usem "aquilo". Sigam minhas indicações.
Segurei firme o pote-estrela e olhamos apavorados, Yrneh/Kras e eu, enquanto a linda e doce garota que acabávamos de conhecer avançava de punho em riste na direção do grande Rei das Sombras.
- Humana! - urrava este, espumando de fúria - Ousa então jogar fora a sua salvação para me enfrentar? É tão fraca como os outros, não vai sobreviver! Você será esmagada pela treva infinita!
- À morte! À morte! - gritava esta, sempre avançando, em língua inventada de medo e heroísmo - Sark, Rosnado, Epolenep!
Um espasmo de fúria percorreu meu corpo e tentei brandir minha espada - Afastem-se de mim, seus seres anômalos e assombrados! Eu tenho que salvá-la! - gritei, erguendo o pote-estrela para o alto.
As duas forças convergiam com rapidez e raiva na caverna. Penélope e sua sombra, bradando gritos desconhecidos, correndo para a boca da fera! A fera escura, feita de sombras-livres mutáveis, crueis e insatisfeitas, prontas para engolirem a garota e soterrá-la eternamente em suas múltiplas escuridões! No momento exato, no clímax do encontro e do choque, Penélope Noite olhou para mim com suas íris poderosas e me ordenou que jogasse o pote de vidro.
As sombras ganem, gritam, guincham e se jogam por sobre a garota, agarrando-a, erguendo, cobrindo-a. Mas esta planejara tudo! Ela move suas mãos de encontro e as separa. As minhas acabam de largar o projétil de vidro quando as mãos de Penélope ordenam que se faça a treva! - em um instante toda a galeria se escurece e mergulha na mais indistinta indefinição!
Na noite eterna não existem sombras. Percebo a genialidade da moça, a extensão de seu poder - e foi neste instante confuso de queda e barulho que o vago sentimento ganhou seu nome de Amor em meu coração. Amor e orgulho. O Rei das Sombras e seu exército minguaram enfraquecidos, mergulhados no escuro primordial, sem luz para definirem-se, sem separação dentro do todo, presas fáceis do feitiço que escapava do pote de vidro. Não existem sombras na noite eterna.
Sinto vultos roçando meu rosto, ouço fantasmas chorando. Um desespero me domina - também eu sumira engolido pela treva? Perdi meus sentidos, onde está Kras? Tateando desorientado chamei por Penélope. Ouço sua voz:
- Você foi preso Rei das Sombras, junto ao seu exército de desejos corrompidos e insinuações perigosas. Por cem anos deverá habitar esta sua pequena prisão de vidro: este é o seu castigo!
Ouço os protestos do rei deposto e busco desesperado pela vencedora deste duelo sobrenatural em meio à sombra que me rouba a capacidade de sentir distâncias ou espaços.
Por fim, esbarramo-nos no meio do nada universal. Ela está no chão, ajoelhada, e chora. Minha querida Penélope! Seguro seus finos antebraços, cobertos de terra e lágrimas. Nossos corpos se abraçam aliviados, não vemos nada, eu tento consolá-la. No meio da sombra silenciosa, cegante e assustadora, sem vontade ou controle, beijamo-nos. Com um ímpeto úmido e desesperado, na treva escura do centro do mundo.

