quinta-feira, dezembro 25, 2008

O Dia Do Fechamento

De volta ao escritório real, Michaelis e Lancelot conversavam.
- Então ele fugiu... - disse o Rei - Melhor assim. Se tivesse voltado teria que enfrentar a lei do Reino. Mesmo sendo um ladrão ele foi um bom vizir, e prefiro que tenha fugido a ter sido condenado. Realmente espero uma boa vida para Chacauner, ou, como ele se chama agora, Chamaleão.
- Eu não me preocuparia muito majestade - disse Lancelot - Eu soube que ele fugiu com o homem do casaco de pena de ganso. Onde quer que estiverem estes dois, eles estarão bem. E longe de encrencas eu espero.
- E o rapaz dos bonecos, ficará bem também?
- Rufus? Eu soube que ele pretende montar um circo itinerante. Mas que secretamente pretende fazer deste circo um meio de comunicação entre nosso mundo e o mundo dos homens. Para ajudar fugitivos a virem para cá, levar notícias, este tipo de coisa.
- Espero que ele consiga ajudar os dois mundos a encontrarem um diálogo.
- Melhor seria se não precisássemos nos esconder. Como disse Da Gama, nós somente pretendemos fazer o máximo de bem possível. Gostaria se estivéssemos juntos nesta tentativa.
- O Vaticano perdeu muito de sua autoridade depois daquele incidente. Eu soube que histórias sobre novas versões do Natal começaram a circular pela península toda. Talvez seja trabalho do homem chamado Stark e seu gato, mas de uma hora para outra todo mundo começou a criar uma nova lenda de Natal. Isso derrubou muito da credibilidade dos padres e creio que vai nos ajudar no futuro a construir uma relação melhor com os homens, sem o Vaticano a nos condenar como monstros.
- É Percival quem sempre diz, majestade: Seria ótimo se pudéssemos andar pelo mundo livremente, sendo apenas quem somos.
- Ainda chegará este dia!
Lancelot fechou a pasta que narrava os acontecimentos deste caso.
- Então está tudo terminado - ele disse - Não temos o calendário, mas não precisamos dele. O peru deu de presente para o bebê que nasceu na estrebaria.
- Ah sim - disse o Rei por trás de uma risadinha - O bebê que vocês prometeram apadrinhar. Como será isso?
- Daremos um jeito. Estarei sempre vigiando esta criança, é claro. E ajudarei sempre que puder. Mas acho que vou esperar um pouco antes de revelar-lhe tudo.
- Ela nascerá sonhando que tem dois gatos como padrinho. Que sonho mais doce!
Terminados os trabalhos, Lancelot levantou-se e se despediu do Rei com uma reverência.
- Mas onde você vai com tanta pressa?
- Deixei Percival encarregado de vigiar uma fortaleza inimiga não muito longe daqui. Avisei-o para se manter escondido e não deixar o inimigo perceber sua presença. Se não me engano, no tempo que levar para que eu chegue lá ele já terá entrado pelos portões e estará esgrimando contra quinze inimigos ao mesmo tempo. Você entende, majestade, eu preciso salvá-lo!
- Mas você não o mandou que ficasse escondido?
- Justamente! É assim que eu sei que ele se meterá em encrenca. Mas não se preocupe, o capitão Pigmaleão já tem garantida a nossa rota de fuga. Preciso correr.
Dizendo isso, o gato disparou pelo longo corredor. Terminados os trabalhos e as missões, as assinaturas e documentos oficiais, terminados os dias no calendário e as histórias para contar, o Reino dos Gatos se vê envolto em um silêncio muito profundo...

Com o fim de sua história, o viajante de roupa colorida e ultrajante desceu de seu púlpito improvisado e esperou pela reação dos habitantes de Amanda, a mais fabulosa das cidades existentes.
- Isto é só mais uma das lendas de Natal que circulam à torto e à direito nesta época do ano - gritou-lhe um na multidão - É só mais uma historinha.
- Sim, respondeu o contador, mas é uma história que conta de onde vieram as histórias.
- Você que que nós acreditemos que o Natal é uma mentira, descoberta por um punhado de gatos aventureiros que falam?
Com uma mesura humilde, o contador de histórias se expôes ao público.
A praça voltou a fazer barulho e a discussão sobrevôou as cabeças. Quando os habitantes de Amanda chegaram finalmente a um consenso - era tarde da noite já, as estrelas piscavam sonolentas e a lua sorria em cima da catedral - e decidido que era tudo uma mentira, somente uma mentira, o viajante já havia desaparecido da cidade.
Recuperada de sua normalidade, Amanda desdenhou a história e esqueceu-se do viajante. Porém, contam as lendas, ela nunca mais foi a mesma. Diz-se que de vez em quando apareciam em seus vitrais o desenho de gatos empunhando floretes, de porcos navegantes e homens com garbosos casacos de pena de ganso, sem que seus pintores tivessem uma clara intenção de colocá-los ali, sem que nem soubessem porque o haviam feito. Vez ou outra surgiam lendas, ninguém sabia de onde, sobre um outro reino além do limite do mundo conhecido, onde animais falavam e organizavam expedições. Aos poucos a história dominou Amanda pelos caminhos mais improváveis. Seus personagens pareciam ter se tornado velhos conhecidos e símbolos antigos. Os palhaços de praça pública sempre contavam lendas de seu primeiro líder, um homem capaz de controlar os bonecos mais realistas como se controlasse outros seres vivos; e as sociedades secretas diziam terem sido todas fundadas pela extinta família Stark. Logo, não foi surpresa descobrir que surgiu um nova lenda natalina dizendo que o Salvador nasceu em uma estrebaria, em uma escura noite de Natal em que ninguém quis alojar seus pais perdidos.
A história, espalhada em vários fragmentos como eram espalhados os pequenos brinquedos do calendário azul, estava ali, em Amanda, mesmo que ninguém a percebesse se não seguisse os dias e juntasse as pistas.

quarta-feira, dezembro 24, 2008

O Dia de Natal

Quando Florentina abriu a porta um homem muito cansado e de roupas sujas abriu a boca:
- Por favor, eu lhe imploro. Andamos a cidade inteira e não há nenhum lugar para ficarmos. Se ao menos você pudesse encontrar algum lugar para dormirmos... Por favor, qualquer lugar serve.
Florentina pôs a mão rechonchuda por sobre a boca.
- Sinto muito! Estamos lotados.
- Por favor, eu e minha esposa precisamos de um lugar para ficar esta noite. Vê, ela está grávida. Estivemos viajando durante o dia inteiro e estamos cansados. Precisamos de um abrigo para passar a noite.
Florentina olhou para trás e pensou.
- Tudo o que eu tenho é a estrebaria...
- Servirá para nós.
A estalajadeira recebeu os dois hóspedes cansados e levou-os junto com seu burrico para o quintal. Os outros seguiram-na curisos para examinarem os viajantes tão cansados. Havia algo de excepcional no modo como caminhavam, no gesto que a mulher fazia para se apoiar em seu marido e no modo como a noite os envolvia, cálida e perfumada.
- Olhe! - sussurrou Percival para Lancelot, enquanto caminhavam na grama fresca - Uma estrela cadente. O que será que está acontecendo?
- Espero que eles fiquem confortáveis. Seria ruim se tivessem o bebê antes de chegarem a seu destino.
Na estrebaria, o Rei Michaelis conversava com o burrico, que calhara de ser um animal falante:
- Nós estamos muito cansados. Não sabem o quanto estes dois têm se esforçado. Caminhamos durante muito tempo e nunguém quis nos receber em nenhum lugar da cidade.
- Espero que nas próximas isto seja melhor. Nesta época do ano Florença está cheia de peregrinos, não é à toa que tudo esteja lotado. Mas não se preocupem, a estalajadeita é uma boa mulher e fará de tudo para manter seus hóspedes confortáveis.
Florentina colocou a mulher deitada contra a palha. Ela sussurrou assustada:
- Acho que ele vai nascer.
O marido tomou-se de medo e cercou-a de cuidados.
- Venha - falou Stark - vai ficar tudo bem, deixe que as mulheres cuidem de tudo.
Rufus, Ibsen e o marido esperaram do lado de fora. Florentina saiu depois de um momento e declarou:
- Ela está tendo o bebê. Ele nascerá daqui a pouco.
O marido se abaixou desesperado.
- Por favor, cuide de minha esposa; ela é tudo o que eu tenho e eu a amo.
- Não se preocupe - disse Rufus - Ela será muito bem cuidada. Existem ajudantes nos lugares mais inesperados do mundo.
Lá dentro, Lancelot e Percival corriam para cumprir as ordens de Florentina.
- Mais água quente!
- Uma toalha!
- Rápido, façam-na sentir-se calma.
A mulher, assustada de ter seu filho em um país estrangeiro, sentia-se sendo levada pela alucinação. Imaginava estar vendo coelhinhos pularem ao seu redor e fazendo de tudo para deixá-la confortável. E dois gatos falantes a diziam: Acalme-se.
Estará tudo bem, estamos aqui para ti.
Florentina cuidou de tudo. Depois de algum tempo, saiu para fora da estrebaria e anunciou aos três homens e aos animais que esperavam lá fora:
- Seu filho nasceu.
Entraram e se sentiram contagiados por uma felicidade sem tamanho. Chacauner, vendo o bebê, esqueceu-se de toda raiva e decepção. Daquele dia em diante ele nunca mais seria levado pelo desejo de vingança.
- É tão pequeno! - disse Pigmaleão - Precisamos cuidar dele.
Todos se inclinaram ao redor do monte de palha onde a mãe deitada segurava seu filho.
- É um bebê especial! - anunciou Percival feliz - Para nascer aqui e assim, neste dia tão cheio de aventuras, só sendo mesmo um bebê único.
- Ele merece todas as nossas bênçãos - disse Lancelot - Vamos vocês, cumprimentem-no.
O pai deitou-se ao lado do filho e da esposa e acariciou o bebê.
- Ele é lindo - disse ela.
- Ele é nosso filho - disse ele.
- Então eu seri o primeiro a prestar minhas homenagens! - anunciou o peru - E como mais ninguém quer isto, eu te entregarei um dos objetos por mim escondidos.
E entregou-lhes o calendário encantado.
- Dizem que ele traz um mistério consigo. E os brinquedos irão distrair o bebê por muito tempo. Espero que gostem de meu presente.
Depois vieram os dois capitães. Pigmaleão conduziu seus marinheiros para admirarem o bebê que nasceu em uma estrebaria e Da Gama prestou junto ao seu Esquadrão uma singela reverência.
Chacaunac se aproximou.
- Eu não tenho nada a oferecer, a não ser uma promessa. Tentarei fazer o máximo de bem possível e o mínimo de mal possível de agora em diante. E abandonarei meu nome de Chacaunac para assumir novamente meu nome de Chamaleão, como deveria ter sido desde o começo. Na verdade, eu é quem deveria estar agradecendo pelo presente que recebi.
O Rei Michaelis, Stark e Rufus se enfileiraram.
- Como Rei do Reino dos Gatos eu ofereço ao bebê meu florete. Pois ele será um homem poderoso e hábil e aprenderá a governar com justiça.
- Como herdeiro de uma longa família de espiões eu ofereço a ele meu anel cheio de segredos. Pois ele desenvolverá sua curiosidade e inteligência, chegando a ser um dos homens mais espertos de seu tempo.
- Como um homem que fabrica fantoches, tudo o que posso oferecer é um boneco. E espero que ele se torne alguém capaz de trazer a alegria para os outros e pensar sempre na felicidade e nos sentimentos de todos.
Florentina se aproximou e declarou:
- Se os três já terminaram de trazer seus presentes eu irei oferecer algo mais: comida para os pais e água para o filho, pois todos precisam se alimentar.
E da cozinha veio o jantar. Em poucos minutos a estrebaria se tornou o lugar mais confortável de toda estalagem.
- Muito obrigado por terem nos recebido - disse o marido - Obrigado por abrirem as portas mesmo não havendo lugar. Obrigado por nos ajudarem todos.
- Fique tranqüilo e não se sinta obrigado a retribuir - disse Percival.
- Por que você disse isso? - disse Lancelot - Ele nem estava pensando em retribuir, mas agora que você mencionou ele se sentirá obrigado!
- Mas eu falei apenas que não precisava.
- De um modo que parece que precisa.
- Então, se você se pensa um gato tão esperto, porque não o cumprimenta melhor?
E Lancelot se inclinou, retirou seu chapeú emplumado e cumpriu uma extraordinária reverência.
Percival, com uma pontada de inveja, resolveu superá-lo.
- Para demonstrar meu carinho por este bebê, eu me ofereço como seu padrinho!
Todos arregalaram os olhos.
- Você tem certeza de que quer fazer isto? - o Rei Michaelis perguntou - Terá de ensiná-lo sobre nosso Reino quando crescer e sobre os animais. E terá que garantir do bebê o melhor dos comportamentos para que não traia nosso segredo.
- Se os pais aceitarem, eu aceito - anunciou Percival.
A esposa levantou-se ligeiramente do monte de palha e sorriu:
- Nada me deixaria mais feliz do que ter um honrado cavaleiro felino cuidando de meu filho. Aceito seu pedido.
- Mas não pode deixar ele sozinho! - disse Lancelot - Ele vai cometer todo tipo de erros e deixar seu filhe em apuros. Um gato tão imprudente como Percival não pode ser padrinho de um bebê tão importante. Eu me ofereço como co-padrinho para ajudar!
- Você está só tentando roubar minha cena - disse Percival.
- De modo algum. Eu pretendo apenas que o bebê sobreviva à juventude.
Diante da discussão entre os dois gatos, os presentes só puderam sorrir.
Nasceu na estrebaria um pequeno bebê que tinha como padrinhos dois gatos, um preto e outro branco. Cercado de fantásticos animais e dois rapazes habilidosos, ele cresceria envolto em um mistério.
Será que o calendário contou toda sua história? O passado podia acontecer no presente?
As estrelas desceram naquela noite. Uma a uma as luzes cadentes riscavam o céu e iluminavam a terra com um brilho fugaz, acendendo uma pequena esperança em cada um que as via.
Ao redor do casal com seu filho, montamos assim o presépio:
Dois gatos, seus padrinhos, um de cada lado com floretes e chapéus de plumas muito elegantes. Três reis à direita: o rei dos gatos, o rei dos espiões e o rei dos bonecos. À esquerda um ladrão arrependido. Dois pastores, um porco e outro coelho, com seus respectivos rebanhos e seguidores. Uma estalajadeira gorda e agora feliz, também com um bebê no colo, cuidando de tudo. Ao lado ainda se vê um peru contente e rechonchudo, feliz por ter sobrevivido ao Natal.

