E se ele se foi? E se não existir mais?
Em algum lugar do mundo um vazio mana do próprio ar, vazando minha tristeza de dentro. É um poço, onde não ouso entrar. Ele não existe mais.
Vagante, sua sombra procura por asilo. Os campos batidos pelo vento são sua nova casa, é dela que sai o gemido do vento; sombras têm bocas? Elas falam por palavras, mas quando perdidas, quando desgrudadas de seus homens, vão gemer para sempre, e uivar por entre os caniços, fazendo calar até aos gafanhotos.
A noite é fria mas a sombra não o sente. Peregrina por entre a relva, que se curva respeitosa para sua passagem, e chora devagarinho.
Me levanto devagar. Sei que não vou poder dormir essa noite. Abro a janela e deixo o vento bater em mim. O que faz esse vento? É verão, onde está o seu calor? De que cidades portuárias, de que mares doces e de que vielas escuras chega esse vento, quantos minaretes circulou, com quantas pessoas cruzou? Poucas, pois é noite em todo lugar. Nessa cidade distante, com cheiro de amêndoas, gengibre e pólvora; é noite na planície onde a sombra vaga; é noite aqui, em minha casa.
Também eu não tenho casa. Só moro por instantes, esperando algo que está por vir.
E se ele não vier mais? Se não existir?
Olhando pela janela me veio a claridão, e descubro o que é preciso fazer. Quero a sombra dele, tenho que trazê-la até mim. Se morreu, eu serei sua guardiã. Se não existe mais, eu serei tudo o que nele amava. Essa pessoa não pode deixar de existir, penso. Eu não viverei sem ele, e tenho que ser quem eu amava, para que ele prossiga, para que realize-se, para que viva.
Amor, te amei tanto que me tornei você. É dentro de você que tenho que viver, agora mais do que nunca. Eu sou apenas aquilo de que um dia, temente, tive o conhecimento febril, que toquei, que foi através de mim. Penso na sombra distante, perdida no matagal, que chama, clama, exige; é para ela que grito. Com alguma parte obscura de mim chamo sua sombra. Ela agora será minha, serei eu aquilo que fui. Só fui os outros, que se tornaram algo através de mim. E eu? Muito tímida, nunca atravessei alguém. Nunca falei aquilo que realmente quis. Quem nesse mundo sabe o que quero?
Da distância impossível sua substância preta chega até mim e se gruda em meus braços como piche. Ela se agarra, está desesperada. Uma sombra que foi a vida inteira de alguém não pode se ligar a outra pessoa. Luto contra essa barreira, luto para trazê-la para mais perto de mim. Como me encontrou, como chegou até aqui, atravessando cidades, mares, planícies? Vejo-a grudando-se em mim. Eu chamei por ela, quis me tornar aquele que amo. Vou viver a vida dele.
Como se debate essa sombra! Me puxa para fora da janela, meus cabelos deslizam na ventania. Ela me quer como a uma casa. Ao mesmo tempo não nascemos juntos, o encaixe é imperfeito.
Seus sonhos sobem leves pelos braços da sombra e entram em mim. Não são meus, e meu primeiro ímpeto é rechaçá-los, afastar de mim a substância negra.
Minha cabeça fica leve, devo estar lívida. Com medo, enrodilho-me dentro de mim mesma. Agora faço de novo, me embranhando cada vez mais dentro da minha escuridão própria. Sua sombra percebe que me afasto e está ganindo; ela ama a liberdade, mas também a teme. Somos duas que perdemos o rumo, sem saber equilibrar liberdades.
Mas então me lembro do que me trouxe até aqui: se ele não existe, preciso ser tudo o que nele era possível. Não posso deixar que a pessoa que amei desapareça. Se ela se tornou outra, é preciso que eu também me torne outra, que me torne o que ela era. Que o mundo não desperdice essa alma! penso, ainda há muito o que fazer com essa alma.
Abandono então quem eu era.
Desde criança fui tão calada. Esperava algo chegar, esperava sempre; costumava deixar minha roupa nos pés da cama, prontas caso me buscassem no meio da noite, meu sapato favorito entre elas. Quem viria? Os homens do bosque, os elfos da noite. Sempre haveria alguém.
Nunca falei o que penso. Agora é tarde. Agora serei outro e nunca mais falarei por mim.
Sua sombra me abraça por completo, sou tomada de amor; as duas se buscam. O que separa uma pessoa da outra? É essa a barreira que acabo de quebrar. Não é um muro escuro, são buracos fundos. A qualquer momento posso cair, e deixar de ser.
Sou ele agora, carrego sua sombra, é tão forte o medo que nasceu em mim: novos sonhos, novos tentos, novos desesperos sombrios. Um medo tão grande me faz cair ao chão que penso estar há minutos sem respirar.
Aos meus pés a minha sombra respira devagarzinho. Era sua antiga sombra, agora minha. Era um sonho pequeno, agora correndo em minhas veias e me escurecendo. Murmurei uma comemoração macabra.
Se em algum lugar do mundo ele desapareceu, ao menos sua sombra faz parte de mim. Serei o que mais amei. Ele não pode desaparecer, amei-o demais.