domingo, novembro 05, 2006

Penélope - dois / H.Sark - quatro

"Não sei por onde começar. Não sei, não sei mesmo. Estou tão perdida!
Dentro e fora do grande templo é a mesma coisa. Aqui as sombras frescas silenciosas, lá o campo lindo infinitamente quieto. Nenhum dos dois me oferece paz de espírito; continuo tensa e percorrida por fantasmas, vozes sussurrantes.
Ainda ouço ecoando a voz do templo, aquela voz que nunca foi ouvida:
"Penélope Noite... ela chamava... Você é... - "
Não, não quero mais continuar! Chega de ouvir os sussurros de novo e de novo!
Agora quero ficar sozinha, sem ver ninguém, sem dizer palavra. Só este caderno me dará algum conforto, aqui onde me escondo.
"Se eu soubesse o que fazer!" chora a minha cabeça.
Pá-Tum-tum! Pá-tum-tum! canta meu coração acelerado.
E eu fico aqui no meio, totalmente perdida e sem saber o que é o melhor. Gosto de pensar que, independente do que acontecer, as coisas vão melhorar. O mundo vai se aquietar e me deixar embalada em seu sono.
A voz me pediu para abandonar a minha vida.
Até onde eu vou ser capaz de fazê-lo? Tenho uma terrível aflição do futuro, um medo sem razão.

Estou hospedada neste templo há três dias. Vim a pé de Estafansa para desejar saúde a minha convalescente Mãe, que está de cama desde que resolveu sair doente para o festival do Verão. Ora, adivinhem, sobrou para a sua pequena Penélope pedir uma ajuda aos deuses, e por isso me encontro aqui no belíssimo Campo das Estrelas, vendo o vento bater no capim e dançar, ou o sorriso fervoroso dos peregrinos diante do altar central.
Engraçado pensar que eu vim aqui atrás de deuses. Pode-se dizer que encontrei mais do que gostaria, que encontrei uma nova vida a me esperar, como um corvo espreitador grasnando meu nome.
Mas as freiras são muito gentis. Cuidam de todos os peregrinos e viajantes que chegam à estas paragens e cozinham para nós em sua cozinha colossal. Tem sido muito agradáveis estes últimos três dias - apesar das dúvidas, agonias e repetidas reflexões tortuosas que me afligem sem parar. Ah! (nem sei mais a quem suspirar! Deus, deuses, eu? alguém ouvirá minhas preces? Sinto inveja dos outros peregrinos; eles têm a atenção dos céus enquanto que de agora em diante eu terei de fazer tudo sozinha).
Às vezes escapo para o jardim. Fico olhando as longas colinas quase-mar. Digo deste modo porque é o que me parece quando olho o vento batendo no capim: um lindo mar ondulante, corcoveado e verde. Se fosse assim, o grande templo de Campostela seria o navio que cruza reto as águas, e eu sua passageira.
Para onde vamos? Por enquanto fico aqui. Ora sozinha nas sombras, ora ajudando os peregrinos que chegam maravilhados. Vamos meu grande navio negro! Você roubou o meu destino com sua voz portentosa, então diga-me aonde devo ir e cruzaremos juntos as águas turbulentas.
Sei que agora só me resta o desterro: vou viajar para todos os lugares que existem. Esta idéia me enche de medo e assombro. Que maravilha! Que terror!
E minha Mãe? Por causa dela vim até aqui e agora será que devo abandoná-la também? e meu Pai? e o meu querido gato Rosnado?
Nas sombras do templo eu às vezes choro. Mas às vezes mal posso esperar para sair e conhecer lugares tão bonitos quanto este Campo das estrelas. E o que posso fazer? Como agir se sou apenas Penélope Noite?
Noite... foi este sobrenome tão diferente dado pelos meus pais que me enroscou em meu destino. Agora quero só saber como vou agir e o que fazer com o Passado. Me ajude meu anjo da guarda, eu preciso de você; e é por isso que olho com inveja os atendidos peregrinos.
"Penélope Noite... disse a voz que era feita de escuro... Você é a Escolhida das Sombras, ouviu? Você tem que encontrar o Krystalian agora. Esta é a sua missão, Escolhida das Sombras."
Ouviu?
Sim, ouvi.