terça-feira, dezembro 23, 2008

Um último dia para o Peru

- Ora, sou muito precavido! - gabou-se o peru - por isso todos os animais confiam em mim como seu banqueiro. Eu sei tudo antes de acontecer! Foi por isso que chamei o Esquadrão dos Seis Focinhos quando vi o cavalo correndo atrás dos dois. Foi por isso que trouxe isto daqui:
E mostrou um pequeno baú.
Lancelot, Percival e o Rei Michaelis - agora dentro da taberna, descansando com uns copos d'água - olharam para o baú.
O peru abriu-o devagar. Lá, enrolado, estava um pano.
Chacauner acenou com a cabeça.
- Sim. É ele.
Lancelot retirou o pequeno pano e desenrolou-o com cuidado. Era um calendário do mês de dezembro, belamente enfeitado sobre um fundo azul. Cada dia continha um animal de brinquedo pendurado.
- Vamos ver o que está em cada dia! - disse Percival entusiasmado.
No primeiro, a figura de um gato preto. No segundo um gato branco.
- Acho que já vi isto antes - sorriu o Rei - Mas como será que funciona? Serão pistas?
O terceiro dia tinha um porco rosado pendurado, o quarto era um ganso de penas brancas. Haviam dias de coelhos e dias de cavalos. Um dia para um caminhão, para uma galinha e para o próprio calendário.
Os dois últimos dias - vinte e quatro e vinte e cinco, pois se tratava de um calendário natalino - estavam sobrepostos. Vinte e cinco era a porta que cerrava o dia vinte quatro.
- Nele está escrito a verdadeira história de natal - explicou Chacauner - Eu pensei em abrir e ler, para poder desmoralizar o Vaticano expondo sua mentira. Porque a lenda do Natal que os padres vêm contando durante anos é mentira. Se eu soubesse a verdade eu poderia vingar a família Stark.
- Não há necessidade disto agora - anunciou Stark - Eu entendi sua mensagem. Nada mais de ódio, nada mais de derramar sangue. Prometo que me dedicarei ao bem agora.
- Boas palavras - disse Da Gama - dignas de um membro do Esquadrão dos Seis Focinhos. Deveríamos todos tentar fazer "o máximo de bem possível e o mínimo de mal possível".
- E não vamos ler? - perguntou Percival - Estou morrendo de curiosidade!
- Façam o que quiserem - disse o peru - Foi o gato de óculos que pediu para esconder este baú, então estou devolvendo. Acredito que não há mais necessidade de guardar este objeto.
- Não há mesmo - disse Lancelot - É hora das coisas saírem e se revelarem.
Todos sorriram admirando os pequenos brinquedos que enfeitavam o fundo azul do pano. Cada dia tinha sua história, e eles pensavam que sua história era apenas mais um reflexo do segredo que ele trazia em si.
Florentina, muito amável, trouxe comida para todos.
- Obrigado por manter sua promessa gato branco - ela agradeceu - Não compreendo exatamente o que está acontecendo aqui, mas vocês me salvaram e salvaram minha estalagem, são mais do que bem vindos.
Todos sorriram de volta. Pigmaleão não podia imaginar um sorriso mais rechonchudo e feliz do que o da boa estalajadeira. Secou uma lágrima escondido.
- Então não vamos mesmo abrir a vigésima quarta casinha? - perguntou Rufus.
- É claro que sim! - disse Percival, já avançando com suas patinhas para abrir o que as portas do dia vinte e cinco escondiam. Começou veloz e depois foi devagarzinho. Pegou com as patas em lentidão e levantou o pano cuidadosamente.
No dia vinte e quatro se via o desenho de uma árvore de natal. Muito verde e muito iluminada.
- É só isso? - perguntou Rufus se debruçando sobre a mesa.
- Deve ser só uma pista. Tem de haver algum código que decifre isso - disse o Rei Michaelis.
- Ou nós não podemos entender porque ainda não aconteceu... -disse Chamaleão, por trás de seus óculos grandes.
- Mas é claro! - disse Florentina - Que memória a minha. Estava tão confusa que não me lembrei até ver vocês aí com este calendário. Hoje é dia de Natal!
- Hoje é o dia vinte e quatro? - perguntou Lancelot.
- Sim, e precisamos comemorar de algum modo.
- Claro que precisamos! - disse Pigmaleão - Uma pequena festa para nossa vitória e pela conclusão de um mistério.
- Quase conclusão - disse Lancelot - Ainda não entendemos o que a verdadeira história de natal quer dizer.
Os outros se levantaram.
- Então não há mais motivo para vingança - disse Chamaleão, sorrindo feliz - Estou livre para viver agora?
- Estamos todos - disse Stark - Mas toda essa energia, toda essa vontade... o que fazer com tudo isso? São tantos caminhos que não sei o que escolher!
- Eu sinto o mesmo - suspirou o ex-vizir do Reino - Vamos fazer algo incrível juntos?
O Rei suspirou e também abandonou o calendário.
- As coisas parecem resolvidas, não é mesmo?
- Como assim majestade? - Percival perguntou.
- De um modo ou de outro, tenho o sensação de que tudo vai se encaixar daqui pra frente. O futuro vai chegar, qualquer que seja ele.
Estavam todos contentes e sorrindo.
Penduraram o calendário azul em uma das paredes e viram a noite cair.
Quando estava tudo escuro e todos se preparavam para dormir - qualquer que fosse o futuro que encontrariam ao acordar, estariam prontos para ele! - ouviram um ruído.
- Disfarcem-se! - ordenou o Rei e todos os animais de quatro patas desceram ao chão e pararam de falar. Stark até tirou o casaco e Rufus escondeu os fantoches.
Alguém batia na porta.
Quando Florentina abriu...

segunda-feira, dezembro 22, 2008

Segundo dia do Coelho

- Estamos perdidos! - gritou Rufus - Eles nos cercaram!
- Não se precipite - disse Lancelot, voltando ao seu estado natural, atento para a batalha e em domínio da situação - Deve haver um modo de escaparmos.
Dentro da taberna estavam Lancelot e Percival, lado a lado e floretes desembainhados; Rufus, Stark com seu casaco e Chacauner (também conhecido como Chamaleão ou mesmo Peregrino Noturno) já livre de suas cordas; ao lado, o capitão Pigmaleão, pronto para enfrentar os enviados do Vaticano e Da Gama, com seus óculos e cachecol; no fundo da sala, a senhora Florentina, ainda acariciando seu bebê que estava surpreendentemente silencioso.
Do outro lado do cerco de soldados, os homens de olhos vazios controlados por Stark perderam toda sua mobilidade graças a um feitiço dos padres. Os marinheiros ainda se escondiam no arbusto, junto com os coelhos do Esquadrão dos Seis Focinhos e o peru banqueiro, morrendo de medo.
- Abram mão da sua liberdade e do calendário e o Vaticano lhes proporcionará um julgamento justo! - gritou padre Coro, o enviado para o encontro com o Peregrino Noturno.
- Justo uma ova! - gritou de volta o ladrão do calendário - Não podemos confiar nos homens que mataram a família de Ibsen: vamos à luta!
Percival estava pronto para ecoar o grito quando Lancelot lhe interrompeu:
- Sim, mas pensemos um pouco antes.
- Eu posso enfrentar alguns deles - disse Stark - agora que tenho meu casaco de volta...
- Quem sabe meus fantoches? - disse Rufus, alinhando as cordas de seus bonecos.
- Meu Esquadrão também estará pronto! - anunciou Da Gama.
Do lado de fora Padre Coro parabenizava um mercenário. O cavalo de peito inflado e armadura brilhante que perseguira Percival e Pigmaleão pelas ruas de Florença estava mais do que feliz de trabalhar para alguém tão poderoso e influente. Tudo o que precisara fazer foi denunciar seu antigo empregador e estava feito!
- Queimem a taberna - disse o padre, um olhar de desprezo em seu rosto, um movimento parco da mão na direção do edifício.
Os soldados baixaram suas lanças e avançaram. E foi então que a porta se abriu sozinha e um grande casaco branco saiu de dentro.
- O que é aquilo? - perguntou o cavalo - Parecem ter várias mãos e vários troncos dentro daquele casaco.
- Fiquem firmes! - anunciou a voz de Lancelot - Porque nós não nos rendemos.
O casaco branco sumiu e reapareceu atrás de Padre Coro. Ele deu um salto e estava atrás dos soldados. Em outro salto um coelho pula de dentro do casaco e cai em uma mota. Em poucos passos ele atravessa o quintal e está diante do cavalo. Uma mão puxa cordas e uma galinha que estava ao lado de Padre Coro envolve o mercenário em fios finos e resistentes. O casaco então se torna uma mancha branca a voar pelo quintal em surpreendente velocidade. Três pequenos floretes, do tamanho que gatos usaria, derrotam todos os guardas em poucos instantes. Animais pulam do arbusto sob o comando de um coelho de cachecol e óculos de aviador e tiram as armas das mãos dos enviados do Vaticano.
Rapidamente a situação se inverte. Stark salta de um lado a outro, acostumado com a velocidade que as penas de ganso encantadas proporcionam. Leva florete contra espada, pata contra braço e transforma o quintal inteiro em um campo de disputa entre o casaco e os vários soldados.
Padre Coro tenta fugir quando um porco salta sobre ele e o derruba.
- Eu o peguei! - grita Pigmaleão e tudo acabou. Os soldados foram derrotados.
- As Forças conjuntas te derrotaram - anunciou Lancelot - O calendário voltará a pertencer ao Reino dos Gatos!
Tontos, todos saem de dentro do casaco de pena de ganso.
- Este é o fim de seu domínio injusto - falou o vizir Chacauner - Esperam que se arrependam de todas as maldades que têm cometido.
Os soldados, humilhados por se verem rendidos por um bando de animais, nada responderam.
- O Esquadrão cuidará de tudo - anunciou Da Gama, vendo que seus coelhos mantinha tudo sobre controle - Hoje fizemos algo de uma magnitude inesperada para a história deste Esquadrão!
Padre Coro engasgava de fúria.
- É melhor acreditar - disse Pigmaleão - Nós fomos rápidos demais para os soldados. Da próxima vez tentem trazer anjos.
Stark, o único que se mantivera dentro das penas brancas, olhava para Chamaleão, também conhecido como vizir Chacauner:
- Você vai então se dedicar a destruir o Vaticano mesmo assim?
- Sim, penso que quando tiver o calendário novamente em minhas mãos poderei retomar minha missão.
- E aceitaria minha ajuda? Se você quiser, te ajudarei a espalhar a verdade. Você não precisa se dedicar ao ódio mais, assim como não precisa mais ficar sozinho.
Os dois amigos de infância fizeram as pazes.
E, chegando por um dos misteriosos caminhos do mundo, veio um destacamento do exército do Reino dos Gatos, junto de seu Rei Michaelis.
- Assim que meu vizir desapareceu eu tive que vir e descobrir o que estava acontecendo! Alguém pode me explicar o que está acontecendo? Ying, Yang, querem me contar o que houve?
Garantida sua vitória sobre os soldados do Vaticano, Lancelot só podia sorrir. Feliz e contente, ele fez sua reverência ao Rei.
- Agora só há um mistério!

