Da primeira vez que a vi achei que ela caminhava de um jeito estranho, como se mancasse. Seus passos tortos eram culpa das botas pesadas e sujas, muitos tamanhos maiores que seus pés, que, ouvi dizer, tirara de um morto alguns dias antes.
Da segunda vez que nos encontramos, estava elegante. Deitada sobre uma espreguiçadeira no deck de seu navio, seu próprio palácio, parecia inundada de luz clara. Sorria alegremente e me falava animada que finalmente conseguira contratar uma tripulação. Examinara os pretendentes e finalmente escolhera marujos para navegar. Respirei aliviado. Alguns dias antes tinha aconselhado-a a fazer justamente isso. Tinha ficado chocado ao saber - como podia agora comprová-lo, a bordo de seu navio - que navegava com outras três pessoas apenas, e nem eram homens de mar. Uma governanta, um guardador de porcos desdentado e seu próprio filho. Sem contar o cão, Argos.
Mas agora tinha uma tripulação. Olhei em volta e meu alívio desapareceu. Eram mulheres e homens sujos, de roupas estranhas, olhar vagante, jeitos engraçados. Como se tivesse recrutado gentes das ruas! Ela apenas sorriu, dizendo-me que tinham o mar no coração, e que por isso fariam uma boa tripulação. Nada para me preocupar, me garantira. Tentei argumentar, mas tínhamos acabado de nos conhecer. Que podia eu falar para alguém que encontrara pela primeira vez apenas alguns dias atrás?
Ela entrara no entreposto, ignorando a fila e passando à minha frente, agitando o papelzinho de licenças no ar. Achei-a rude. Tinha aquele andar pesado, desengonçado. Teria esquecido o incidente e virado as costas para a estranha se uma amiga em comum não tivesse me contado as histórias. Dizia que viera navegando em um barco velho, com apenas três marujos e um cachorro. Que buscava algo impossível no mar, um tesouro mais valioso que todos os outros. Que era um pouco louca, mas tinha quem a admirasse. Perguntou se eu não queria conhecê-la, e consenti. Ela nos introduziu, e mentiria se não dissesse que me senti instantaneamente conectado a ela de algum modo. Dias depois, quando me convidou para conhecer o barco fiquei feliz, naquela alegria fácil dos que pensam que os outros nos estimam tanto quanto os estimamos.
Ela estava sentada em uma cadeira no deck. Parecia, como disse, cheia de uma luz líquida que a deixava claramente visível de qualquer lugar. Seria exagero compará-la a um farol? Ela sorriu diante da minha preocupação com os tripulantes, que mexiam desajeitadamente nos cabos. Falei novamente dos perigos do mar, de como tivera que enfrentar homens armados - de cujos corpos retirara as botas que usava - e que mais perigos estavam à frente.
Ela deu de ombros e continuou a costurar a vela. O longo pano branco estava em seu colo. Queixou-se que os ventos fortes que batiam de noite rasgavam as velas deixadas nos mastros. Todo porto era sempre o mesmo, me disse. Tinha que ficar alguns dias parada costurando as velas que as tempestades rasgavam, em um trabalho sem fim. Quanto mais queriam avançar mais tinham de refazer seu trabalho.
Tirei meu chapéu e pedi mais uma vez que reconsiderasse sua viagem. Ela me foi firme, mas gentil. Partiu no dia seguinte. Fui vê-la no porto mas chegara atrasado. Seu barco já estava distante.