" Olstomé vai cair. O que vemos agora são os dias finais deste Império agonizante, prestes a entrar na escuridão e no esquecimento. Digo, com um pouco de receio de me tomarem por um fanático louco, que só podemos nos felicitar pela queda de um reino tão cruel e cheio de vícios como este. Sei que pareço hipócrita, já que, como sabem, fui chanceler do estado-maior de Olstomé, um cargo importante, influente e tudo o mais. Mas, se querem mesmo saber, estes dias estão no fim. Não sou mais um gentil súdito olstomiano: meu ódio me levou para longe deste erro. Como sempre digo, minha raiva e meu desejo de felicidade acabaram por me afastar do caminho ruim, de encontro ao magnífico projeto de Uruguthár!

Começou quando percebi o abuso dos impostos sobre a população. Durante as revoltas nortistas, quando os 7 reinos se separaram de Olstomé, 100.000 pessoas morreram de fome por não terem como comprar seu alimento. Uma delas, por acaso, foi Forja Lunn, minha antiga madrasta e sobrevivente das guerras e pestes que aniquilaram minha família. Não que eu tenha motivos para chorar um desafeto ancestral, mas o fato de conhecer uma das vítmas do descuido governamental me abriu os olhos para a grande quantidade de problemas no reino. Antes, quando eu ainda era um tanto ingênuo, pensei que era a minha chance de consertar o que estava errado. Já que era o chanceler de estado-maior eu poderia trazer a solução; mudar o mundo e coisa-e-tal. Olhando agora, vejo o meu engano. Eu tinha muito menos poder do que o meu título pomposo me levara a acreditar; os grandes do reino me esmagaram sem dó, e pior, fingiram que eu não existia. Nem se deram ao trabalho de discutirem comigo, o seu silêncio orgulhoso foi devastador. Arrasado, percebi o quanto o poder era importante, e o quanto Olstomé era fraco. E fútil. E tolo. E que seus súditos não passavam de um bando de babacas sem pensamento próprio.

O que eu buscava, percebi, era maior que tudo aquilo. Era um poder mais puro e decisivo, capaz de realmente moldar o mundo.

Então entra em cena a grande Torre Negra que estão construíndo no leste. Ah, mas os escritores que a apelidaram de nada sabiam! Deveriam chamá-la de Torre Branca, Torre da Virtude, Torre do Poder! Sua magnífica construção se estende diante do rio de fogo como uma mão enorme, a nos receber. O que se discute ali dentro é a criação de um mundo perfeito! Pois ouviram o que eu disse? Ali se discute, ali se conversa. Ali nós podemos juntos criar algo superior. Seu idealizador, um homem desconhecido e misterioso, está sempre nos mostrando o caminho correto a ser seguido. Foi ele quem me ensinou sobre o poder. E disse que meu futuro seria glorioso, pois meus ideais de guerreiro serão coroados na Nova Era - a grande Uruguthár. Uma Era sem tolas bobagens e convercices sem sentido.

E é assim que me encontro aqui nesta estrada, viajando com meus dois companheiros de Missão. Pois viram o que aconteceu? Depois de apenas sete meses dentro de Uruguthár já tenho uma missão especial. Aqui sou reconhecido, diferente de como acontecia no finado Império de Olstomé. O que diria meu antigo mestre se me visse aqui?

Já lhes falei sobre ele? Dou risada de me lembrar do habilidoso espadachim Haramis Mictian, que durante uma guerra foi se esconder em uma tumba e lá dentro encontrou um garotinho de treze anos. Treinou-o sob o caminho do guerreiro e o fez crescer sob sua rigorosa diciplina. Ensinou o que ele podia aprender e hoje aqui estou, o mais brilhante estrategista de todos! Mas já chega, que começo a me gabar. Mestre Haramis teria me dado uma bela bordoada por isso, e me encarado sério com suas sombrancelhas encurvadas, exigindo um pedido de desculpas. Me pergunto onde ele está agora? Talvez também tenha se juntado à Torre Negra; seria bom lutar ao seu lado novamente, mostrar-lhe o quanto amadureci na arte de desembainhar e na de matar. Seu conhecimento sobre as pessoas e suas naturezas seria uma grande vantagem nesta guerra que se inicia. Nós, aos poucos, estendemos nossa influência para o oeste, visando o mundo como um todo. Mestre Haramis: um bom substituto de pai, um excelente espadachim. Gostaria de vê-lo novamente.