domingo, dezembro 21, 2008

E um dia Para um Cão

- Eu não posso acreditar que você esteja vivo! Isto é bom demais, que notícia boa! - dizia Pigmaleão.
- Eu sei, eu sei - disse Lancelot, empurrando o focinho rechonchudo para o lado - É a quinta vez que você me diz isto. Mas me diga uma coisa: aquele coelho é mesmo confiável?
- É o mais rápido que temos - falou Da Gama, chefe do Esquadrão de coelhos - Ele vai voltar em um minutinho com aquilo que você precisa.
O gato tamborilava impaciente. Era óbvio que os dois não durariam muito dentro da taberna. Stark conseguiu afastar todos os pedestres curiosos do entorno e mandara o taberneiro para fora, apesar de sua mulher ainda estar presa na casa que tentava destruir.
- Abram esta porta! - ele gritava - É apenas um gato que nos impede, não deveria ser difícil empurrar tudo para dentro.
Lancelot olhou para trás. Os marinheiros de Pigmaleão, que também observavam tudo escondidos em uma moita, abriram espaço para que um coelho pequenino passasse.
- Muito bem Nino! - Da Gama falou - Eu disse que ele era veloz.
Atrás do coelhinho chegava um peru, segurando um longo objeto branco na mão.
- Está aqui senhor gato - sorriu o banqueiro dos animais - Você foi meu cliente mais rápido. Ora, mal pediu para guardar já está pedindo de volta. Aqui está, o casaco de pena de ganso.
Lancelot reitrou o casaco de suas asas com um olhar agradecido.
- Todos à postos? - ele perguntou e Pigmaleão, Da Gama e os outros animais responderam que sim, que fariam o que mandara.
Lancelot subiu no topo da árvore. Sorriu enquanto ajeitava seu chapéu emplumado e atirava uma pedra em Ibsen Stark.
O único descendente de uma tradicional família de espiões virou os olhos encolerizados, pulsando de tanta fúria. Sua raiva aumentou ao ver que o gato preto que tão desesperadamente perseguia estava em cima da árvore, e não dentro da taberna.
- O que você faz aí?
- Estava passeando. Decidi cumprimentar um velho conhecido. Olá Stark, como tem andado sem seu casaco de pena de ganso? Mais lento, eu presumo.
As imprecações que se seguiram foram acompanhadas de um movimento rápido dos soldados de olhar vazio na direção da árvore.
Do arbusto saltou uma mancha branca. Enrolados no casaco de ganso o porco e o coelho estavam indistingüíveis. Foi preciso apenas um segundo para que a espada do capitão estivesse apontada para o pescoço do homem chamado Stark.
- Este negócio é mesmo rápido!
- Ordene que parem - disse Lancelot - Seus soldados obedecem apenas à sua vontade, não é mesmo? Então você não tem chance de vencer: é nosso prisioneiro agora. Obedeça-nos, por favor.
- Por favor? - falou Ibsen Stark, sorrindo por trás da lâmina que lhe tocava a garganta.
- Rápido - vociferou o gato preto - Ainda tenho que capturar o Peregrino Noturno! Renda-se logo para que eu possa libertar meus amigos!
O sorriso de Stark rapidamente se desfez. Seu rosto demonstrou uma emoção que Lancelot não estava preparado para ver e que não teve tempo de decifrar.
- Ele está aqui?
Agora sua voz soou mais fraca, mais indecisa do que antes.
- Estava. Ele veio me ver em um dos quartos. Você se rende?
Stark abaixou a cabeça e todos os homens de olhar vazio que cercavam a estalagem desceram ao chão, como se dormissem.
- Esperem, estamos falando de um gato de óculos e listras? - perguntou Da Gama por detrás do tecido sobressalente do casaco - Este é o Peregrino Noturno, não é?
- Sim, este é o vizir. Este é o traidor que roubou nosso tesouro. - disse Lancelot, algo dentro de si dizendo que precisava se preocupar.
- Vizir! - ecoou Stark, os olhos assombrados.
- Mas ele acaba de entrar ali! - falou o coelho - Agora há pouco, pulou pela chaminé! Se ele é o ladrão...
... Então Percival e Rufus estão em apuros!
Lancelot pulou da árvore para o chão e desatou a correr para a estalagem.
Pigmaleão gritou-lhe "Espere, não é bem assim!" mas o gato não podia escutar. Diante da distração do porco, Stark escapou de sua espada e correu atrás do gato preto.
Os dois chegaram à porta da taberna e juntos começaram a bater na porta. Tentaram empurrar as cadeiras viradas mas não conseguiram em poucos segundos o que os homens de olhar vago estiveram tentando por muito tempo.
- Eles estão em perigo!
Nesta situação, Lancelot não podia deixar de expressar-se em voz alta.
- Dê-me o casaco - pediu Stark - Eu posso entrar usando o casaco.
Os dois se olharam.
Pigmaleão e Da Gama apareceram subitamente ao seu lado, depois de se desembaraçarem das penas de ganso.
Lancelot não pensou duas vezes. Retirou deles o casaco e deu a Stark.
- Você não vai fugir?
Stark encarou-o de olhos arregalados e o gato teve certeza que esta possibilidade nunca lhe passara pela cabeça.
O rapaz vestiu o casaco e em um segundo já estava no telhado. Veloz como sempre entrou pela chaminé e o silêncio tomou conta do quintal.
- Precisamos te explicar... - disse Pigmaleão, mas Lancelot não o deixou terminar. Toda sua atenção estava dentro da taberna - Nós
- Escute - disse Da Gama - Não é preciso tanta pressa, porque
E então a porta se abriu. Lancelot esperava encontrar qualquer coisa. O que podia esperar de um traidor? Ao invés disso, que surpresa, quem abriu a porta foi o próprio Percival.
Os dois amigos se encararam frente a frente. Deram sorrisinhos até que Percival se lembrou de gritar:
- Rápido, ele vai desamarrá-lo!
Lancelot entrou na taberna e viu que Rufus e o gato branco haviam desmontado a própria barricada e que o vizir Chacaunar estava preso e imobilizado pelas cordas de um dos fantoches. Ao seu lado, Stark tentava tirá-lo do nó.
- Nós sabemos de tudo - Da Gama falou lá atrás - Nós havíamos investigado e descoberto que o vizir era o ladrão.
- Ele entrou aqui e tentou nos enganar - Percival falou sorrindo de orelha a orelha - Mas nós o enganamos primeiro.
Lancelot encarou a situação novamente. Então estavam todos à salvo?
- Tão precipitado! - disse Rufus sorrindo, suas mãos ainda segurando um fantoche de galinha - Nem parece a ação do pensativo gato preto.
Ao seu lado, Stark ainda lutava contra os fios que prendiam o vizir, visivelmente emocionado.
- Não se preocupe Chamaleão. Eu vou te soltar daqui.
O traidor, por sua vez, encarava o chão, como um adversário que se sentia humilhado demais pela derrota.
Lancelot rapidamente dominou a situação:
- Se está tudo bem, vamos organizar tudo. Eu quero que você me explique o que está acontecendo aqui Chacauner. De onde este homem o conhece e por que ele te chama assim?
O vizir soltou-se das cordas e ajoelhou-se triste no chão.
Stark sorria por tê-lo livre, quase esquecido dos outros na sala.
- Este homem e eu éramos amigos - falou Chacauner - Mas isto foi há muito tempo atrás...
- Eu nunca te esqueci Chamaleão - falou Stark comovido - Eu sabia que te veria de novo.
Os dois se olharam e os gatos puderam respirar aliviados. Seus inimigos haviam perdido todo ar de hostilidade. Então Chacauner contou sua história:
- Eu era o gato da família Stark, muito antes de me mudar para o Reino. A famosa família de espiões me tratava bem, mas meu favorito era seu filho mais novo, o pequeno Ibsen Stark. Eu e ele éramos grandes amigos e tínhamos todo o tipo de aventura juntos. Fui eu quem o ensinei sobre o Reino dos Gatos e sobre os outros animais que falavam.
- Eu ouvi falar disso no Bar da Garça! - disse Pigmaleão, tirando seu chapéu em respeito - Disseram que ele foi iniciado nos mistérios de nosso mundo por seu querido animal de estimação, mas haviam dito que era um cão...
- Sim, porque eu fiz de tudo para encobrir meus rastros. Queria que meu plano fosse perfeito. Foi isso que me manteve vivo durante estes anos todos. E precisei deste plano porque um dia nossa felicidade acabou. Stark e eu estávamos juntos quando recebemos a notícia de que o Vaticano estava extinguindo as famílias espiãs. Os pais de Ibsen sucumbiram primeiro. Um a um seus parentes foram desaparecendo e foi graças aos meus contatos entre os animais que o mais jovem membro da última família de grandes espiões sobreviveu. Nos escondemos em Florença e depois no mar, à bordo do barco branco, uma das últimas possessões dos Stark. De um dia para o outro eu e ele estávamos sozinhos no mundo, sendo perseguidos por todos. Naquele dia eu jurei vingança. Eu prometi que faria de tudo para acabar com aqueles que destruíram a vida do meu querido Ibsen. Por isso, quando soube do calendário - em uma lenda entreouvida em uma taverna de além-mar - eu sabia o que precisava fazer.
- Em primeiro lugar, abandonei Ibsen. Eu não queria que ele fosse consumido pelo meu ódio.
- Você não devia ter feito isso - Stark falou - Eu teria te ajudado, eu teria feito tudo para destruir o Vaticano, como você.
- Você não entende... Eu estava cansado de tanto ódio. Eu queria que você crescesse com amor e gratidão e que a última coisa na qual pensasse fosse em vingança. Por isso entrei para a chancelaria do Reino dos Gatos, apaguei meu passado e passei a viver como Chacauner, o dedicado servidor. Logo me tornei vizir e tive nas mãos a chave do cofre que guardava o calendário e com ele o segredo capaz de destruir o Vaticano e terminar finalmente com esta história de sangue e morte. Tudo o que eu fiz foi para criar um futuro melhor para meu querido Ibsen. Por favor, eu lhes imploro, deixem que a reunião aconteça normalmente, deixem que eu me encontre com o enviado do Vaticano para acabar com isso.
- Infelizmente isto não será possível - disse Lancelot - O que quer que você tenha para enfrentar terá que fazer ao nosso lado.
- Sim! - gritou Stark - Eu estive procurando por você durante muitos anos! Me tornei um dos maiores espiões do mundo na esperança de achar alguma pista, algum gato que se parecesse com o Chamaleão que eu conhecia... E agora eu vejo que você mudou, que se tornou vizir e importante. Que tem nas mãos tanto poder. Por favor, eu te peço, não me deixe sozinho novamente.
Chacauner baixou os olhos.
Os animais e homens ali presentes não lhe tinham mais nenhum sentimento amargo. Apesar da confusão que causara, eles o perdoavam.
- Nós não queremos que tudo termine em destruição e morte novamente - disse Lancelot - diga-nos então: para quê serve o calendário?
- Antes disso... - falou o coelho Da Gama - Acho que temos um pequeno problema a enfrentar.
A taberna estava cercada por soldados. Padre Coro, o enviado do Vaticano, sorria através da janela.
- Entreguem o calendário. Não há chance de escaparem.

