quarta-feira, abril 23, 2008

Onde há uma guerra perigosa e uma batalha curta

Karyn estava tão furiosa andando de um lado para o outro e desenhando estranhos símbolos no chão que achei melhor sair de seu caminho e deixá-la falar sozinha.
- Eles acham que podem me dar um castelo qualquer, na ponta do reino, e se esquecerem de mim? Mas eles vão ver só! Tenho algo que fará com que nunca mais pensem pouco de mim.
Era óbvio que preparava algum feitiço, apesar do Arquimago tê-la proibido. Sua fúria parecia inconsolável, nada a deteria.
- Porque temos que provocar o Arquimago e a bruxa Labwa? - perguntou Fren, tentando remetê-la à razão - Não é sensato conseguirmos mais inimigos agora. Lembre-se de sua missão pacificadora.
Karyn virou-se e encarou-o com olhos duros e frios.
- Eles têm Foxy - ela disse - E eu o quero de volta.
Um pássaro grande e preto pousou de súbito no centro do pátio do castelo. Trazia uma mensagem presa ao pescoço.
Hoshy apanhou-a com cuidado e leu em voz alta:
"Se faz notícia de que a maga Karyn Rackeloque experimentou magia proibida neste local. Este é um aviso para que pare, ou sofrerá as conseqüências da Academia."
Karyn pegou o papel e olhou para as letras desenhadas em tinta roxa. Aos poucos, o papel foi se dissolvendo sozinho em suas mãos até sumir em uma fagulha.
O pássaro preto ainda ficou por um momento, como se precisasse bisbilhotar, mas, em vista da resposta, achou muito sensatamente que seria melhor dar as costas e sair voando rapidinho.
Karyn escolheu uma porta do castelo, de tamanho médio e madeira firme. Começou a inscrever runas em sua lateral e a espalhar pela superfície um estranho pó vermelho.
- Você acha que é mesmo seguro desafiarmos a Academia? - perguntou Hoshy, tentando abordar o assunto delicadamente.
- Eu sou mais forte que todos aqueles velhotes da Academia, posso tomar minhas próprias decisões - e, como se enxotasse os outros para fora de sua área de trabalho, pediu - Vigiem o castelo. Acho que alguma ofensiva pode chegar a qualquer momento.
Nós subimos até a torre alta e ficamos olhando os campos perfumados que não pareciam acabar.
- Precisamos fazer alguma coisa - disse Fren, olhando com cuidado para mim - Eu sei que ela é sua irmã, mas está descontrolada.
- Ao mesmo tempo é porque ela está apaixonada - eu disse - Temos que pensar que para ela os pensamentos mais racionais não tem valor. Ela está seguindo seu coração, talvez ele a leve por um bom caminho.
- Acho que podemos pedir à ela que descanse um pouco - disse Neyleen, apoiando-se na pedra escura do castelo - Talvez se a convencermos de que Foxy ficará bem.
- Foxy está com Labwa - disse Hoshy em um sussurro - Pelo que sabemos dela isso significa apuros. Labwa vai dar um jeito de fazê-lo se apaixonar por ela, e com isso eu até entendo a pressa de Karyn em voltar à Cidade Estrela.
Nós quatro permanecemos parados no alto da torre, pensativos. Estávamos preocupados, mas sem conseguir uma solução. Se ela agia por amor... como faríamos para negar-lhe a fúria e a paixão?
Então, aos poucos, bem longe, uma linha brilhante apareceu no horizonte.
Descemos correndo para avisá-la. Karyn ainda desenhava na porta, que agora estava vermelha do pó misterioso.
- Um exército vem vindo! - gritei - Enorme, centenas de homens, todos de armaduras cintilantes!
- Não podemos enfrentar todos! - disse Fren - Eles têm armas, cavalos e máquinas de sítio. Seria melhor se nos entregássemos e deixássemos de lado o confronto inútil. Obviamente estão nos perseguido por causa de sua insistência em continuar a praticar magias proibidas.
- Então a Academia resolveu me enfrentar por meios não-mágicos. Isso mostra que estão com medo de mim. Além do mais - disse Karyn, olhando carinhosamente para Fren - Elas são proibidos apenas pelos níveis tradicionais dos magos, os quais eu já ultrapassei faz um bom tempo. Então, tecnicamente, não há nada mais proibido para mim. Isso não significa que eu acabarei machucando alguém, ou usando a magia para meus próprios interesses, sou esperta o suficiente para evitar as armadilhas fáceis.
- Isto não é por interesse próprio? - perguntou Fren, exasperado, de braços abertos.
- Não - disse Karyn bem séria - eu estou fazendo meu trabalho como Escolhida.
Ouvimos de dentro da praça do castelo o barulho do marchar dos soldados, e nos encolhemos assustados.
- Devem ter usado um encanto de sete-léguas para chegarem aqui tão rápido - suspirou Karyn - Não tive tempo de terminar meu feitiço na porta vermelha.
- Como vamos enfrentar um exército inteiro de armas e armaduras? - disse Hoshy.
- Nosso poder não é suficiente - disse Neyleen, enquanto pensava que suas adoráveis árvores não podiam crescer ao redor do castelo inteiro a tempo de nos protejer, muito menos oferecer resistência séria à machados e espadas.
- Não se preocupem, - disse Karyn, com um sorriso faceiro no rosto - Eu posso dar contar deles.