Somente anos depois fomos nos reencontrar. Entrava em um armazém do porto tal e tal, quando a encontrei, entretida olhando as sacas. Mal pude acreditar, foi como uma visão mítica que me saltava aos olhos. Ela, entre todas as pessoas, tinha existência para mim. Toquei em seu ombro. Ela sorriu. Acho que demorou a me reconhecer, mas assim que viu que era eu me pegou pela mão e levou para fora. Sentamos em uma mureta e ela me contou sua história. O sol batia forte, mas por nada no mundo eu sairia dali. Contou histórias terríveis, como todas as que conhecemos, sobre os rochedos que rachavam os cascos, os vendavais que rasgavam tudo, os ciclopes insaciáveis que devoraram sua tripulação, a doença que levara sua governanta, o deus furioso que castigara o guardador de porcos atravessando uma lança em seu ventre, e o filho que partira em sua própria aventura em terras distantes. Só lhe sobrara o cão, fiel como sempre. Dizia as coisas mais tristes debaixo daquele sol sem piscar. Estava hipnotizada pela própria história, me segurava pelos olhos muito bonitos. Era como se temesse que aquilo tudo que vivera fosse desaparecer em um segundo, sentindo que sua viagem fosse a última, então estava tendo certeza que viveria mais um pouco por sua história. Queria que alguém no mundo houvesse que saberia o que pensou. Quando terminou engoliu em seco. Levantou-se, pediu desculpas e foi embora, com um convite para que eu visitasse seu barco.
E então... acabei não indo vê-la, algum trabalho me retivera no armazém o dia todo, e quando saí pro cais ouvi que já tinha zarpado sozinha, exceto pelo seu cão, para os mares mais perigosos do mundo.
O tempo passou, e admito que já ia esquecendo-a. Mas então, ontem mesmo, alguém passou em casa, contou alguma coisa que viram no porto, você soube... Na hora entendi que falavam dela. A maruja fantasma causa mesmo uma impressão nos marinheiros. Todos sabem na hora que ela é a valente navegadora das histórias. Mas me contaram que seu cão morrera, estava velho demais. Insisti, ela não podia estar sozinha. Tudo o que me fizeram foi balançar as cabeças. Ontem mesmo, ternamente confirmavam, saiu deste porto, e estava sozinha. Sem tripulação, filho ou cão. Mas o barco era o mesmo. Com o velho casco ainda singrava os mares, ainda buscava, atrás do quê...? Não queriam me machucar os sentimentos, sabiam que eu ficaria arrasado se soubesse que a perdi. Acho mesmo que não nos veremos nessa vida. Estava triste, mas ontem a coisa mais incrível me aconteceu.....
....
Ontem à noite tive um sonho. Ela velejava valentemente, cortavas as ondas. Subia as encostas gigantescas e cruzava os penedos íngremes para depois descer do outro lado. Ia sozinha, mas carregava na testa uma estrela. Ao longo, uma ilha surge de dentro da espuma. Faz de tudo para chegar lá. Ela ancora na areia macia e caminha até a terra. Neste instante olha para mim, e sei que este sonho é verdadeiro. Algo me diz que isto é a verdade puramente mostrada para mim.Ela me olha com os mesmos olhos de sempre, que sabem colocar as maiores tristezas sob a luz e vê-las sem temer, é assim que me encara e me sinto relaxar. E mesmo sendo um sonho sei que estou vendo algo que está para acontecer.
Não estamos sozinhos na ilha. Um homem velho, de cicatrizes e rugas imensas, se aproxima curvado sob o peso de seus bastões. Parece o ser mais triste do mundo, mas ela vai até ele. Tem o cabelo solto e lágrimas estão voando. Tento me aproximar, mas é tudo muito longe. Estão conversando, e seguram as mãos, mas não posso ouvi-los. O ruído do mar é muito alto. Tento correr para a grama, vejo carneiros na ilha, e colinas muito mais macias que as do mar. Ela cai de joelhos, e corro até ela. Você quer prova, ela diz. Quer que eu te mostre que sou mesmo quem digo ser? Ele chora também, confuso. Tudo se aproxima, estamos os três muito próximos.