E os dias conjugados da mesa e da cadeira

No dia seguinte, ao acordar, Rufus se dirigiu à pequena taberna gerenciada pelo marido de Florentina e sentou-se em uma mesa de onde podia observar o salão e ao mesmo tempo ficar de fora dos acontecimentos. Estava cansado pela noite mal dormida. Seus olhos grudavam em seu rosto, se recusando a abrir, mesmo quando o taberneiro trouxe seu café-da-manhã.
Lancelot devia estar ainda mais preocupado. Afinal, tinha visto o vizir do Reino dos Gatos, possívelmente o felino no qual mais confiava, andar escondido pelas sombras próximas à estalagem.
O que poderiam pensar disso? Certamente o vizir Chacaunac não seria o... Não, não tinha mais o que pensar! Este pensamento torturara os dois viajantes durante todo o final de noite que passaram na estalagem, impedindo-os de dormirem, obrigando-os a se revirarem de novo e de novo nas colchas macias.
Cansado de pensar seguidamente o mesmo pensamento, Rufus havia se levantado e ido até a taberna para comer alguma coisa.
Então um rapaz de cabelos compridos e pretos sentou-se ao seu lado. Ele parecia ainda mais cansado do que Rufus, com uma palidez anormal iluminando seu rosto fino.
- Também teve uma noite difícil? - Rufus perguntou, recebendo de volta apenas um olhar de desprezo.
Concentrando-se em sua comida, o filho do moleiro não percebeu dois homens de olhar vago se posicionando atrás do rapaz. Um deles se abaixou e disse algo. Imediatamente o rapaz de cabelos pretos se levantou - um olhar triunfante e louco em seu rosto! - e disse em voz alta:
- O gato preto está aqui!
Um dos homens apontou para a parte de trás da estalagem e Rufus sentiu um frio na barriga. Mesmo sem o casaco de pena de ganso ele teve certeza: aquele rapaz era o homem do navio branco, o espião que queria capturar Lancelot e o calendário!
Os três se levantaram da mesa e caminharam para fora da taberna. Atrás foi o marido de Florentina, perguntando se precisavam de algum quarto e por que iam para a estalagem?
Imediatamente Rufus também se levantou. Para onde ia agora? Lancelot estava dormindo ainda? Será que seria pego em uma armadilha? Consciente de que nunca seria capaz de enfrentar os homens de Stark, Rufus se sentiu impotente demais. Tinha que dar um jeito de dete-los, mas como?
Teve uma idéia que soube ser incipiente. Mas, sem pensar em nada melhor, correu para fora da taberna pela porta da frente, deu a volta na casa e pôs-se de frente para o muro que circundava uma dos lados do quintal. O homem chamado Stark teria que estar passando por ali para ver o que iria fazer, mas valia a pena tentar.
Rufus tirou de dentro de sua mochila (que agora carregava sempre consigo) o boneco de Lancelot que havia feito e fez com que ele caminhasse por sobre o muro. Suas mãos escorregavam o tempo todo, na tentativa de controlar um boneco acima de si e de fazer com que os movimentos parecessem reais.
No quintal, Ibsen Stark parou.
- Ali está o gato! - ele disse - Ladrão, patife. Enganador! Devolva meu casaco.
Rufus moveu a cabeça do boneco para o lado, simulando uma risada.
- Você pensa que estamos brincando? - e em seguida sussurrou algo inaudível, provavelmente para um dos homens ao seu lado - Acabo de mandar que meu exército cerque esta estalagem. Assim tenho certeza que você não vai escapar.
O boneco caminhou displiscente pelo muro, sem medo algum.
- Devolva meu casaco, devolva minha honra! Eu serei o único a capturar o calendário perdido e a desmascarar o Vaticano!
E, perdendo a paciência, o homem chamado Stark mandou que seus homens pulassem por sobre o muro e pegassem o gato preto. Infelizmente para Rufus este era o limite de seu plano. Não havia como fugir, não havia como evitar ser descoberto agora!
Os homens saltaram e escalaram o muro. O filho do moleiro ainda tentou levar o boneco para longe, mas mãos velozes já vinham em sua direção. Então, os dois homens caíram e Rufus, olhando para cima, pôde ver contra a luz do sol um pequeno gato branco de florete em punho!
- Ninguém ataca meu companheiro! - bradou Percival orgulhoso - Mostrem-se vilões! Revelem-se aqueles que cairão pela minha espada!
E, virando-se para o boneco:
- Não se preocupe Lancelot. Você nem parece você mesmo, todo cansado e lento, nem sei como conseguiu se meter nessa enrascada. Mas fique tranquilo que vou te tirar desta situação!
Rufus arregalou os olhos. Sim, aquele só poderia ser o companheiro de Lancelot, o gato branco. Mesmo que ele tivesse confundido seu amigo com um boneco, ele parecia ser a única salvação para o filho do moleiro agora. Teria tempo de explicar tudo?
Stark grunhiu em desprezo.
- Você por aqui também. Será mais fácil pegar os dois então. Mas já vou avisando: meus homens cercaram esta estalagem e sugiro que se entreguem de boa vontade, pois esta não é uma luta que poderão vencer.
- Jamais! - gritou Percival, saltando na direção de um dos homens de olhar vago - Quem quer que seja você, eu não me renderei!
- Então não se lembra de mim? Só podia ser um péssimo espião mesmo. Que tipo de atrapalhados o Reino dos Gatos anda empregando? - disse Stark sorrindo e pulando para o lado. Imediatamente seu rosto se fez em uma careta, pois sua velocidade era muito inferior do que a que estava acostumado, tendo usado o casaco por tantos anos.
Rufus subiu no muro e jogou um fantoche de galinha na direção do segundo guarda, enrolando-o nos fios.
- Percival! - ele gritou - Nós temos que fugir, estes homens são fortes demais para nós, precisamos da ajuda de Lancelot!
O gato branco olhou para trás muito confuso.
- É o segundo hoje que me conhece sem que eu o conheça! - falou - Estou ficando louco? E o que é isso? Por que... o que Lancelote está fazendo nas suas mãos?
- É só um boneco - disse Rufus - Não há tempo para explicar, mas estou do seu lado.
Percival olhou ainda mais confusamente para os dois rapazes.
- Não sei o que está acontecendo, mas meu florete vai saber reconhecer a diferença. Saquem a espada e preparem as explicações! Estou furioso por terem usado o nome de meu companheiro em vão, pois então: Em guarda!

Enquanto isso, a cortina do quarto onde Lancelot ainda dormia moveu-se ligeiramente. O gato preto levantou-se e estava acordado em um átimo. Ali, no umbral da janela, estava o vizir do Reino dos Gatos, Chacaunac.
- Então você é realmente o Peregrino Noturno? - perguntou Lancelot.
- Sim - sorriu o vizir, por trás de seus óculos - Eu sabia que seria ruim mandar meus melhores homens para esta missão; vocês acabaram por descobrir tudo. Mas não faz mal, tinha de ser assim mesmo. Eu sinto muito.
- Então você roubou o calendário?
- Sim. Mas eu tenho minhas razões. Acredite, não foi por ganho pessoal ou por interesse próprio. Eu precisava daquele calendário.
- E você nos enganou a todos - disse Lancelot, colocando seu chapéu emplumado na cabeça.
- Por favor, peço que me perdoem - disse o vizir, fazendo uma reverência.
- O Rei, o Reino, nossa honra! Tudo foi perdido.
- Meu coração, mais do que minha honra, me impeliu a fazer isso. Eu sei que parece imperdoável e, de fato, não peço perdão. Peço apenas que espere este dia acabar. Logo mais, quando a noite chegar, eu irei me render e me entregarei para vocês. Mas ainda há uma tarefa que eu preciso realizar e, para isso, terei que ter certeza que os melhores gatos do reino não interfiram.
- Você vai entregar o calendário para o Vaticano?
- Não - disse Chacaunac, seu rosto resoluto e firme - Tentarei com todas as minhas forças evitar que isto aconteça. Porém, irei ao encontro, que se realizará aqui. Se sair vivo eu me entregarei e tentarei garantir que o calendário volte para o tesouro.
- O que há de tão importante nele?
- O dia 25 contém uma verdade perigosa. Preciso revelá-la.
Lancelot balançou a cabeça.
- Sinto muito vizir, mas meu coração me diz que devo capturá-lo.
Chacaunac sorriu.
- Eu sei que ensinei-os muito bem. Sejam sempre corretos e busquem a ação correta. Mas acredito que você tem assuntos mais urgentes para tratar agora... - e virou a cabeça para fora - Se eu não me engano, o seu amigo humano e Percival estão encurralados na taberna pelo homem do casaco de pena de ganso.
- Ele está aqui?? - disse Lancelot, sem saber se se referia à Stark ou à Percival.
- Sim, já te falei que este será o local da troca e Ibsen Stark é apenas outro tolo que tentará impedir que eu entre em contato com os agentes do Vaticano. Mas como eu disse, não temos muito tempo para conversar... Sendo mais preciso, seus amigos não têm muito tempo...
Lancelot pulou da cama e prendeu o florete à cintura.
- Vou ajudá-los e vou voltar aqui para te capturar. O que quer que esteja acontecendo, eu exijo que você nos conte a história!
Chacaunac baixou a cabeça.
- Eu sinto muito Lancelot...
E o gato preto já correu para fora da porta, para encontrar, do outro lado do quintal, a taberna cercada pelos homens de olhos vagos. Stark, em um dos cantos, comandava a derrubada de uma das portas, sob os gemidos do marido de Florentina:
- Minha mulher e um freguês estão lá dentro!
Stark resmungava:
- Abram esta porta e tirem-os de lá!
Lancelot se esgueirou para perto da confusão. Vários pedestres já pararam para olhar e pela única janela já se via que Rufus e Percival haviam usado as mesas e cadeiras como barricadas.
O gato não sabia como agir. Usar a seu favor o fato de Stark não ter percebido sua presença? Ou entrar com tudo como Percival faria, sem se importar com as consequências?
Olhou para o lado e encontrou Pigmaleão escondido atrás do arbusto, com um pequeno coelho ao seu lado.
Rapidamente um plano se formou em sua cabeça.

Lá dentro, Florentina gritava:
- O que está acontecendo?
E apertava seu bebê contra o peito, enquanto Percival e Rufus barricavam todas as portas e janelas com mesas e cadeiras que retiravam de dentro da taberna.
- Então me explique de novo... Este daí não é Lancelot?
- Não, é apenas um boneco! O verdadeiro Lancelot está dormindo em um dos quartos, por isso precisamos distrair a atenção dos homens que querem pegá-lo.
- Isso mesmo! - disse Percival - Vamos nos trancar aqui e fazer com que eles se ocupem de nós por um tempo. Tenho certeza de que Lancelot vai perceber e nos ajudar. Ou quem sabe o capitão Pigma que está lá fora possa pedir a Da Gama que chame mais coelhos!
- Coelhos? - perguntou Rufus. - Quer saber, não importa. Não temos tempo para isso.
As batidas na porta ficavam mais fortes. O homem chamado Stark ordenava que derrubassem a madeira, que destruíssem a taberna, que incendiassem tudo!
- Resistiremos! - respondia Percival e, virando-se para Florentina - Não se preocupe madame. Como um cavalheiro, nunca permitirei que você se machuque. Nada irá te fazer mal enquanto eu estiver aqui.
E Florentina, ainda assustada de ver um gato branco falar, apenas movia a cabeça.
Ao seu lado a lareira levantou pó. Rufus olhou assustado um gato emergir da chaminé: era castanho e listrado, com óculos grandes e um florete empunhado. Soube instintivamente que aquele gato estava ali para trazer-lhes problemas.
- Vizir Chacaunac! - gritou Percival - Que bom que está aqui! Como líder do Projeto nós realmente precisamos de sua ajuda.
- Eu não sei se... - começou a falar o filho do moleiro, no que o gato o interrompeu.
- Estou aqui para auxiliar meus dois bravos felinos - falou o vizir - Confie em mim e obedeça as minhas ordens: esta é nossa única chance de sobreviver.
Percival fez uma mesura delicada.
- Estou sob suas ordens! Estes humanos se arrependerão de terem enfrentado o Reino dos Gatos.

quinta-feira, dezembro 18, 2008

Os dias conjugados do Bebê e de sua Mãe

- O que o vizir do Reino dos Gatos fazia aqui? Será que ele soube do nosso contratempo marítimo e veio ver se a missão seria cumprida em ordem?
- Mas então por que ele se esgueirou daquele jeito? - Rufus perguntou.
- Quem sabe ele soube que Percival e Pigmaleão estavam aqui - disse Lancelot - E veio investigar por conta própria. Não encontrando ninguém ele fugiu, com medo de ser visto por olhos inimigos.
Rufus balançou a cabeça.
- Não sei se devo sugerir que nós encontremos com ele...
- Mas temos que avisá-lo que estamos aqui! - disse o gato.
- Mas você não disse que o Peregrino Noturno era alguém de dentro, alguém com grande informação sobre o tesouro dos gatos e acesso a ele? Você não acha... Um pouco suspeito que o vizir se encontre sem aviso aqui, nesta cidade, onde ocorrerá a troca?
Lancelot pensou durante muito tempo. Ele fora treinado dentro do Projeto Elizabeth para nunca desconfiar de seu líder e sempre fora leal aos princípios felinos. Por isso mesmo ele e Percival foram os escolhidos para realizarem esta missão: porque era absolutamente confiáveis. Depois de um longo tempo meditando, o gato anunciou:
- Estou cansado. Vamos procurar um lugar para cochilar.
Já amanhecia quando entraram no quintal da estalagem, os dois com muito sono e cansados.
Deitaram-se na soleira da porta e cochilaram juntos enquanto esperavam o lugar abrir. Amanhecido o dia, a porta se abriu. Era Florentina, a gorda e amorosa florentina, que saía para buscar o leite. Seu rosto se arredondou em surpresa ao ver os dois hóspedes que cochilavam na soleira.
Rufus se levantou devagar, esfregando os olhos e pediu um quarto para dormir. A moça sorriu e lhes apontou para dentro. Convidativa, fez com que se sentissem em casa e ofereceu um pouco de bolo e leite para comerem como desjejum. Lancelot, preocupado ainda, recusou a comida.
- Mas você é um gato muito bonito - ela falou, sem o tom de voz enjoativo que os humanos costumam empregar. Lancelot inclusive agradeceu com a cabeça - Se parece muito com um outro gato que veio aqui, alguns dias atrás. Só que ele era todo branco, e você é todo preto.
As orelhas do felino saltaram atentas. Então as informações estavam certas, Percival estivera aqui!
- Isso é uma coincidência incrível - sorriu Rufus - Pois estávamos jusatamente procurando por este gato branco! Será que ele está por aqui ainda?
- Não sinto muito - disse Florentina - Ele desapareceu outra noite. Acho que é assim - ela disse, dando de ombros e sorrindo muito tristemente, de um modo que fazia com que Rufus desejasse abraçá-la e consolá-la - Os gatos são tão independentes. Precisam de você só por alguns momentos.
E um choro começou no quarto. Florentina se desculpou e correu para onde estava o seu bebê. Rufus e Lancelot foram até o seu quarto e deitaram-se na cama.
Antes de dormir ainda escutaram os sons do dia começando. Algumas panelas faziam ruído na cozinho, os primeiros clientes apressados já chegavam, o marido de Florentina boçejava. E a mãe cantava para seu bebê.
O quarto apenas meio escuro, com as cortinas tentando afastar a luz. Rufus e Lancelot deitados na cama, escorregando pouco a pouco para o sono.
Florentina ninava seu bebê e, sem saber, ninava também os dois viajantes.
- Quer ouvir a história do Natal? - ela perguntava e a criancinha interrompia o choro para escutar.
- Há muitos anos, há muito tempo atrás, uma criança nasceu. Sua família estava viajando e não tinha nenhum lugar para descansar...
E então dormiram.