Desenhou no chão um enorme círculo com símbolos interligados. Em tempo, pois os sitiantes já pisavam duro na trilha que subia a colina
- Entrem todos no círculo.
Não foi preciso repetir a ordem. Entramos assutados para dentro do círculo de giz e vimos um evento surpreendente ocorrer.
Karyn ergueu os braços e moveu-os para a frente. Pediu a Neyleen que cantasse e uma canção começou a sair de seus lábios. Como se a acompanhasse, disse palavras de um feitiço. E sorriu, de um modo que eu nunca havia visto Karyn fazer.
Tudo no castelo tremeu. Cada objeto chacoalhou com um súbito pressentir de magia. O exército enviado pela Academia estava quase alcançando o fosso quando um jarro, que até então estivera próximo à minha cama, saiu pulando pela praça, sem quebrar. Seguiu-o uma mesa quadrada que estava na cozinha e três baldes dos estábulos. Aos poucos, mais objetos foram se movendo, como se por conta própria, e saindo à luz do dia para se enfileirarem diante do portão. Um armário inteiro se despreendeu da parede, todas as vinte vassouras que tínhamos. As camas começaram a se desmontar em várias partes que podiam passar pelas portas e se reuiniram também no pátio. Então, o grande portão que nos separava dos soldados lá fora se desprendeu e num ronco se libertou dos trincos, avançando contra o exército invasor, seguida de todos os objetos soltos que puderam avançar. Os soldados se viam às voltas com potes e cadeiras que os atacavam sem parar, caindo em suas cabeças e encontrando pontos vulneráveis em suas armaduras. A massa invasora foi empurrada para trás e teve um instante de susto em que não pôde agir.
Ao nosso lado, mais partes do castelo se desmontavam e começavam a andar sozinhas para a arena de batalha. Vi as cinco portas do pátio se desprenderem das paredes, exceto a que estava coberta de runas e pó vermelho, e voarem no ar. Vi as janelas desencaixando e seu vidro perigoso brilhar na luz.
- Você vai matá-los se continuar com isso! - gritei - Pare Karyn, pare agora!
Mas ela não me ouvia. Virei-me para Neyleen que continuava a cantar a canção que dava força ao feitiço.
- Pare de cantar ou aqueles soldados vão morrer! Não pode deixar que os objetos continuem a atacar.
Em seu rosto, pude ver que Neyleen não tinha mais controle da própria voz e que, mais do que eu, desejava parar de cantar e não podia.
- Por favor Karyn, não faça isso.
- A Academia me desafiou. Eles precisam saber do que sou capaz.
As vigas do teto se desprenderam com um rugido e avançaram, potentes como aríetes.
Ao redor do círculo tudo se destruía e o castelo se desmontava em uma velocidade assustadora. Pior era ver os escombros organizados e competentes atacarem os soldados, que agora abandonaram qualquer honra e fugiam desesperados.
- Me deram este castelo para que se livrassem de mim. Vou mostrar o que uma bruxa poderosa pode fazer por amor, vou usá-lo como um instrumento de minha vingança.
- Karyn, por favor, escute à si mesma. - implorou Fren, enxugando o suor de sua testa em um lenço claro - Isto não pode ser justo, não pode ser certo. E a sua missão?
Karyn olhou-o de soslaio.
- Tenho perfeito controle de mim mesma. Posso provar. Não vou matar aqueles soldados.
Mesmo assim os blocos da parede se soltaram; gigantescos quadrados de pedra maciça animados. Organizaram-se em grupos de três, como um corpo, pé e cabeça. As armas e os emblemas do salão central do palácio servindo-lhes de espada e escudo.
Andavam para a frente com leveza e força, destruíndo as armas de sítio que o exército trouxera em um movimento único.
O castelo se desmontava. Víamos cair as paredes e avançarem em campo aberto as pedras e vigas de madeira. O estábulo, completamente desmontado, persguia os soldados que haviam conseguido se livrar dos outros objetos e chegado à pequena trilha da colina.
O topo triangular e púrpora da torre alta caiu quando sua parede se levantou para a guerra. Não chegou a tocar no chão, pois em um movimento único voou para onde a cavalaria tentava escapar.
Tudo rugia, era uma enorme tempestade! Com facilidade todas as partes que compunham o castelo ganharam vida e saíram para o campo. Nós, dentro do círculo de giz, só podíamos olhar atônitos, secretamente assustados e fascinados.
Aos poucos a tempestade subsistiu e voltamos a escutar somente um silêncio desolador.
O castelo desapareceu. Avançara todo em batalha e não podíamos acreditar em nossos olhos. Nós e uma porta vermelha, era tudo o que sobrara.
- Vou voltar para a Cidade Estrela, não podem me impedir - disse Karyn, e sem mostras de querer que a seguíssemos, abriu a atravessou a porta com as misteriosas runas e pós. Pela minha experiência com magia nestes últimos meses, não fiquei surpreso que ela não tenha saído do outro lado. A porta levava a algum outro lugar. À Cidade Estrela, talvez.