Não há como negar que seria melhor companhia do que estes dois que caminham comigo. O primeiro é o odioso Pátroclo, por quem eu nutro um ódio antigo e azedo, mas que insiste em me acompanhar. Seria tão bom se neste novo mundo que surge pudéssemos matar quem nos viesse à telha! Seria a sobrevivência do mais forte e o fim dos chatos pedantes. Pátroclo certamente teria conhecido o seu fim a um bom tempo; e não pensem que eu teria qualquer segundo pensamento ou remorso. Já matei e matarei de novo pelos meus ideais. Penso que se um ideal é verdadeiro ele é forte: e qual é a melhor maneira de demonstrar a força de um ideal senão matando por ele? Mas não levem à sério minha brincadeira de mau gosto - voltemos ao assunto.

O outro companheiro é Ganzelthot, apelidade de Ganz, que veio reclamando a viagem toda. Mesmo assim, ele é meu único amigo, se é que posso dizê-lo assim. Ganz é forte e habilidoso, respeito-o por isso: estamos em pé de igualdade no que diz respeito a lutas corporais. Já no que concerne o pensamento, sei que sou mais inteligente. Se bem que Ganzelthot tem uma característica que dispensa o raciocínio: a crueldade. Extremamente perverso ele é capaz de qualquer coisa e muitas vezes me surpreendi tendo que pará-lo ou refrear seus instintos assassinos. Mesmo assim, ele é meu único amigo.

Se é que posso dizê-lo assim.

A estrada ao sul da capital Estafansa é esburacada e poeirenta. Faz muito tempo que andamos. Ouço Ganz praguejar novamente e Pátroclo sibilar consigo mesmo. Se o Novo Mundo se iniciar com sujeitos como estes daí estaremos em maus lençóis. Mas, como disse, confio nas pessoas. Sei que todas merecem duas chances e que podem mudar. Afinal, é isto o que queremos fazer: mudar as pessoas. Visando sempre o Bem maior.

Mal posso esperar o fim da jornada. Ao longe já vejo a grande e negra silhueta do Templo de Campostela, por entre os campos ondulantes de capim. A noite chega e podemos ver as lindas estrelas cintilando devagar. Não consigo pensar em algo mais bonito do que isso. A beleza do mundo me preenche e tenho que me esforçar para pensar na nossa Missão: trancar a sala das Sombras. Selá-la fortemente para que ninguém possa entrar ali. Nosso mestre diz que um poder terrível se esconde na sala das Sombras, e que é nosso dever impedir que outros tenham acesso a ele. Aos poucos, a figura do templo de Campostela vai se fundindo com o céu noturno e desaparece, apenas perceptível pelo vazio de estrelas deixado no meio do firmamento."