terça-feira, dezembro 16, 2008

Chega o Dia do Leiteiro, e com ele outra história

Rufus e Lancelot chegam à Florença e passam entusiasmado pelo grande portão principal. Nas ruas cheias de lojas e comerciantes, os dois se deixam levar pelas cores e ruídos, pelos aromas mais incríveis e pelos contadores de história.
Lancelot puxa Rufus para uma rua lateral e os dois conversam:
- Acho melhor guardarmos este casaco. Aqui ele chama muita atenção e pode ser visto por emissários do homem que nos persegue.
Rufus estava um pouco chateado de ter de se despedir do casaco de pena de ganso, afinal, ele havia se afeiçoado bastante a sua nova agilidade e equilíbrio sobre-humano.
- Onde podemos guardá-lo em segurança?
- Ainda não sei. Esta noite, quando a cidade estiver dormindo, irei procurar por um lugar seguro e por alguma pista do Peregrino Noturno. Não sei o que fazer para achar este ladrão de calendário...
- Você acha que os emissários do Vaticano já estão aqui?
- Talvez. Melhor investigar isto também.
Assim que a noite chegou, Lancelot pulou de telhado em telhado, explorando a cidade. Rufus esperava em um pequeno beco, examinando-se no espelho pela última vez.
O gato preto estava preocupado. Ele tinha que impedir o ladrão de fazer a troca com os homens do Vaticano, mas não sabia onde e quando o evento iria ocorrer. Seria ótimo se tivesse ajuda de Percival, embora neste momento, como saber onde o gato branco estava? Sem saber, os dois cruzavam seus caminhos nesta cidade, um desejando que o outro estivesse ali, cada um deles preocupado em avisar o outro de sua sobrevivência.
Tarde da noite Lancelot voltou. Rufus adormecera de leve por sobre umas caixas.
- Encontrei um lugar - disse o gato sorrindo. Guiando o rapaz pelas ruelas, ele chegou a uma portinhola onde se lia - indistingüível para os humanos, mas evidente para os gatos:
"Bar da Garça"
- Por aqui - disse Lancelot, entrenado no já conhecido recinto. Nesta noite, poucos animais se aventuraram fora de casa. Um par de cobras, um macaco, o mesmo colibri e só. Os outros clientes estavam assustados demais com o súbito aparecimento de um famigerado mercenário na noite anterior e não vieram.
- Ali está. Ele é quem pode nos ajudar: - Lancelot falou, apontando para um grande e robusto peru sentado no fundo - Boa noite, estou de volta. Este é o casaco de que lhe falei, queremos guardá-lo.
- Quem é este? - Rufus perguntou.
- Sou um tipo de banqueiro - disse o peru, com um sorriso no olho (pois ele reconhecia o casaco, ele mesmo havia escondido este objeto alguns anos antes. Mas o que houve com o homem chamado Ibsen Stark para ter perdido seu bem precioso?) - Ora, eu posso esconder qualquer coisa nesta cidade e mesmo que você apareça com um exército de tatus e cave por sete anos não encontrará o que eu escondi!
Rufus entregou o objeto com tristeza. Mas ele realmente chamava atenção. Andando pelas ruas esta manhã podia ver os rostos das pessoas se virando a todo momento para examinar o casaco de pena de ganso.
- Serei ligeiro - disse o peru com uma reverência - Esconderei isto muito bem. Podem voltar para pegá-lo a qualquer momento - e, diante do silêncio dos dois, não resistiu e perguntou:
- Mais alguma coisa?
Lancelot negou com a cabeça.
- Nem mesmo um... calendário ou algo assim?
Rufus deixou toda a surpresa transparecer. Lancelot, mais controlado, apenas puxou o florete e mirou o pescoço do peru.
- Ora, nesta época do ano, que diferença faz, morrer mais cedo ou mais tarde? É uma tragédia que você me considere seu inimigo...
- Vá falando: como sabe disso?
- Ora, sabe o que houve? Outro dia mesmo, um certo gato branco veio me perguntar de um gato preto e de um calendário e achei que...
Desta vez Lancelot deixou toda a sua surpresa aflorar.
- Percival! Ele está aqui?!
- Aqui, propriamente aqui, não. Bem, não sei mais. Vai saber para onde o levaram...
- Quem o levou? - gritou o gato, sem querer ameaçando mais ainda o peru com sua espada.
- Não se preocupe, foram amigos. Ele veio aqui ontem e foi atacado por um mercenário, um terrível mercenário, sabem como é... Todos tão felizes perto do natal, não sabem como é sentir-se ameaçado. Mas agora ele sabe, agora ele sentiu todo o terror desta época do ano... E está bem agora! - apressou-se em acrescentar - Eu avisei o Esquadrão dos Seis Focinhos e eles foram salvos.
- Esquadrão? - perguntou Rufus.
- Um grupo de coelhos que age nesta região. Eles estão com os dois.
- Eles?
- Ora, o gato branco e o porco.
- Fico feliz em saber que Pigmaleão sobreviveu também - disse Lancelot, guardando seu florete - Estou mais calmo agora que Percival está na cidade e que o capitão está bem depois de toda a calamidade que trouxemos para seu navio... Agora me diga, onde podemos encontrá-los?
- Um coelho passou aqui outro dia para me informar de tudo - disse o peru, alisando seu gogó - Não creio que eles voltaram para casa, mas ele me disse que eles estavam acomodados em uma estalagem das redondezas. Vale a pena procurar.
Lancelot imediatamente informou-se do endereço e, sabendo que o casaco de pena de ganso estaria seguro e poderia ser retirado a qualquer momento, puxou Rufus pela mão e sairam os dois pela portinhola.
Andaram apressados, esperençosos de reencontrar os amigos.
Pouco antes da estalagem, ainda na esquina da rua tranqüila, os dois pararam.
- Um leiteiro faz sua entrega - disse Lancelot - Vamos esperar que ele termine para podermos avançar. Não quero nada suspeito nos entregando...
Rufus acenou e se escondeu atrás da parede. O gato subiu no telhado e observou o quintal da estalagem.
Próximo à cerca, o leiteiro trabalhava devagar. Entregou um grande número de garrafas para a taberna da estalagem. Devia ser para todos os clientes que consumiam leite logo de manhã. O ar da noite estava muito fresco, muito convidativo para um gato.
Então, Lancelot viu uma sombra cruzar a rua. O leiteiro não vira nada, mas ele tinha certeza. A figura desapareceu tão veloz em uma das ruelas que o gato teve certeza de que nunca seria capaz de seguí-la, apesar de toda a sua vontade.
Pois ele tinha visto a sombra e era um gato ágil e sorrateiro. E ele teve certeza, apesar dos poucos instantes de surpresa que teve para olhar, que aquela figura era o vizir do Reino dos Gatos, o eminente Chacaunac.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

Mesmo os Coelhos têm seu dia

- Não se mova! - gritou um dos coelhos para Percival, enquanto os outros cinco pulavam sobre o cavalo e distraíam-no.
O coelho que gritara usava um par de óculos de vidros grossos e um cachecol de aviador. Ele se afastou do grupo e apontou para uma parede:
- Por aqui, por aqui, temos que escapar! - ele avisou. E, diante do olhar confuso de Percival e Pigmaleão, ele moveu um tijolo e, que surpresa! Uma passagem secreta se abriu naquele momento.
- Não vou nem pensar dessa vez - gritou Pigmaleão, entrando pela passagem escura. Percival ainda fez menção de olhar para o mercenário, preocupado com os coelhos que pulavam sobre ele e com seu duelo interrompido.
- Eles vão ficar bem! - gritou o coelho de óculos - Ande logo! É uma ordem.
Assim que o gato branco passou, o chefe assobiou e os cinco coelhos que imobilizavam o furioso cavalo marrom, pularam para o chão e sumiram rapidamente parede adentro. Quando o mercenário se recompôs, a passagem já estava fechada e os seus alvos desaparecidos.
Enquanto isso, em um túnel escuro, corriam os animais.
- E eu que achava que seria meu fim! - disse o porco - Achei que fosse virar torresmo, fosse me acabar nesse instante, fosse... sei lá o que eu pensei! Mas vocês nos salvaram.
- Muito obrigado - disse Percival, um tanto quanto lacônicamente.
- Não precisa agradecer - disse o coelho chefe - Meu nome é Da Gama e este é o famoso Esquadrão dos Seis Focinhos. Quando aquele mercenário saiu do Bar da Garça perseguindo vocês, o peru - conhecem o famoso banqueiro de animais? - nos chamou e pediu para salvarmos vocês.
- Não sei se precisava - resmungou Percival, correndo um pouco mais rápido pelo túnel - E onde este lugar vai dar?
- Nos arredores da cidade - disse Da Gama - Nós faremos o que pudermos para ajudar vocês. Afinal, nosso Esquadrão tem só um lema, não é rapazes?
E os outro cinco coelhos repetiram em uníssono:
- "Fazer o máximo de bem possível e o mínimo de mal possível".
- Exatamente! - exultou o chefe - E se vocês são os representantes do Reino dos Gatos, ficaremos mais do que felizes em servir sua missão.
- Então vocês podem saber de nossos problemas: - disse Pigmaleão animado - precisamos encontrar um calendário roubado do Vaticano há muitos anos atrás e que agora foi roubado dos gatos por um espião secreto e...
- O que houve com a nossa missão secreta? - disse Percival carrancudo - Achei que deveríamos guardar segredo!
- Mas estes senhores parecem confiáveis.
- E somos! - disseram os coelhos - Se vocês querem segredo, contem conosco para mantê-lo.
- Entremos por aqui - disse Da Gama, correndo por um túnel lateral - Faremos o que puder para reunir calendários, seremos seus ajudantes nesta missão.
Então Percival se animou.
- Mais do que isso - ele disse - Podem nos ajudar a encontrar meu companheiro? É um gato como eu, só que preto. Ele estava nessa missão consoco mas se perdeu em algum lugar no mar...
- Puxa vida, assim fica difícil! - disse Da Gama - Nós operamos mesmo aqui em Florença, mas se for te ajudar eu posso ativar as linhas comunicatórias coelhísticas. Em pouco tempo teremos todas as lebres daqui até a Pérsia procurando pelo seu amigo.
- Isso seria fantástico! - disse Percival, muito mais animado.
- Um calendário e um gato preto - pensou o coelho chefe - São estas as suas instruções para nosso Esquadrão?
- Sim senhor! - disseram o porco e o gato e Da Gama acenou para um dos coelhos que logo disparou por um túnel auxiliar e desapareceu na escuridão.
- Já nós ficamos aqui - disse o coelho chefe parando. Ele subiu uma pequena escadinha na parede do túnel e chegou à uma portinhola. Assim que a abriu, o ar da noite entrou debaixo da terra, fresco e perfumado - Aquele mercenário nunca vai encontrá-los aqui. Sabem que ele tem uma certa fama entre nós... Por isso quando o viu o senhor peru ficou preocupado. Quando as famílias de espiões foram extintas muitos mercenários desempregados passaram a fazer trabalhos para qualquer um. Entendam que é um pouco perigoso andar por aí hoje em dia.
- Posso imaginar alguém que nos quereria morto - disse Pigmaleão que, sem saber, acertava em cheio - Aquele homem de casaco de ganso adoraria ser o único a procurar o calendário.
Saíram do túnel no topo de uma colina. Ali havia um plantação de uvas adormecida e uma mesa de pedra, além de uma fantástica vista da cidade à noite.
- Por que não descansam um pouco agora que escapamos? - disse Da Gama - Acho que o mais seguro seria que fiquem aqui por um tempo. Até as coisas se acalmarem por ali.
- Mas não podemos deixar de procurar! - disse Percival - Como vamos descansar por alguns dias se o nosso prazo está ficando cada vez mais curto?! Nunca se sabe quando é preciso agir, quando será tarde demais!
- Entendo, entendo - disse o coelho - Mas por favor, se acalmem. Vamos decidir o que fazer primeiro...
E então contaram ao Esquadrão dos Seis Focinhos toda a sua história, tudo o que sabiam, tudo o que esperavam realizar com tão poucas pistas. Um outro coelho foi despachado para avisar os marinheiros que dormiam na estalagem e pedir a eles que se escondessem enquanto seu capitão não retornava.
- O melhor... - disse Percival - Seria se encontrássemos o traidor que roubou o calendário do tesouro dos gatos e descobrir para quem ele trabalha, com quem ele está envolvido e qual é sua relação com o homem do casaco de pena de ganso.
- Mas não sabemos nada sobre ele - Pigmaleão acrescentou desconsolado.
- Sabemos sim! - disse Da Gama, erguendo uma das patas - Ele é um gato. Só pode ser, não é mesmo? E se investigássemos todos os gatos atualmente fora do Reino dos Gatos?
- Não são muitos... - pensou Percival - Raramente obtemos permissão para vir ao mundo dos homens.
- Existem três gatos aqui mesmo em Florença - disse um dos coelhos e os animais se lembraram que haviam visto dois deles no Bar da Garça.
- Vamos atrás deles primeiro! - propôs Percival - Vamos investigar um a um e tentar entender este mistério.
- O traidor certamente é a chave para tudo isso - opinou Pigmaleão.
Da Gama acenou com sua pequena cabeça, enrolada no cachecol e nos óculos de vidro.
- Este é um mistério que me cativou - ele disse sorrindo - E não vou largá-lo enquanto não tivermos chegado ao seu fundo!