domingo, abril 20, 2008

O menino do ar

Voava na máquina de flutuação aérea conjugada. Cruzava núvens e era como se um jorro de água fria passasse pelo corpo despertando a pele. Cada vez subia mais alto.

Lá embaixo a terra era pequena e desprezível. Não havia necessidade de contar as vacas que via, os rebanhos de ovelha ou as aldeias. Todos os números de que precisava figuravam no arranjo celeste. As estrelas de noite, os pássaros que migravam de dia. A lua, cuja trajetória cruzava as linhas do tempo e obedecia a um ritmo mais antigo do que o tempo curto de sua vida.

Eventualmente precisaria descer. A fome e o cansaço o obrigariam a cair de volta ao mundo de baixo, mas por enquanto não pensaria nisso. É fácil esquecer quando se toca os picos das montanhas com as mãos e se dança junto aos astros. O sol nascia à sua direita e morria à esquerda. Estava portanto, indo ao Norte, junto com as agulhões e andorinhas. Cada dia que avançava se sentia mais leve. Aos poucos seu corpo perderia toda a substância e seria uma parte de céu. O voandante, uma constelação, um rastro de vento e núvem.

Passou a voar sobre o mar. Achava as ondas bonitas, pois elas também obedeciam a um ritmo e a uma lei, mas lhe incomodava o reflexo do sol na água, por isso voava a maior parte do tempo de olhos fechados, sem medir mais a distância, sem precisar dos olhos para sentir o enorme oceano abaixo.

Ficava mais frio. Ficava mais alto. Aos poucos chegaria no topo do mundo, onde, entre a luz da aurora boreal e a conjugação dos meridianos, todos os desejos poderiam ser realizados. Pediria, simplesmente, nunca mais descer.