"Tamanho é o tumulto dentro de mim que poder-se-ia descrever os últimos dias deste modo:
Penélope: sou a Escolhida das Sombras, ando de um lado à outro no templo de Campostela, não sei o que fazer, fui escolhida, encontrei um homem lindo, nossos olhares se cruzaram, me apaixonei. Não sei o que fazer. Sou a Escolhida.
Por que isso aconteceu?
(entrei por acaso na fase da culpa? Tenho que culpar alguém?)
Se eu tiver, só posso culpar a mim mesma por ter entrado na Sala das Sombras. (Mas como eu ia saber? Muitos pergrinos vão lá rezar todos os dias. É culpa minha se naquele dia preciso eu entrei sozinha e fui espiar a estátua maior e acabei me encontrando com um deus que me escolheu como sua portadora? E agora?! eu me pergunto. Sem resposta alguma.)
Não vou perder a minha vida antiga assim! Quero primeiro saber. Entender. Não vou ceder antes disso: não farei nada como Escolhida pois ainda não sou!
Certamente não posso falar mal de minha Mãe, que deve estar doente e preocupada. Também não consigo ficar zangada com as freiras do templo, que foram sempre tão gentis comigo. E os peregrinos, com seus sorrisos deslumbrados me causam pena e inveja, mas nunca ódio.
Quero ficar sozinha, apenas eu e minha sombra.
Não esqueço, não consigo! No escuro vazio ao qual eu me retraí não tenho muitos pensamentos; aqui, três fantasmas me perseguem: o Primeiro é a voz do kassim que me escolheu como salvadora do mundo, que fica repetindo e ecoando dentro de minha cabeça meu destino em outra vida; o Segundo é a visão de minha Mãe deitada em sua cama, com meu Pai ao seu lado me acenando um adeus e, mesmo não estando na cena real, eu imagino que ali também está Rosnado, me pedindo um copo de leite ou um carinho; e o Terceiro fantasma são dois. Dois negros olhos tristes.
Lá fora o vento no capim. Lá dentro a frescura do santuário. E Penélope é seguida continuadamente pelos seus fantasmas, não importando o quanto ela escreva em seu caderno. Vão embora e deixem-me pensar! Deixem-me no vazio, e quem sabe este me preencha.
E você? Você quem é? Estranho misterioso que se aproximou de mim ontem, chegando cansado ao templo de Campostela. Lembra de quando você se sentou em um banco e eu fiquei admirando de longe seu porte altivo e o seu ar um tanto melancólico? Aí você olhou pela janela; devia estar pensando nos belos campos-mares de capim ondulante.
E eu vi algo em você que era duro. E muito sério. Aquilo me atraiu, pois queria desfazer o nó que havia na sua alma. Queria poder ter mãos de anjo, para tocar o seu coração, poder sentir o que você sentia. Podemos saber o Outro? Não sei, mas naquele momento a minha vontade era tremenda. E que gosto teria...
Me surpreendo tanto escrevento coisas assim para estranhos! Mas, meu senhor, meu caro misterioso, querido viajante, o quanto você é um estranho? Eu te vi sim. Eu te soube naquele momento, nossos mundos se cruzaram. Foi um esbarrar de almas. Você caminhou devagar na minha direção e me perguntou algo, eu estava distraída, você nem me olhara direito, eu nem olhara para cima, eu não respondi, você perguntou de novo e então, coordenado sem aviso, nos olhamos um pro outro dois universos se chocando foi tão gostoso e você ficou sem fala e eu não sabia o que dizer pois você tinha feito uma pergunta e eu nem ouvi mas não importava porque os seus olhos negros eram lindos e ali eu vi a raiva e a força e o desejo e uma tumba escura e o seu medo. Nossas sombras se tocaram e eu senti... Será que me apaixonei? Mas eu nem conheço você! Ou conheço sim? Eu que tentara tanto através das palavras não imaginava que o rio corresse pelos olhos, o desabar que caiu sobre mim foi profundo.
Mais um problema a me assaltar? Além dos deuses agora o amor me chama? Quem é você? Não sei seu nome, mas vi o seu coração. Não sei de onde veio mas saboreei a sua dor. Quero saber-te mais, estranho.
...Ainda escrevo para ele? Por que escrevo para ele? O estranho nunca vai ler.
Eu não quero mais nada, sr. Olhos Negros, me deixe em paz.
Você e seus companheiros são visitas no templo, por isso me escondo nas sombras tentando te espiar. Quero esquecer a voz que ouvi na Sala das Sombras e pensar agora no meu caminho para longe das confusões, pois sinto meu coração prestes a explodir.
Se você me deixar uma pegada, apenas uma, eu posso saber quanto você mede e como você andava. Mas para ter entendido o seu ar melancólico, seu porte altivo, seu orgulho de guerreiro, eu precisava, agora entendo, ter olhado nos teus olhos. Será que você sentiu o mesmo? Será que você me viu e me soube através daquele olhar apaixonado?
Me dê uma pista, uma pegada, jovem guerreiro. Não conheço o seu passado com palavras, mas senti o peso dos seus sentimentos.
Você viu o meu passado? Viu a minha Mãe e meu Pai e agora minha aflição de Escolhida?
Posso te ver novamente?