domingo, dezembro 14, 2008

Uma Agitada História para o Dia da Garça

Percival e Pigmaleão corriam pelas ruas de Florença. Era tudo escuridão, por isso podiam se movimentar à vontade. Reviravam latas de lixo, olhavam pelas janelas, subiam em prédios para tentarem avistar alguma coisa do topo.
Nada na cidade adormecida lhes fornecia uma pista. Um calendário precisava ser encontrado. Mas aonde? E para que? Dificilmente seria para saber os dias, ou senão qualquer outro calendário serviria. E como diferenciar este de qualquer outro?
Para os dois, estava sendo muito difícil brincar de espião.
Um pouco cansados, caminhando em um beco escuro, se depararam com a maior das descobertas. Percival foi o primeiro a ver. Algo que nunca imaginariam ver ali. No fundo do beco, um gato caminhava escondido. Porém, caminhava em duas patas!
- Não acredito! - disse Pigmaleão - É um de nós.
Os dois correram para onde a figura bípede se dirigia e encontraram uma portinhola pequena no meio do entulho, onde se lia, em letras do alfabeto felino, indistinguíveis para humanos:
"Bar da Garça"
- Você acha que... - continuou o porco - Haveria algum tipo de clube ou local de reuniões para animais como nós?
- Só pode ser isso - sorriu Percival, muito animado, já abrindo a portinhola.
Lá dentro, atravessando um longo corredor, encontraram um charmoso bar. No balcão se viam duas zebras conversando, um cão de ar enfezado, dois gatos já ébrios de tanto beberem e um colibri muito ocupado servindo a todos.
- Olhe só o que encontramos! - disse Percival - É aqui que teremos pistas para achar o que estamos procurando!
- Calma lá - bufou Pigmaleão, estufando a barriga - Achei que fosse uma missão secreta, então tome mais do que cuidado com o que você for perguntar.
- Certo, certo... - disse o gato branco, sentindo-se perdido demais - Mas podemos perguntar de Lancelot livremente por aqui, não é mesmo?
Pigmaleão ergueu os braços, fechou os olhos, acenou devagar com a cabeça. Parece que sim, ele dizia.
Os dois se aproximaram do cão, que tinha a cara de ser o cliente mais antigo do lugar. Depois, diante das negativas, tentaram com os outros animais e por fim, estavam quase desistindo, quando um emplumado peru entrou no lugar. Esperaram que ele e sua entourage, composta por cinco galinhas muito apaixonadas, se sentassem e se servissem e, por fim, Percival tomou coragem de se aproximar todo galante, perguntando sobre o gato preto.
- Boa noite senhor!
- Boa noite coisa nenhuma! - rebateu o peru - Pois saiba que cada vez que o natal se aproxima as noites vão ficando cada vez piores! Ah, mas a agonia, a espera, o medo, tudo isso é demais para mim... - Pigmaleão e Percival trocaram olhares confusos - Por isso - continuou a ave - É preciso aproveitar! É preciso festejar, é preciso sair toda noite, cantar o mais alto possível, cuidar de tudo. Porque a qualquer momento... é o fim!
E bateu na mesa com as asas, provocando um alto barulho. Quando o silêncio que se seguiu começou a morrer, o peru continuou, atropelando uma pergunta do gato:
- E o pior de tudo é que, se eu morrer, uma parte desta cidade morre comigo! Como vão viver todos os animais sem mim? Pois saiba que eu sou o maior dos banqueiros que vivem aqui - ele arrulhou, abraçando as galinhas sorridentes que o seguiam.
- Um banqueiro para animais? - estranhou Pigmaleão - Mas não usamos nenhum tipo de dinheiro.
- Ora, mas sempre existem coisas importantes para serem guardadas. Eu sou aquele que tem os melhores esconderijos por aqui. Podem escolher o melhor time de tatus escavadores e revirarem esta cidade por sete anos que não vão encontrar o que eu escondi. Sou tão confiável que todos os animais da região me pedem para guardar coisas deles.
- Ah sim, ele é o melhor - confirmou uma galinha - Ele está sempre recebendo pedidos e os mais estranhos objetos para esconder. E até hoje nenhum foi encontrado por ladrões. Só ele sabe onde estão as coisas. E todo mundo vêm trazer o que lhes é importante para guardar.
- Por isso vocês devem entender como é preocupante esta época do ano para mim. Como meus clientes podem contar comigo, se à qualquer momento eu posso... eu posso... Vocês sabem. Como podemos continuar assim?! A tensão é enorme!
Percival se agitou com uma idéia:
- O senhor alguma vez teve que esconder um calendário?
- Um calendário. Ora, tenho certeza de que não. Recebo muitos objetos estranhos, mas estranhos como este nunca.
- Que pena - disse o gato - Estávamos procurando por isso há um certo tempo. É o tipo de objeto extremamente necessário para nós. E como é também um objeto importante, creio que... bem, se fosse alguém da cidade ele teria escondido com o senhor.
- Ora, são tão poucos os prazeres nesta época do ano que seria meu prazer inesperado ajudá-lo a encontrar um objeto - disse o peru, o peito inchado e gogó balançante - Alguns clientes meus trazem coisas dentro de caixas, por isso não seria inteiramente impossível que eu já tenha alguma vez na vida escondido um calendário. Ora, porém, você deve entender que eu nunca trairia a confiança de um cliente meu.
- Entendo... Pelo visto o homem do navio branco ainda está na nossa frente nesta busca...
- Homem do navio branco? - piou o peru - Ora, você não está falando de Ibsen Stark, o rapaz, o sobrevivente do massacre dos Stark?
- Não creio que eu saiba seu nome - respondeu Percival.
- Ele usava um longo casaco de pena de ganso - acrescentou Pigmaleão.
- Isso, ele mesmo! - animou-se a ave - Eu mesmo escondi aquele casaco há alguns anos atrás e providenciei-lhe esconderijos durante os massacres. Pelo visto ele tinha algum animal de estimação quando era criança, um cão se não me engano, que o introduziu nos mistérios do nosso mundo. Por isso ele sabe tudo sobre nós, animais falantes, mas é muito sensato e não conta a ninguém.
- E ele tem alguma coisa com o senhor atualmente? - Percival perguntou.
- Tem sim, mas não posso dizer quantas ou o que são estas coisas. Ora, é meu trabalho manter escondido, vocês entendem. Mesmo nesta época do ano... Tão tensa, tão tensa... Mas - e o peru piscou um dos olhos - Só pelo prazer que esta conversa me proporcionou, vou te dizer que não se trata de um calendário. Nada deste tipo está com ele.
- Ele pode saber mais, mas não tem o objeto - disse Pigmaleão, tentando animar o gato branco.
- E quanto a um gato preto, muito parecido comigo... o senhor não viu nada?
O peru balançou a cabeça desconsolado e seu gogó a seguiu.
Então, do outro lado do bar, alguém se levanta.
- Um gato branco, acompanhado de um porco, procurando um gato preto? Só pode ser ele!
Era um cavalo alto, de peito estufado e armadura reluzente. Era também o mercenário impiedoso contratado por Stark para lidar com sua concorrência.
- É o mercenário! - piou o peru - E ele parece estar atrás de vocês! Ouçam o que digo e corram, corram! Tantas calamidades nesta época do ano!
- Correr jamais! - gritou Percival, sacando seu florete - Pode vir, quem quer que seja você.
Porém, assim que o cavalo sacou sua maça, ainda mais pesada do que podem imaginar, com todos aqueles espinhos à mostra, Pigmaleão segurou os braços de seu companheiro e gritou:
- É melhor darmos o fora daqui!
E saíram os dois fugindo do bar, com o enorme cavalo marrom os perseguindo e gritos de corram, corram do peru. Abriram a portinhola de supetão e estavam na rua fresca.
- Para que lado?
- Não vamos levá-lo à estalagem - disse Pigmaleão, pensando em seu homens dormindo tranqüilos - Temos que despistá-lo primeiro.
- Excelente - disse o gato branco, pulando para cima de uma calha. Pigmaleão, um pouco mais lento nas escaladas, naturalmente, viu o cavalo se aproximando furioso.
- Não há como fugir, estão perdidos! - ele grunhia.
E os dois animais correram pelos tetos das casas, ouvindo o galopar do mercenário nas ruas de paralelepípedos.
- Por ali! - anunciou Percival, descendo por uma série de escadas até a praça da fonte. Pigmaleão, ofegante, seguia logo atrás.
Eles pularam por cima das esculturas de onde a água jorrava e tentaram escapar para o outro lado do muro. O cavalo foi igualmente rápido e, em um salto, já estava lá. Percival fez menção de empunhar seu florete, mas o porco já entrava por uma das ruas laterais. O mercenário lançou sua maça, que por pouco não acerta o rabo felpudo e branco que escapava.
Eles correram durante muito tempo, mas o cavalo não os perdia de vista. Parecia um minotauro, enfurecido, espumando pela boca, incansável.
- Não há jeito - disse Pigmaleão, ofegando alto demais - Ele vai nos pegar, não jeito de escaparmos deste imbecil.
- Não desanime - disse Percival, percebendo que o amigo logo logo cairia exausto no meio da rua e que ele mesmo já estava cansado o suficiente para desistir - Sempre há um caminho! - ele gritou à título de encorajamento, puxando o porco para uma viela - Nós podemos escapar por aqui!
- Mas isto é um beco sem saída!
- Exatamente. Se conseguirmos pular o muro e chegar ao outro lado ele não conseguirá nos seguir.
O mercenário já estava na boca da rua, sorrindo com sua boca enorme e seus olhos injetados ao ver que se tratava de um beco sem saída. Caminhou devagar, tomando seu tempo, enquanto observava os esforços inúteis do porco e do gato de escalarem o muro liso.
- Não sei qual foi o trabalho que meu chefe teve. Vocês dois são alvos fáceis.
E Percival, que segurava Pigmaleão para tentar fazê-lo subir a parede, sentiu-se investido de fúria e raiva. Se o equilíbrio de seu companheiro não dependesse dele, já teria sacado o florete e partido para cima do cavalo como uma explosão branca.
- Chega de enrolação! Se você quiser nos pegar, eu te ofereço um duelo. Eu contra você, aqui e agora!
De peito inflado, o cavalo aceitou desdenhosamente. Bufou superior, rindo de seu adversário.
- Você não vai fazer esta imbecilidade - gritou Pigmaleão, que já estava furioso com a idéia de terem entrado em um beco sem saída - Volte aqui seu gato imbecil, devolva este florete à bainha! Não chegue perto deste monstro pterodáctilo anfisbena!
O pequeno gato branco não se sentia intimidado. Sorria como se estivesse diante de sua própria morte - e provavelmente estava. Mas ele nunca saberia, pois no exato momento que o cavalo avançou para atacá-lo com sua maça espinhosa, um grupo de cinco coelhos pulou por sobre o seu rosto.
- O que é isto?! - gritou Percival confuso.

sábado, dezembro 13, 2008

No Dia da Mãe Porca... Ouve-se uma história.