Ela fala dos bosques de árvores frondosas perto de casa. Quando era menina via as frutas inalcançáveis crescendo. Até que ela mesma aprendeu a subir, e escalando descobriu o saber de se tomar algo com as mãos e saborear seu gosto. Bastava pegar. Quando cresceu mais viu as madeiras descendo da floresta para o mar, virando canoas, virando navios, crescendo sob as velas brancas e partindo para as guerras e tratados comerciais. É bonita a floresta, agora eu a vejo também. As árvores são altas e oferecem uma sombra feliz. Agora vejo os dois caminhando entre as árvores de mãos dadas; mas não são os que vi há pouco, estão jovens e felizes, acabaram de se casar. Juntos escolhem uma árvore. A mais bonita, a maior. Cortam-na aos golpes do machado. Choram juntos a cada golpe que o ferro dá no tronco. Ao fim a árvore cai, sua madeira desce também ao porto. Sobra apenas o cepo, a raíz da árvore que ficou para fora. Nele, enorme, começam a entalhar. Trabalham sempre juntos. Vejo os dois entalhando com muito cuidado. Eventualmente transformam o cepo em uma cama. É onde os dois vão se deitar, e viver juntos. Ao redor já começam a surgir as paredes, ergue-se um palácio. De frente para o mar, de costas para o bosque, cresce a sua casa. Os dois moram ali, e muitos homens e mulheres entram e saem. Vejo o guardador de porcos trazendo os rebanhos. A governanta lava os pés do homem. O filho nascendo, o velho cão sorridente comendo as sobras. Neste palácio todos podem entrar, mas há algo que nenhum deles sabe, um único quarto que sempre permaneceu fechado a todos. Só os dois podem entrar. Quem mais saberia, de todas as pessoas no mundo, sobre a cama na qual dormiram juntos? Quando ainda não havia telhado, eram as estrelas que cobriam o cepo entalhado onde dormiam; apenas as mãos dos dois conheciam aqueles sulcos. Ela lhe conta a história, ele não para de chorar, se reencontraram. Nesse sonho feliz tenho a certeza de que o mar, sempre, em algum momento, quando for, devolve o que engoliu.
Da segunda vez que nos encontramos, estava elegante. Deitada sobre uma espreguiçadeira no deck de seu navio, seu próprio palácio, parecia inundada de luz clara. Sorria alegremente e me falava animada que finalmente conseguira contratar uma tripulação. Examinara os pretendentes e finalmente escolhera marujos para navegar. Respirei aliviado. Alguns dias antes tinha aconselhado-a a fazer justamente isso. Tinha ficado chocado ao saber - como podia agora comprová-lo, a bordo de seu navio - que navegava com outras três pessoas apenas, e nem eram homens de mar. Uma governanta, um guardador de porcos desdentado e seu próprio filho. Sem contar o cão, Argos.
Mas agora tinha uma tripulação. Olhei em volta e meu alívio desapareceu. Eram mulheres e homens sujos, de roupas estranhas, olhar vagante, jeitos engraçados. Como se tivesse recrutado gentes das ruas! Ela apenas sorriu, dizendo-me que tinham o mar no coração, e que por isso fariam uma boa tripulação. Nada para me preocupar, me garantira. Tentei argumentar, mas tínhamos acabado de nos conhecer. Que podia eu falar para alguém que encontrara pela primeira vez apenas alguns dias atrás?
Ela entrara no entreposto, ignorando a fila e passando à minha frente, agitando o papelzinho de licenças no ar. Achei-a rude. Tinha aquele andar pesado, desengonçado. Teria esquecido o incidente e virado as costas para a estranha se uma amiga em comum não tivesse me contado as histórias. Dizia que viera navegando em um barco velho, com apenas três marujos e um cachorro. Que buscava algo impossível no mar, um tesouro mais valioso que todos os outros. Que era um pouco louca, mas tinha quem a admirasse. Perguntou se eu não queria conhecê-la, e consenti. Ela nos introduziu, e mentiria se não dissesse que me senti instantaneamente conectado a ela de algum modo. Dias depois, quando me convidou para conhecer o barco fiquei feliz, naquela alegria fácil dos que pensam que os outros nos estimam tanto quanto os estimamos.