Que tolice. Algo que não vai ser lido. Penélope, sua tola... Vai afundar no peso dos seus fantasmas. Queria poder sair daqui, correr ao lado do vento nas colinas-mares de Campostela, mas sem você nada parece ter graça, estranho que conheci de súbito. Viajante de negros olhos tristes, abertos.


H. Sark - três / Penélope - um


- "Mas porque não poderia sentí-lo? Acostumei-me a pensar que tudo o que nos viesse na forma de instinto natural de sentimento fosse bom: felicidade, amor, surpresa, ódio. Acredito nas pessoas; acredito que o ser humano está certo, absolutamente correto em suas vontades. Temerosos eram os deuses que destruíram Babel, estes conheciam a extensão de nossa força! - A humanidade depende de nós para ser direcionada e encaixada no correto caminho. Eu vejo no futuro um mundo melhor. Eu também, porque não?, busco o Bem. E por isso acredito que devemos afastar de nós tudo o que nos obstruiu de chegar lá: Deus, religião, esperanças tolas, primitivismos e oposições infundadas. É por isso que escolhi o caminho do guerreiro, sem casa para repousar. Sigo as ordens da grande Torre Negra porque algo em mim diz estar certo. E é confiando em minha humanidade que penso ser o ódio algo natural, portanto aceitável.

- Matar é a lei na selva. Sendo humanos progredimos, isso é claro. Nós saímos do estado de selvagem bestialidade. Porém, ouso afirmar que o ódio ainda nos guia!

- Claro, claro, e porquê não? Não entendo porque as pessoas me olham deste modo quando trago o assunto à baila. Por acaso pareço louco? Eu, pessoalmente, posso dizer que estou onde estou - Chanceler de estado-maior da corte de Olstomé, dito com orgulho - graças ao meu ódio. Quando era pequeno uma guerra e uma peste deram conta de aniquilarem meus familiares mais preciosos; só eu sobrevivi. Se não fosse pelo meu ódio, pelo meu instinto de vontade de viver, não teria saído nunca do buraco onde me enfiara para morrer. Estou onde estou porque batalhei para isto. Lutei acirradamente pelo que eu acreditava. Detesto usar frases melosas de poetas menores, tolos e piegas, porém não há outro modo de colocar a situação. Acreditem: sou eu feito de meu ódio, a partir dele moldado e no mundo inserido. Tenho orgulho de minha posição. Orgulho tremendo!

- Acredito que somos movidos por ambições. Ninguém é capaz de fazer algo verdadeiramente altruístico. Quando fazemos um bem somos movidos por instintos mais básicos (ou seja, mais humanos) do que gostaríamos de afirmar, tais como a vontade de sermos valorizados, a Cobiça por recompensas, o desejo da Fama. Não existe o Bem e o Mal. Portanto, ninguém é capaz da maior das malvadezas sem se arrepender, assim como ninguém é capaz da maior das caridades sem um interesse pessoal em segundo plano. "Faço o bem para ir para o Céu!" Amem, cantam os padres, Amem. Isso tudo me enoja.

- Mas porquê falava disso? Ah sim, para justificar-me. Justificar aquele meu sorriso de alegria diante do livro de poemas sangrados. Cada vez que os abro (não há como negar para uma platéia tão cônscia da verdade) sorrio ligeiramente. A tristeza de Pátroclo só me causa alegria. Adoro ver suas linhas infelizes deslizando pelo papel, me regojizo com seus suspiros de dor, quase dou risada com suas promessas suicidas! E quem há de dizer que meus sentimentos são ilegítimos? São tão naturais e espontâneos! - como o amor! Contra o qual não há remédio.