Como montar uma porta

Mas ela tinha um segredo.
Tomava seu chá e escalava com os olhos as altas estantes de livros pensando nele.
Olhava os cabelos pretos de seu marido recostados no travesseiro pensando nele.
Um dia, enquanto servia aperitivos aos ilustres convidados na varanda, pensou nele. E o segredo se tornou impossível de ser escondido deste dia em diante.
Cresceu e transbordou. Através dos sorrisos, dos olhos, do ar que ela exalava, nada podia contê-lo.
Resolveu afundá-lo no lago que ficava a vinte minutos de carro de onde morava. Mas foi à pé. Demorou quase uma hora e meia e jogou o segredo com todo o seu cansaço dentro do lago e esperou.
Ficou muito tempo olhando para a superfície escura e os desenhos que a água fazia. Por fim, satisfeita, voltou para casa. Ele não a seguiria mais.
Voltou para casa, se arrumou da caminhada e beijou a filha.
Agora estava contente de novo. Livre de um peso horrível, de um fardo assustador.
Na segunda-feira O viu. Ele estava lá, conversando com seus amigos em alguma reunião qualquer. Ela tinha se esquecido que nunca mais podia vê-Lo. Naturalmente, quando voltou para casa encontrou, plantado no armário onde guardava o café, o segredo.
Se assustou, chegou a lhe perguntar como é que escapara do lago. Mas segredos nunca respondem. Ela teve que preparar o café assustada, tinha que suportar este estado de ânimo tão alheio, tão desconcertante.
Era óbvio que o retorno do segredo estava conectado com Ele. Enquanto Ele ainda estivesse lá não seria possível se livrar da terrível companhia e não lhe seria possível conduzir nenhuma vida digna, nenhuma família de respeito.
Tentou de tudo, desesperou-se de todos os modos. Passava noites inteiras acordada, pensando, pensando, olhando os cabelos pretos de seu marido. Só dormia quando os pássaros cantavam, exausta.
Por fim, com algum método perfeito, ou com o desespero, conseguiu. Simplesmente esqueceu-se do segredo, como quem se esquece de respirar ou que se está sobre o chão.
Não chegou nunca a se lembrar do método que empregara, porque fora esquecido também. Abençoada treva!
Podia se encontrar com Ele de novo. Podia conversar e rir em Sua presença com naturalidade ignorante. Estava tranqüila.
Será que ainda escondia alguma inqüietação? Tinha sim um receio: de voltar a lembrar. Sabia que tinha um segredo, mas não qual era. Por isso não sabia quais eram os objetos perigosos, aqueles que a lembrariam dele, ou as conversas proibidas. Entrou em um segundo inferno, com medo da possível e talvez iminente lembrança.
Tentou acalmar-se, e conseguiu se resignar. Se houvesse alguma situação que ativasse a memória esta já teria acontecido; por isso apenas repetiria seus atos, criaria uma rotina, uma conhecida vida que ela já sabia que não a lembraria do que esqueceu. Viveu pouco, viveu baixo, em paz.
Então chegaram os homens de terno e sorrisos desconcertantes. Pediram para sentar e ela lhes ofereceu chá. Sua intuição lhe dizia que aquilo estava intimamente ligado ao seu segredo.
Eles perguntaram-lhe coisas, informações. Queriam ajudá-la.
Perguntaram de seu envolvimento com Ele, de suas ações no verão passado. Ela não entendia e ficava cada vez mais confusa. Porque a perguntavam isso? Os homens de terno se entreolhavam e nunca respondiam.
Perguntavam de novo, mas ela não podia responder. Só intuia que esquecera, não conseguia chegar além do limite que impusera à sua própria memória. Disseram-na que teriam que tomar medidas drásticas, que era importantíssimo que ela falasse Dele - e pior! - que lhes dissesse seu segredo. Ela sabia que era impossível, mas nada os convencia.
Ela se lembra pouco destes dias. De um olhar confuso de seu marido, que não podia acreditar no que via e de uma terrível sensação de que olhava para ela.
Se lembra dos homens de terno a levarem-na para um passeio.
- Aqui dentro você estará protegida. Não há mais com que se preocupar, o que existe de ruim ficou lá fora.
- Mas agora é a vez da senhora nos ajudar. Precisa nos contar qual era o segredo.
Ela sacudia a cabeça, negava, implorava e dizia que não sabia, que havia esquecido. Os sorrisos dos homens de terno se fechavam e tudo voltava a ser vertigem. Escuridão.
Não estava mais em casa. Aqui, também haviam estantes altas.
Preenchia fichas e relatórios, a maior parte sobre si mesma. Ao seu redor, apenas olhos simpáticos. Perigosamente simpáticos.
- A senhora estava envolvida?
- A senhora se lembra de Seu nome?
O nome era importante, assim como Ele era importante. Ela se esforçava e procurava dentro de si até se esgotar por completo, mas a cada dia que passava tudo se tornava mais difícil de ser pensado, de ser compreendido, ainda mais lembrado. Um rodemoinho a envolveu e ela esqueceu quase tudo.
O marido, os chás, os atletas de seu tempo e os heróis que imaginava com a família. O segredo cobriu tudo com sua presença transparente. Ele existia e apesar dela não saber o que era, dominava todos os seus pensamentos.
Preencheu mais pastas e papéis do que podia se lembrar, todos arquivados nas altas estantes. Eventualmente, até os homens de terno pararam de visitá-la. Tudo voltou a ser silêncio.
Um dia a liberaram. A deixaram sair, em sua cadeira de rodas e pijamas, para voltar à casa dos pais.
Era uma tarde fria de sol; as crianças saíam de casa em grossos casacos e gorros para brincar nas folhas amareladas que acabaram de cair das árvores.
Ela estava livre. Mas tinha um segredo.
E somente ele.

quinta-feira, abril 17, 2008

Vejam


Esta é a costa da Escócia vista da Irlanda.