Florentina era uma florentina. Fora essse simples jogo de palavras, podemos dizer que ela era grande, gorda, com seios enormes e volumosos, além de trabalhar como estalajadeira com seu marido, sempre mostrando aquele seu sorriso meio triste, que parecia dizer "eu não sei se nasci para sorrir" e com olhinhos pretos perfeitamente redondos a mirarem os fregueses da taberna, onde seu marido ficava recebendo os clientes.
Certo dia, ela encontrou uma ocupação inusitada. Mesmo cuidando de uma criança de colo (seu filho bebezinho, tão pequeno, tão fragilzinho naqueles braços rechonchudos) ela arrumou tempo para ajudar um simpático gato branco que apareceu em seu quintal.
Era Percival, que, despojado do florete e da capa, ronronava sempre que recebia o leite de Florentina na porcelana branca. Nos três dias que ele e os outros animais habitaram o quintal da pequena estalagem, ele sempre visitava a mãe gorda quando tinha fome. E sempre era tratado com o maior carinho possível.
Já Pigmaleão, mordia-se de raiva pelo tratamento especial que Percival recebia, bem diferente de ter de viver em um chiqueiro da estrebaria - quem diria que era assim que os porcos tinham de viver neste mundo! De humor um tanto quanto baixo, ele costumava ficar muito tempo deitado em meio à palha, somente espiando por uma fresta da porta a agitada rua da frente.
Já os outros marinheiros, estes logo se sentiram em casa e ocuparam tranqüilos as áreas livres que puderam encontrar. A cegonha cinzeta fez um ninho sobre a chaminé. O sagüi acomodou-se na árvore do quintal. Os outros porcos não se importaram nem um pouco com a pequena estrebaria e passaram a viver entre os cavalos e vacas que eram colocados ali.
Durante as refeições, um cheiro delicioso vinha da estalagem, administrada pelo marido de Florentina. Enquanto os da estrebaria se apertavam de fome, Percival logo escapulia para perto da mulher gorda (que se encontrava sempre junta de seu bebê) e arranjava uma refeição para si.
No resto do tempo, o gato branco observava os que chegavam e saiam da estalagem. No final do dia, se encontrava com Pigmaleão e lhe dava um relatório:
- Hoje vi um homem de cabelos louros e compridos, um homem de pequenos óculos lendo jornal, cinco garotas de idade escolar e um rapaz que entregava cartas.
Uma noite, três dias depois de terem chegado á Florença, Pigmaleão esbravejou:
- Não vamos chegar a lugar nenhum deste modo! Precisamos achar seu amigo, precisamos procurar o calendário, precisamos é contactar o Reino dos Gatos e avisar que todos os problemas imagináveis aconteceram! Não dá para continuarmos tranqüilos deste modo, algo deve ser feito!
- Mais do que o Reino dos Gatos... - disse Percival, pela primeira vez se dando conta da responsabilidade que tinha à sua frente - Preciso avisar o Projeto Elizabeth! O primeiro ministro e o rei devem estar mais do que preocupados.
- Nunca lhe ocorreu que podíamos avisá-los? - resmungou o porco - Ao menos eles aceitariam enviar reforços?
- Talvez sim... apesar de ser uma investigação interna também. Sabe como é, devemos nos preocupar com o traidor que há entre nós, por isso é mais arriscado envovler outros gatos.
- E Lancelot, seu amigo, alguma pista?
- Nenhuma - suspirou o gato branco, parecendo ao porco tão solitário no mundo que estava desprotegido de tudo.
- Sabe o que eu penso? Devemos sair daqui esta noite.
E, após uma silenciosa pausa da parte dos dois, que conversavam em um canto escuro, entre a palha e a madeira, Pigmaleão continuou:
- Deixaremos meus homens cuidando de tudo por aqui enquanto investigamos cada canto da cidade. Vamos revirar cada segredo que encontrarmos para ver se podem explicar os nossos mistérios. Estou cansado desta estrebaria suja: o que você acha de sairmos esta noite para explorar as ruas escuras de Florença?
- Plano magnífico, caro companheiro! Afinal, sendo um gato, não terei a menor dificuldade de desencavar segredos nesta cidade. Excelente idéia. Por esta noite ampliaremos nossa busca!
E, percebendo que Percival estava começando a se animar demais (o que significava que logo iria longe demais nas idéias), Pigmaleão interrompeu-o com detalhes práticos:
- Como sairemos daqui?
- Vamos esperar a noite chegar definitiva. Quando as pessoas estiverem dormindo sairemos pelo quintal, passando pela parte de trás da estalagem, para evitar os clientes que ficam até tarde na taberna.
Dito e feito. Assim que pensaram ser seguro sair, Percival e Pigmaleão se esgueiraram contra o muro e caminharam devagar na sombra. Os marinheiros estavam já enrolados em seus cantos, se preparando para um sono profundo. Tudo estava mais do que silencioso, até mesmo na taberna, onde o marido de Florentina arrumava tudo antes de dormir ele também.
Por isso, acharam estranho ouvirem um som vindo de um dos cantos da estalagem. Como era caminho, chegaram mais perto. Era Florentina, que de seu quarto recitava alguma coisa ao seu bebê, que demorava a dormir.
- Você conhece a história do Natal? - ela perguntava, com uma voz macia e carinhosa.
- Que coisa estranha... - disse Percival, escondido ao lado da janela da senhora florentina - Por que ela faz uma pergunta a um bebê? Como ela espera que ele responda?
- Faça silêncio e vamos ouvir! - ordenou Pigma que também se aproximara da janela aberta para ouvir a história.
- Há muitos anos, há muito, muito tempo atrás, um bebê nasceu. Era um país distante, um país diferente, onde eles perseguiam bebês como você. É, como você sim. Eram homens maus, que não tinham hesitação de matarem por prazer.
- Que história terrível! - disse Percival, fechando as patas - Por que ela conta isso ao seu filho?
- Então um dia, uma família viajava. Eles atravessavam o deserto, estavam muito cansados. E chegaram a uma cidadezinha muito pequenininha. Tão pequena perto das outras cidades quanto você é pequeno perto de mim.
- Acho que já ouvimos o suficiente, temos que ir - disse o gato branco, puxando o braço de Pigmaleão. Porém, o porco não queria sair de seu lugar, talvez maravilhado com a gorda mulher que falava baixinho. Talvez algo nela o lembrasse de alguém; alguém de muito tempo atrás que ele mal podia se lembrar. O seu volume rechonchudo, seus braços roliços, tudo nela era uma suave curva.
- Não havia lugar para pararem - a voz continuava - A família não podia encontrar nenhum quarto para dormir. E a mão estava grávida, como eu estive antes de ter você.
Pigmaleão piscou os olhos devagar e prestou atenção à Percival.
- Sim, devemos ir... - ele balbulciou.
Os dois animais deixaram a gorda estalajadeira contando sua história e escapuliram noite adentro.

sexta-feira, dezembro 12, 2008

E então, no dia do Caminhão...

A maré lançava ocasionalmente um ou outro pedaço de madeira sobre a areia branca. Nenhum dos pescadores dava muita atenção: era mais do que comum que as batalhas furiosas entre turcos e cristãos lançassem alguma tábua ao mar e que, como tudo o que é jogado ao mar, ela acabasse retornando à terra. Quem sabe que tipo de destroços podiam encontrar? Diante da variedade constante, os pescadores aprenderam a encarar entediados o que vinha dar à praia.
Porém, naquele dia, algo incomum chegou à margem. Algo que merecia certa atenção, não sendo nada menos do que um heterogêneo grupo de animais. Alguns porquinhos, um sagüi, uma cegonha cinzenta, um ilustre e rubicundo porco usando insígnias capitâneas e um gato branco, de capa e espada, muito desconcertado por estar todo molhado. Estavam todos vivos, é claro. Um pouco sem fôlego, muito cansados de água, mas vivos.
- Maldita tempestade! Raios e trovões nos partam! - gritou Pigmaleão - Nosso barco destruído, nós naufragados em terras estrangeiras. A desgraça! A desgraça!
- Não pode ser tão ruim assim - suspirou Percival, espremendo seu rabo branco, de modo a tirar dele toda a água - Estamos todos um pouco rabugentos, mas tenho certeza que uma olhada melhor na situação toda vai nos dar uma nova perspectiva.
- E não se esqueça que seu amigo foi capturado - disse Pigmaleão - Por aqueles corsários, aqueles piratas, filibusteiros, fanfarrões! Que dia mais terrível.
À menção de Lancelot, Percival empertigou-se e retirou o florete da bainha.
- Eu juro que salvarei meu amigo! - ele gritou - Vou tirá-lo das garras desses ladrões intrometidos! Vou mostrar para eles o que acontece com quem se intromete nos assuntos felinos, vou... vou...!
- Acalme-se - disse Pigmaleão, sentando-se desanimado na areia - Nem mesmo sabemos onde eles podem estar... Em qualquer lugar à essa altura!
- Mas eu vou encontrá-los, e escorraçá-los, e derrotá-los, e... - continuou o gato branco, mais animado do que nunca, pulando e fintando como se estivesse em uma batalha de verdade - Ah sim, eles nunca mais vão esquecer meu nome!
Os outros marinheiros olhavam para o gato desanimados. Em certo momento, a cegonha achou melhor perguntar:
- Capitão, o senhor tem idéia de onde estamos?
- Idéia nenhuma! - esbravejou o porco - E esse é só mais um de nossos problemas! Estamos em país estrangeiro e em uma praia desconhecida! Como voltar para casa? Nenhuma idéia! Incógnita total!
O que Lancelot faria? Percival pensou. Neste momento, o que eles mais precisavam era de um gato sensato, que pudesse examinar a situação e tirar dela o melhor proveito. Um gato animado como ele, ao lado de um capitão irritadiço não era a melhor das opções.
Mas ele tinha que ajudar estes marinheiros.
- Em primeiro lugar - declarou Percival - Temos que descobrir onde estamos.
Olharam ao redor e só puderam ver uma longa praia. Mais adiante, uma estrada.
- Os humanos costumam ter placas e mapas e outras informações assim! - exultou Percival - Vamos até onde eles estão. Mas atenção: vocês que não estão acostumados a se infiltrarem entre os homens, sigam exatamente minhas instruções e façam exatamente o que eu fizer, ouviram bem?
Os marinheiros concoradaram ressabiados. Haviam ouvido histórias horríveis sobre os hábitos alimentares dos homens, mas estavam decididos a acompanhar o gato.
- Agora, em primeiro lugar, andem assim:
- Nas quatro patas?? - perguntou Pigmaleão estupefato.
- Sim, é deste modo que os humanos acham que caminhamos, por isso temos de disfraçar. Agora façam como eu - disse Percival, seguindo em direção à estrada e miando sonoramente. Atrás dele, uma estranha fileira de bichos, ainda com roupas de marinheiros e acessórios, todos de quatro - inclusive uma cegonha muito confusa - e todos eles miando estranhamente.
- Miau, miau. Você tem certeza de que é assim que os animais se comportam por aqui? - o porco perguntou.
- Absoluta. E olhem: parece que estamos com sorte!
Ao lado da estrada, um longo caminhão estava parado. O motorista, de cabeça enfiada no capô, não se deu conta dos animais se aproximando.
- Ali devem haver todo o tipo de pistas sobre onde estamos! E lembrem-se de manterem os olhos abertos para qualquer pista sobre Lancelot!
- Isto está realmente incômodo - preguejou Pigmaleão.
- Miau, miau - disseram os outros animais, enquanto engatinhavam em fila até a parte de trás do caminhão parado.
Ali, a porta aberta deixava à mostra um sem número de objetos. Provavelmente se tratava de um caminhão de mudanças que parou entre um destino e outro. Percival guiou os animais para dentro e retirou uma das capas brancas que protegia um sofá macio.
- Quantas coisas! - murmuraram os marinheiros, esquecidos de andarem de quatro patas por um momento, maravilhados com o que poderia ser revelado ao se retirar o pano branco.
- Olhem isso! - grunhiu o capitão Pigma - Livros e revistas, dentro de uma caixa! Quem guardou isto aqui?
- Ora, - disse Percival, abrindo os braços - é muito claro que os humanos estão trocando informações. Este é o modo com o qual eles se comunicam entre duas cidades: passando objetos.
- Fantástico! - disse o porco - Olhem, aqui há um piano!
Neste momento, a porta de trás do caminhão se fechou em um estrépito.
- O que foi isso? - gritaram os animais assustados, engantinhando novamente e miando devagarzinho, para o caso de algum humano estar espionando.
- Eles nos fecharam dentro deste lugar! - gritou Pigmaleão - Você acha que fomos capturados?
- Não - disse Percival, já não tão seguro assim de suas afirmações - Ele só não percebeu que ainda estávamos aqui dentro... Acho que devemos tentar avisá-lo.
E os animais começaram a miar em voz alta. Porém, no mesmo momento, o motor do caminhão voltara a funcionar, abafando na cabine do motorista qualquer barulho externo. Estavam em movimento.
- E isto agora? - disse Pigmaleão, cada vez mais zangado com o felino branco.
- Ora... Eles estão apenas... Trocando informações.
- Seremos trocados? - engasgou-se a cegonha.
- Não, não se preocupem! - disse Percival, mas o caminhão já adquirira velocidade, fazendo com que os móveis e objetos escondidos no escuro chacoalhassem barulhentos - Basta encontrarmos uma luz!
Todos se dispersaram, abrindo e fechando gavetas e armários.
- Nada por aqui - sussurrou um dos marinheiros assustado.
- Por aqui também nada - disse Pigmaleão - E agora sim estamos com problemas. Se estamos sendo transportados, como vamos saber onde estamos?
- Se ainda estamos andando não precisamos saber onde estamos - sorriu Percival, tentando fazer uma graça - Basta saber onde chegaremos. E para isto, basta chegar!
- Mas estamos nos afastando cada vez mais do mar! - urrou o porco - Cada vez mais dentro de território inimigo e perigoso. Você escutou as lendas! Ficará mais difícil ainda de encontrarmos o seu amigo!
Percival fechou a expressão.
Era preciso encontrar Lancelot o quanto antes. Sem esquecer que havia ainda uma difícil missão a ser cumprida.
Eles se encolheram no escuro, esperando.
Não foi preciso esperar muito; o caminhão começou a diminuir de velocidade e, logo, os animais sentiram o movimento parar por completo.
O motorista assobiava. Com tranqüilidade ele deu a volta no caminhão e abriu a porta de trás. Assim que ele deu as costas, um grupo de animais assustados - e vestidos! - pulou para fora e para o ar livre. Correndo desengonçadamente de quatro, eles entraram, sem serem vistos, no quintal mais próximo.
- Estamos livres! - comemorou o gato branco - Não disse que daria tudo certo?
- Foi por muito pouco! - suspirou Pigmaleão - Vamos continuar a farsa mais um pouco, não se sabe quando um humano pode aparecer. Continuem a miar homens! E você, senhor gato, trate de descobrir onde estamos.
Percival olhou em volta. Era o quintal de uma estalagem. Duas casas, uma fazendo as vezes de moradia e a outra como taberna, aberta à rua e ao movimento. Os animais atravessaram o quintal e foram se esconder na estrebaria, achando que de algum modo ali seria menos evidentes.
- Tratem de encontrar esconderijos e camas para nos escondermos por enquanto - Pigmaleão ordenou aos marinheiros - E juntem tudo o que puderem, nunca se sabe o que será útil.
Percival escalou uma viga até o teto. Lá, em poucos passos ágeis, ele pulou até a árvore próxima e da árvore até o telhado da taberna.
E então, foi com um olhar de triunfo que o gato branco divisou, através da rua, a placa pintada a mão que mostrava um mapa da cidade e as palavras "Bem-vindo à Florença".
Agora ao menos sabiam onde estavam.

