quinta-feira, maio 16, 2013

Lá no fundo as mulheres empreendiam uma viagem subaquática



 - Estão ali, no barco das mulheres.
  Chegou um navio brilhante, com luzinhas penduradas entre os dois mastros, tal qual uma fila de bandeirinhas juninas. Ele chegou perto da traineirinha. O navio iluminado sorria plácido para o mar calmo. A traineirinha era resistência. Foxy desceu do barco para a água e se aproximou de Haccu. Eram duas cabeças mal saindo da linha d'água conversando no escuro. O mar era um espelho naquele dia.
  - Você veio com um barco bonito.
  - É de Falkwer, você lembra dele?
  - Sim, ele era de minha cidade. Foi ser herói. Saiu pelo mundo. Olha que barco bonito. Faz jus ao herói do mundo.
  - Sim, ele é bem assim. Não fala muito, então não chega a ser tão arrogante, mas fica irritado com qualquer coisa. E as outras, onde estão?
   Todas estavam lá no fundo. Haccu movia os braços devagar, se mantendo boiando ao lado de sua traineira. Ela olhava os dois conversando com sua gravidade feita de madeira e ferro. As mulheres não estavam aqui, Misudinie as levara para um passeio no fundo do mar. A água era escura aqui em cima, mas lá embaixo seria verde, luminosa como uma alga fosforescente. Andariam as mulheres com passos lentos pelo fundo da água. Imaginavam os dois essas jornadas incríveis, noite adentro, mar adentro, enquanto boiavam aqui em cima no oceano quieto. 
   A traineira bufou e suas entranhas de ferro soltaram um suspiro consternado.
   Falkwer apareceu na amurada de seu barco luminoso. Era mesmo um barco que lembrava seu dono: o exterior era festivo, e as luzes pareciam indicar que haveria alguma festa ali dentro, com foliões mascarados, divertimentos, comidas e cores. Mas nada disso era verdadeiro. A jornada de Falkwer era diferente: ele queria ser herói, queria se mostrar herói. Isso tudo parecia muito chamativo no exterior, como fogos-de-artifício, mas a jornada que ele acabava por realizar era amarga, interior, quebrada em si mesmo. O mundo era afastado dele. Falkwer, em seu rosto podia se ver isso, navegava para chegar mais longe do mundo, para afastar tudo e encontrar a si mesmo herói. Não sabia que ele era parte do mundo, que ele estava dentro desse mundo que abandonava.
   Este homem olhava agora, sonhador, a seu modo taciturno, por cima da amurada. O navio vazio era grande e pequeno ao mesmo tempo. Tinha um tamanho enorme, tudo cabia nele, mas olhado assim, de fora, do mar escuro, era como um brinquedo de barco, um modelo, um gigante manejável, como as coisas que vemos em sonhos.
   As luzinhas piscavam sobre os mastros. Era um navio a vapor, seus dois mastros eram de enfeite, - eram a saudades - dois paus retos e finos, espichando contra o céu. Falkwer bocejou, a noite estava tão tranqüila. 
  - Vamos voltar - ele disse para Foxy. O garoto suspirou da água. Estava tão bom nadar. Foxy começou a voltar ao navio:
 - Me avise quando elas voltarem.
 Lá no fundo as mulheres empreendiam uma viagem subaquática. Os homens esperavam um pouco. Falkwer acendeu um cigarro, sabia que Foxy iria demorar a subir. E, de fato, o menino deu umas braçadas ao redor dos barcos. A traineira, o barco das mulheres, ancorado contente - em contentamento sisudo - e o navio colorido, que vem e que vai, luminoso no oceano, mas triste. O navio de Falkwer, que trouxe Foxy. O garoto deu a volta nessas duas embarcações, achou-as amigáveis. Do fundo não tinha medo, era escuro mas por debaixo desse negror havia uma luz verde e seres-peixes escondidos com sabedorias, e mulheres guiadas por Misudinie que viam o mar por dentro. Lá embaixo haviam coisas, mas eram coisas debaixo. Subiu a escada para dentro do navio. Molhava o casco, pingava de água escura. Falkwer assentiu e recolheu a escada, partiam. Coisas da superfície, isso sim o preocupava: coisas da superfície parada e espelhada onde a noite era escura. Haccu permaneceu ainda um tempo na água aquecida antes de subir de volta na traineira e deitar na rede, para dormir.