terça-feira, abril 15, 2008

O verão de Cataventos

Desde a última vez em que estive em Los Dopicos o lugar mudara imensamente. A casa principal estava mais velha, mais escura. Mais estranha. Ou era eu que me tornara um homem de fora enquanto estivera na capital? Os cavalos haviam se ido. Os pássaros eram diferentes. Mesmo os homens que costumavam se reunir nas varandas ao final do dia não estavam mais lá.
Dona Fernanda me recebeu com ternura. No mesmo forno que usava minha avó, ela cozinhou para mim. Tinha uma mão boa para doces, e cozinhava sempre em quantidade, enchendo a mesa de travessas e pratos todos igualmente deliciosos. Não pude recusar nada, agradecido e feliz que estava por ela ter me reconhecido e recebido, e ficava olhando suas costas ocupadas no fogão que eu bem conhecia de antes. Dona Fernanda não poderia ser mais diferente da minha avó. Ela era magra e firme, enqunto que minha avó era grande e forte, podendo me carregar nos braços e obrigar-me a sentar em seus joelhos mesmo depois de já crescido.
Mas as duas sentiam por mim o mesmo amor imenso e abusadamente atencioso, característico daquelas que são mães apenas no sentido simbólico. Dona Fernanda não parou de cozinhar ou de servir-me, mesmo eu dizendo estar satisfeito. Minha avó também costumava encher-me de histórias e sermões, alguns assustadores, enquanto eu tinha que sentar em seus joelhos, só podendo descer depois de terminados os relatos.
Era esse o tipo de amor nunca recebi de minha verdadeira mãe, pelo contrário, ela me embalava em um amor muito mais simples e feliz, menos pressuroso e mais confiável, apesar de um pouco distante, como quando, por exemplo, ela me ensinava a ler o jornal ou a cuidar dos pequenos gatos perdidos que vinham parar na chácara.
Terminado o jantar, fui passear ao ar livre e ver as flores. O canteiro das grandes e exuberantes vermelhas não estava mais lá. O regado principal era agora à direita da casa principal e continha apenas flores pequenas, simples e clarinhas, que quase não chamavam a atenção. Entretanto, o cheiro era o mesmo.
Me deixei levar pelo pensamento, tentando compreender como o cheiro das antigas flores pôde permanecer no mesmo lugar, apesar de todos os anos passados e de sua própria extinção. Isso me fez sentir novamente na Los Dopicos que vira quando era criança, como se a nova Los Dopicos mostrasse apenas para mim sua outra face, a escondida, que havia por baixo de sua face costumeira e que, por certas ranhuras do universo, podia ser percebida. Através do cheiro das flores antigas saindo das novas, ou do fogão no qual Dona Fernanda e minha avó cozinhavam simultaneamente.
Andei mais um pouco, até o arvoredo perto da casa. Entre as clareiras, sentia a mesma lua de minha infância iluminar o chão agora. Estava com sono, mas sabia que não poderia dormir tão cedo.
Examinei a árvore atrás de onde, um dia, se escondera um batalhão. Era noite também, e um réquiem pairava no ar. Os soldados se esgueiravam por entre as plantas, seus pés não faziam nenhum barulho na grama. O comandante, com voz suave, ordenou que avançassem. Sua voz não diferia da noite perfumada ou da luz da lua.
O batalhão não sentia frio. Eu avancei. Eu estava lá, segurando minha arma, caminhando por trás da árvore. Olhei para o comandante que apontava a casa. O som do réquiem continuava tocando.
Andamos com cuidado e apenas naquele dia, por decreto divino, ficaram abolidos os sons que nossos pés poderiam fazer. Era um dia de silêncio.
Chegamos até a porta principal, de armas nas mãos. O comandante disse, com sua voz suave, sua voz de mulher:
- Ali, no piano.
E avançamos dentro da casa. Íamos à origem do réquiem noturno, de mãos dadas, sorrindo satisfeitos. Aquela noite foi uma vitória de nosso batalhão.
Pensei, entre as árvores tristes e escuras, nos dias que passara em Los Dopicos e em minha mãe, quando ela ainda tinha a voz macia e o sorriso calmo.
Ao voltar, Dona Fernanda me esperava na porta.

terça-feira, abril 08, 2008

Azul, Electyr, ou qualquer nome que tenha o dragão

Hoje o trânsito estava péssimo.
Não hesitei. Comecei a desenhar dentro do ônibus.
Foi bem mais divertido do que parece: desenhar dragões compridos, chineses, se enrolando, subindo e descendo no ar. E asas escuras abertas. E uma boca cheia de dentes.
E uns bigodinhos compridos, flutuando.
Só falta um nome.
Um dragão eu tenho.

Ontem mesmo, enquanto tentava dormir, ficava rolando na cama, como um dragão que troca de pele. Alguma metamorfose necessária acontecendo e eu ainda resisto. Não há razão: devo me entregar.
Olhar nos olhos do dragão.