quinta-feira, dezembro 11, 2008

E Este é o Dia do Cavalo

Dois se encontram em uma ruela escura. Um deles é um rapaz magro, de compridos cabelos escuros e pele pálida. O outro, um mercenário.
- Espero que você dê conta desta simples missão.
O outro teve vontade de dizer: A missão que você não conseguiu cumprir?
- São dois gatos, não se esqueça disso. Um branco e um preto. Eles estão separados e seria melhor se não se encontrassem. E seria melhor se livrar de todos os que estiverem com eles, melhor não correr riscos.
Terminadas as instruções, o homem da família Stark silenciou.
E o outro, o mercenário - na verdade um grande cavalo marrom, de peito inflado e armadura brilhante - sorriu com vários dentes.
- É imperativo que o gato preto seja capturado. Ele escapou de nós com informações que podem nos comprometer. Eu espero que você responda à altura da reputação que minha família ajudou a construir. Meu pai sempre me falava que você era o melhor dos mercenários, e que chegava até a confiar em você.
O cavalo baixou os olhos, orgulhoso.
- Pensei que quando os Stark foram erradicados pelo Vaticano eu nunca conseguiria trabalho novamente. Mas fico feliz que o filho mais novo sobreviveu e continua os negócios da família. Será uma honra seguir a tradição iniciada pelo meu pai e avô. Cumprirei orgulhosamente esta missão.
Então Stark puxou para trás os longos cabelos pretos, revelando em seu rosto pálido algo que parecia ser um sorriso.
Ele acenou e os dois se separaram.
Olhando para trás, o cavalo não podia deixar de ter pena de um homem tão magro e de aparência tão frágil. Seria este o destino dos grandes espiões do passado? Porém, um trabalho era um trabalho, nada que um mercenário poderia reclamar. Ele ainda pensou em perguntar o que havia acontecido com o casaco de ganso que o jovem costumava usar, mas algo lhe disse que, neste caso, o melhor era ficar em silêncio.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

O Misterioso dia do Calendário, no qual uma história nos fala mais sobre a história.

- Padre Coro, senhor...
- O que foi? Ele está aqui?
- Sim, ele te espera entre as flores do jardim.
- Por que lá fora? Está esfriando.
- Ele insiste. Diz que não quer que os homens daqui dêem conta de sua presença. Ainda mais se vocês dois tiverem conversando.
- Certo, certo... Ah, é difícil de se lidar com informantes. Sempre cheios de segredos. Vou lá falar com ele.
- O senhor é Padre Coro?
- Sim...
- Está surpreso?
- Estou um pouco. Confesso que não esperava isso.
- Achou que eu fosse como?
- Um gato normal. Mas essa capa de veludo e este florete. Me perdoe, mas vi poucos de seu Reino antes, então ainda não estou acostumado às surpresas.
- Esperava que o Vaticano mandasse outra pessoa... Ora, não faça essa cara Padre Coro. O senhor podia estar um pouco melhor informado.
- Eles me mandaram aqui para garantirem...
- Sim, eu sei! Já combinamos tudo. Eu entregarei o objeto como foi prometido, na cidade que vocês escolheram. O seu homem em Florença já está esperando por mim?
- Está, como combinado, senhor... felino... senhor...
- Hm, eu lhes disse que seria melhor se nem nos encontrássemos. E ainda mandam um padre despreparado, que não sabe a menor etiqueta felina. Estes encontros são perigosos para mim, você sabe. Se alguém percebe que sou um traidor não terei mais chance de escapar.
- Peço que me perdoe pelo despreparo. Mas estou profundamente envolvido no assunto. O próprio Papa está ansiosíssimo e morrendo de preocupação, por isso é natural que queiram saber sobre o calendário... Se você o está guardando com cuidado.
- Estou.
- Será que você não poderia me mostrar? Só para termos certeza.
- Eu reconheço de longe esse olhar de ganância que você carrega. Ele não está aqui. Vou trocá-lo com o seu homem em Florença, segundo o combinado. É bom que não tentem me enganar e que paguem o que me foi prometido: já sabem que eu fui capaz de roubar o cofre mais seguro do mundo. Eu não teria trabalho em raptar o tesouro do Vaticano.
- Ora, mas todos sabem que você só conseguiu roubar do Reino dos Gatos por causa de sua... influência lá. Saiba que estou à par dos acontecimentos e que, mais do que todos preciso saber se a informação contida no calendário está segura.
- Não se preocupe. Eu não abri a 25ª casa.
- Ótimo. E saiba que não há por que se preocupar com espiões. Este nosso encontro foi totalmente seguro. Eu me preocuparia se ainda estivessemos no tempo em que haviam membros das ilustres famílias de espionagem, como os Corsino, os Stark e os Maffeo à solta. Hoje em dia, arrasadas as famílias, toda informação passa por nós senhor gato. Não há o que temer.
- O gato seguro morre velho.
- Está ficando tarde... Esfriando cada vez mais.
- Acho que nos despedimos agora, Padre Coro.
- Estamos te esperando em Florença. Cuide bem do objeto.
- Tem minha palavra de gato, padre. Levarei o calendário.
- Uma palavra de gato... Porém um gato que traiu sua própria espécie e suas leis... Não sei o que o Papa estava pensando ao confiar em um felino destes.

terça-feira, dezembro 09, 2008

Dia da galinha

Mal Rufus e Lancelot chegaram à cidade de Pisa já pressentiram que havia algo de errado.
- São as galinhas... - confidenciou uma velha senhora - Toda noite uma galinha desaparece e ninguém sabe quem foi, como foi ou quem será o próximo. O prefeito está oferecendo uma generosa recompensa para quem descobrir o ladrão.
Os dois viajantes resolveram aceitar o desafio.
De noite, ficaram acordados diante do paiol onde todo o povo da cidade havia reunido as galinhas. Se elas ficassem juntas, eles pensaram, poderiam ser defendidas mais facilmente e, o que era melhor, comunitáriamente. Rufus mal teve tempo de terminar três fantoches de galinhas, aos quais amarrou firmes fios quase invisíveis no escuro da noite. Seguindo as instruções de Lancelot, ele deixou os três fantoches na beira da janela, como se dormissem.
- Agora só nos resta esperar de olhos bem abertos...
A noite já ia alta quando uma sombra pulou o muro da cidade. Ela rastejou pelas ruas e chegou diante do paiol, tendo adormecido um a um os guardas no caminho. Lancelot e Rufus, como eram estrangeiros e estavam bem escondidos, não foram percebidos.
Tratava-se da bruxa do leste, que toda noite punha um feitiço de sono nas pessoas da cidade e lhes roubava as galinhas para comer. Mas assim que ela pôs as mãos sobre as galinhas, Rufus puxou as cordas e fez os animais voarem.
- O que é isso? - gritou a bruxa - Vocês não deveriam estar se mexendo tanto assim. Fiquem paradas!
Rufus fez os bonecos correrem para fora do paiol e os deixou sentados no topo de uma cerca, como uma galinha normal faria, enquanto vestia o longo casaco de pena de ganso e se apresentava diante da bruxa.
- Parada feiticeira! - ele ordenou.
- Quem está aí? - a bruxa guinchou assustada - Não deveria haver ninguém acordado na cidade inteira!
E, seguindo o que Lancelot lhe sugeria de dentro do longo casaco, o filho mais novo do moleiro declamou:
- Pois saiba que eu sou um poderoso feiticeiro. E que, portanto, sou imune às suas magias baratas.
- Mais poderoso que eu, a bruxa do leste? Impossível.
- Ora, mas sou cem vezes mais habilidoso que a senhora. Por isso venho clamar esta cidade como meu território e acho bom nunca te ver pisar aqui de novo.
E a bruxa, que não queria perder suas fáceis refeições de galinha:
- Não acredito. Se você é um mago tão poderoso, que tal provar? Eu proponho um duelo de magias!
Dentro de seu esconderijo, Lancelot sorriu.
Os dois se encararam na rua principal de Pisa. Um de cada lado, de frente para o grande paiol onde as galinhas eram guardadas.
- Que tal se eu começar demonstrando minha habilidade, poderoso feiticeiro? - disse a bruxa irônica.
- Vá em frente, vá em frente - suspirou Rufus, cofiando uma barba inexistente.
- Para começar, um feitiço de fazer crescer o mato e as ervas daninhas em um jardim! - Dito isso, começaram a nascer, em um quintal próximo, incontáveis arbustos retorcidos, pequenos matos inconvenientes e ervas desagradáveis.
- Muito interessante. Mas você pode fazer nascer um gato de dentro do seu casaco? - e, dizendo isso, Rufus retirou Lancelot de dentro de seu casaco mágico de pena de ganso onde ele estava escondido.
- Impossível - bradou a bruxa - Você está trapaceando. Você tinha guardado esse gato aí esse tempo todo!
- Então quer me ver fazer de novo? - perguntou Rufus, desta vez retirando o boneco de Lancelot que ele construíra, colocando-o no chão de modo que parecia-se muito com um gato preto de verdade.
- Que tal este encantamento então - disse a bruxa. E quando ela estalou seus dedos, uma horrível verruga nasceu bem no nariz do jovem filho do moleiro. Ela estalou de novo e nasceu mais uma. Mais uma vez e Rufus já podia voltar para casa com três verrugas.
- Truques velhos para um velho feiticeiro como eu - ele suspirou, fingindo tranqüilidade - Que tal isto então? - E pulou por sobre um fio de varal em um quintal próximo - Posso invocar os poderes do vento e caminhar até em um fio de cabelo!
A bruxa parecia assustadíssima, mas não se rendeu.
Ela puxou uma espiga de milho da saia e começou a debulhar cantando uma cantiga maléfica. De dentro de uma das casas soou um grito terrível.
- Faço-os terem pesadelos enquanto dormem. Sonhar com o diabo ou com um cavalo desgovernado. É uma delícia escutá-los gritar!
Rufus se assustou ainda mais. Este era o grande feitiço da bruxa. Ele teria que se esforçar para ganhar desta vez.
- Acredito que você tem encantamentos nem um pouco desprezíveis. Porém, como sou o feiticeiro mais poderoso esta cidade deve pertencer a mim. Você deverá abdicar de seu roubo de galinhas e deixar meus cidadãos em paz.
- E por que eu faria isso? - a bruxa riu.
- Por causa do meu feitiço mais poderoso, que me dá controle sobre a vida alheia. Não quero assustá-la, por isso experimentarei naquelas galinhas - E, dizendo isso, Rufus puxou as cordas que ainda prendiam os fantoches de galinhas pousados sobre a cerca, fazendo-as pularem - Agora, andem! Em fila - e, movimentando as cordas invisíveis de acordo, fez as falsas galinhas caminharem em fila.
- Pulem! - ele ordenava. E elas pulavam.
- Não pode ser, não pode ser! - a bruxa do leste gritou - Nem eu nem nenhuma de minhas irmãs temos estes poderes! Mas não me dou por vencida. Demonstramos um número igual de feitiços e encantamentos, não vejo porque deveria deixar esta cidade com você.
- Então observe - sorriu Rufus, apontando para Lancelot, que assistia tudo ali do lado - Fale! - ele ordenou e:
- Minha senhora, eu creio que você deveria escutar o conselho de meu mestre, o poderoso feiticeiro - disse Lancelot, muito educadamente, retirando seu chapéu, fazendo com que a velha bruxa gritasse de susto.
- Agora vá! - Rufus gritou - E não volte mais aqui, ou irei te enfeitiçar de um modo terrível.
Assim que a bruxa foi embora correndo pela estrada as ervas daninhas morreram e as verrugas sumiram.
No dia seguinte, Rufus e Lancelot receberam uma generosa recompensa do prefeito. Felizes de terem libertado Pisa do domínio da bruxa, eles continuaram sua jornada, cada vez mais perto de Florença...