- Se odeio Pátroclo é por causa da sua infeliz propensão à Poesia. Ele não é capaz de compor um ode decente que seja, mas se vangloria como o maior dos Camões. Ele é um homem cheio de faltas e pecados - defeitos inúmeros! Não vejo como ele poderia ser merecedor de meu amor e caridade. Ódio é só o que tenho para infelizes como ele.

- A raça humana é sem dúvida um brinquedo interessante para os Céus. Tão frágil, tão tola, tão insípidamente voltada para o vazio de si própria. Um dia desejo que tudo isso acabe, que todos se vão para as profundezas do Inferno e deixem o planeta a descansar!"

"Um dia, voltando para casa, encontrei no chão molhado algumas pegadas. Estavam marcadas contra a lama que o resto de uma chuva recente deixara próximo ao bosque. Inclinei-me devagar para observar aquele resto de pessoa. Algo tão sutil, deixado sem pensar no chão. Uma marca solta, um caminho percorrido. Voltando para casa peguei o bloco de desenhos e, reclinada contra o tronco da árvore do jardim, tentei desenhar como seria o homem que deixara a pegada no chão.
Seria ele alto? Talvez pelo comprimento da marca pudessemos dizer.
Seria ele velho ou novo? Outra vez o tamanho do rastro nos informaria a respeito da idade do misterioso personagem.
Acreditava ele em um universo único ou em milhares de divindades espalhadas dentro de cada um de nós? ... Ah, mas isso não poderia ser respondido pela pobre pegada! Isso teria de ser um recheio bem recheado, feito com esmero a partir de Imaginação apenas.
Fiquei a imaginar que pegada eu poderia ter deixado. Será que poderiam ver pelo comprimento de meus pés o meu gosto por mel? O que de mim ficaria para sempre e o que sumiria no vazio do universo?
E o que de fato sabemos sobre os outros? Não encontrei solução, não sei o tipo de pegada que minha Mãe deixaria. Gosto muito de explorar estes limites que definem pessoas diferentes.
Se falo muito é por puro nervosismo, ou quem sabe excitação de encontrar algo diferente.
Tentei por muito tempo ser os outros. Fundir-me à Existência e pensar junto com minha Mãe, caminhar junto com meu Pai e deitar-me na sacada com o gato Rosnado. Gostaria de saber se os pensamentos são realmente transponíveis entre as pessoas. Será que durante a mutação em palavras algo se perde? Até que ponto podemos nos transmitir aos outros?Um dia percebi que os sonhos são coisas únicas e pessoais. Sonhos são algo que só vive o sonhador. Ao tentar explicar à Mãe a paisagem etérea que vi durante o sono, percebi o quanto as palavras deturparam o sentido do que vi, obrigando algo tão incorpóreo a existir no mundo. Nunca mais expliquei sonhos. Eles são só matéria pessoal, diluída, efêmera. Tinha medo de matá-los ao prender palavras pesadas em seus fios compridos de imagens e ilusão.
O que não deixa de ser irônico: palavras são a minha vida.
Desde que eu era pequena eu me imaginava com este certo caminho, e sabia quais eram as escolhas certas a fazer para percorrer o meu caminho de mim mesma. Escolher errado era me perder, mas talvez, penso agora, sozinha no quarto, talvez não existem escolhas ou caminhos. Quem sabe o que eu teria sido ou dito em outras situações? Em qualquer escolha eu teria as palavras a me acompanhar, como sempre fizeram?
Divago demais. Sei que são coisas que não poderei passar completamente a vocês. Claro, sentimentos e sonhos são formados da mesma matéria. Como poderia transmitir para uma outra pessoa algo que não existe? Quais os canais que somos capazes de usar? Até que ponto as palavras são confiáveis?
Continuo a escrever, pois é assim que eu aprendo. Aprender, eu suspeito, é lembrar-se. Me parecem existir coisas que já sabíamos desde há muito. Eu sei, pois isso é algo que me demorou para ficar claro. Mas um dia, olhando o mundo, lembrei-me, descobri. Percebi que as coisas são o que elas são.
Divago novamente? O que queria perguntar-me era sobre a validade das palavras. Não sei se é possível saber o Outro, mas continuo a empurrar os limites. Sonho que um dia as palavras hão de me levar lá, onde só existe cachoeira e silêncio. Quem sabe no final do arco-íris não exista uma Palavra Perfeita, capaz de destruir as barreiras que condicionam a existência.
?
Quem sabe?"