Em algum lugar do mundo um vazio mana do próprio ar, vazando minha tristeza de dentro. É um poço, onde não ouso entrar. Ele não existe mais.
Vagante, sua sombra procura por asilo. Os campos batidos pelo vento são sua nova casa, é dela que sai o gemido do vento; sombras têm bocas? Elas falam por palavras, mas quando perdidas, quando desgrudadas de seus homens, vão gemer para sempre, e uivar por entre os caniços, fazendo calar até aos gafanhotos.
A noite é fria mas a sombra não o sente. Peregrina por entre a relva, que se curva respeitosa para sua passagem, e chora devagarinho.
Me levanto devagar. Sei que não vou poder dormir essa noite. Abro a janela e deixo o vento bater em mim. O que faz esse vento? É verão, onde está o seu calor? De que cidades portuárias, de que mares doces e de que vielas escuras chega esse vento, quantos minaretes circulou, com quantas pessoas cruzou? Poucas, pois é noite em todo lugar. Nessa cidade distante, com cheiro de amêndoas, gengibre e pólvora; é noite na planície onde a sombra vaga; é noite aqui, em minha casa.
Também eu não tenho casa. Só moro por instantes, esperando algo que está por vir.
E se ele não vier mais? Se não existir?
Olhando pela janela me veio a claridão, e descubro o que é preciso fazer. Quero a sombra dele, tenho que trazê-la até mim. Se morreu, eu serei sua guardiã. Se não existe mais, eu serei tudo o que nele amava. Essa pessoa não pode deixar de existir, penso. Eu não viverei sem ele, e tenho que ser quem eu amava, para que ele prossiga, para que realize-se, para que viva.
Amor, te amei tanto que me tornei você. É dentro de você que tenho que viver, agora mais do que nunca. Eu sou apenas aquilo de que um dia, temente, tive o conhecimento febril, que toquei, que foi através de mim. Penso na sombra distante, perdida no matagal, que chama, clama, exige; é para ela que grito. Com alguma parte obscura de mim chamo sua sombra. Ela agora será minha, serei eu aquilo que fui. Só fui os outros, que se tornaram algo através de mim. E eu? Muito tímida, nunca atravessei alguém. Nunca falei aquilo que realmente quis. Quem nesse mundo sabe o que quero?
Da distância impossível sua substância preta chega até mim e se gruda em meus braços como piche. Ela se agarra, está desesperada. Uma sombra que foi a vida inteira de alguém não pode se ligar a outra pessoa. Luto contra essa barreira, luto para trazê-la para mais perto de mim. Como me encontrou, como chegou até aqui, atravessando cidades, mares, planícies? Vejo-a grudando-se em mim. Eu chamei por ela, quis me tornar aquele que amo. Vou viver a vida dele.
Como se debate essa sombra! Me puxa para fora da janela, meus cabelos deslizam na ventania. Ela me quer como a uma casa. Ao mesmo tempo não nascemos juntos, o encaixe é imperfeito.
Seus sonhos sobem leves pelos braços da sombra e entram em mim. Não são meus, e meu primeiro ímpeto é rechaçá-los, afastar de mim a substância negra.
Minha cabeça fica leve, devo estar lívida. Com medo, enrodilho-me dentro de mim mesma. Agora faço de novo, me embranhando cada vez mais dentro da minha escuridão própria. Sua sombra percebe que me afasto e está ganindo; ela ama a liberdade, mas também a teme. Somos duas que perdemos o rumo, sem saber equilibrar liberdades.
Mas então me lembro do que me trouxe até aqui: se ele não existe, preciso ser tudo o que nele era possível. Não posso deixar que a pessoa que amei desapareça. Se ela se tornou outra, é preciso que eu também me torne outra, que me torne o que ela era. Que o mundo não desperdice essa alma! penso, ainda há muito o que fazer com essa alma.
Abandono então quem eu era.
Desde criança fui tão calada. Esperava algo chegar, esperava sempre; costumava deixar minha roupa nos pés da cama, prontas caso me buscassem no meio da noite, meu sapato favorito entre elas. Quem viria? Os homens do bosque, os elfos da noite. Sempre haveria alguém.
Nunca falei o que penso. Agora é tarde. Agora serei outro e nunca mais falarei por mim.
Sua sombra me abraça por completo, sou tomada de amor; as duas se buscam. O que separa uma pessoa da outra? É essa a barreira que acabo de quebrar. Não é um muro escuro, são buracos fundos. A qualquer momento posso cair, e deixar de ser.
Sou ele agora, carrego sua sombra, é tão forte o medo que nasceu em mim: novos sonhos, novos tentos, novos desesperos sombrios. Um medo tão grande me faz cair ao chão que penso estar há minutos sem respirar.
Aos meus pés a minha sombra respira devagarzinho. Era sua antiga sombra, agora minha. Era um sonho pequeno, agora correndo em minhas veias e me escurecendo. Murmurei uma comemoração macabra.
Se em algum lugar do mundo ele desapareceu, ao menos sua sombra faz parte de mim. Serei o que mais amei. Ele não pode desaparecer, amei-o demais.