quinta-feira, novembro 02, 2006

A Entrada

"Quem é você?" gritou uma voz assustada.
Fren sentiu seu coração bater apressado. Entrara finalmente no Relógio de Gelo! Caído por sobre um tapete úmido, olhou para cima da grande escada de entrada.
Das portas laterais começaram a avançar homens e mulheres atônitas, recém-saídos das salas subterrâneas ou das salas de tecelagem. Surpresos viram, pela primeira vez em muitos e muitos anos, alguém de fora. "Invadiram o Relógio?" gritaram nervosos. "Alguém de fora?" gritavam curiosos. "Estrangeiro?" gritavam apreensivos.
"Quem é você?" perguntou a Fren um dos homens sujo de terra, carregando um punhado de batatas nas mãos.
"Meu nome é Fren Armmadillen, eu sou... eu sou" ele tentou febrilmente dizer, antes que se lembrasse de algo mais importante. "Ainda tem pessoas lá fora, esperando para entrar. Por favor, eles tem que ficar aqui dentro, ou vão morrer de frio. É muito importante para nós estarmos aqui, por favor."
"Ninguém de fora pode entrar aqui!" gritou escandalizada uma mulher.
Fren não sabia o que mais dizer; era de importância capital que entrassem no Relógio, apesar da resistência de seus moradores.
"Mas quem..?" ia dizendo uma voz que no meio da sentença se engoliu em surpresa. Era a esposa de Lúcio que chegava neste momento:
Do alto da escada e velha senhora dona-de-si o encarou. Seu nome era Muriel S., neta do já lendário Brorus Ursobranco, caçador e guerreiro das florestas ocidentais. Naquele exato momento ela percebeu dentro dos olhos assustados de Fren Armmadillen algo que a desarmou por inteira: o Novo. A novidade diferente que entrava no Relógio através do corpo de um certo cientista. Ela não teve medo, mas uma densa curiosidade e percebeu que duas opções de mundo completamente distintas se abriam diante de si.
Não foi muito difícil decidir. Quando falou "Caros companheiros! Estamos lidando com vidas humanas. Devemos garantir a sua proteção imediatamente: vamos trazê-los para dentro." sabia exatamente o que iria acontecer: iriam todos discutir. De fato, várias vozes apreensivas, amargas, sérias, ponderadas, tensas e curiosas soaram através do salão.
Muriel, que sabia precisamente o que fazer, iria garantir aos outros que tivessem a sua amada discussão. Mas, tiranamente decidida a fazer os estrangeiros entrarem, gritou algo que não poderia ser discutido: "Silêncio todos! Não sabemos quem são os forsteiros ou que perigos representam para nós. Mas, sejam eles inimigos ou aliados da Revolução, não podem esperar pelo nosso debate. Sua causa demanda urgência e podemos igualmente discutir a validade de sua intrusão após resgatarmos e salvaguardarmos estes viajantes do frio. Todos de acordo?"
"Sim, sim" disseram os moradores do Relógio.
Sem violar nenhuma lei de comunidade ou de discussão coletiva, ela garantiu que aquele lindo brilho de Novo que vira nos olhos de Fren e pelo qual fora seduzida entrasse no Relógio de Gelo.
Muriel S. decidira perigosamente o destino de todos.
Porque humana.