Ela estava sentada em uma cadeira no deck. Parecia, como disse, cheia de uma luz líquida que a deixava claramente visível de qualquer lugar. Seria exagero compará-la a um farol? Ela sorriu diante da minha preocupação com os tripulantes, que mexiam desajeitadamente nos cabos. Falei novamente dos perigos do mar, de como tivera que enfrentar homens armados - de cujos corpos retirara as botas que usava - e que mais perigos estavam à frente.
Ela deu de ombros e continuou a costurar a vela. O longo pano branco estava em seu colo. Queixou-se que os ventos fortes que batiam de noite rasgavam as velas deixadas nos mastros. Todo porto era sempre o mesmo, me disse. Tinha que ficar alguns dias parada costurando as velas que as tempestades rasgavam, em um trabalho sem fim. Quanto mais queriam avançar mais tinham de refazer seu trabalho.
Tirei meu chapéu e pedi mais uma vez que reconsiderasse sua viagem. Ela me foi firme, mas gentil. Partiu no dia seguinte. Fui vê-la no porto mas chegara atrasado. Seu barco já estava distante.
Somente anos depois fomos nos reencontrar. Entrava em um armazém do porto tal e tal, quando a encontrei, entretida olhando as sacas. Mal pude acreditar, foi como uma visão mítica que me saltava aos olhos. Ela, entre todas as pessoas, tinha existência para mim. Toquei em seu ombro. Ela sorriu. Acho que demorou a me reconhecer, mas assim que viu que era eu me pegou pela mão e levou para fora. Sentamos em uma mureta e ela me contou sua história. O sol batia forte, mas por nada no mundo eu sairia dali. Contou histórias terríveis, como todas as que conhecemos, sobre os rochedos que rachavam os cascos, os vendavais que rasgavam tudo, os ciclopes insaciáveis que devoraram sua tripulação, a doença que levara sua governanta, o deus furioso que castigara o guardador de porcos atravessando uma lança em seu ventre, e o filho que partira em sua própria aventura em terras distantes. Só lhe sobrara o cão, fiel como sempre. Dizia as coisas mais tristes debaixo daquele sol sem piscar. Estava hipnotizada pela própria história, me segurava pelos olhos muito bonitos. Era como se temesse que aquilo tudo que vivera fosse desaparecer em um segundo, sentindo que sua viagem fosse a última, então estava tendo certeza que viveria mais um pouco por sua história. Queria que alguém no mundo houvesse que saberia o que pensou. Quando terminou engoliu em seco. Levantou-se, pediu desculpas e foi embora, com um convite para que eu visitasse seu barco.
E então... acabei não indo vê-la, algum trabalho me retivera no armazém o dia todo, e quando saí pro cais ouvi que já tinha zarpado sozinha, exceto pelo seu cão, para os mares mais perigosos do mundo.
O tempo passou, e admito que já ia esquecendo-a. Mas então, ontem mesmo, alguém passou em casa, contou alguma coisa que viram no porto, você soube... Na hora entendi que falavam dela. A maruja fantasma causa mesmo uma impressão nos marinheiros. Todos sabem na hora que ela é a valente navegadora das histórias. Mas me contaram que seu cão morrera, estava velho demais. Insisti, ela não podia estar sozinha. Tudo o que me fizeram foi balançar as cabeças. Ontem mesmo, ternamente confirmavam, saiu deste porto, e estava sozinha. Sem tripulação, filho ou cão. Mas o barco era o mesmo. Com o velho casco ainda singrava os mares, ainda buscava, atrás do quê...? Não queriam me machucar os sentimentos, sabiam que eu ficaria arrasado se soubesse que a perdi. Acho mesmo que não nos veremos nessa vida. Estava triste, mas ontem a coisa mais incrível me aconteceu.....
....
Ontem à noite tive um sonho. Ela velejava valentemente, cortavas as ondas. Subia as encostas gigantescas e cruzava os penedos íngremes para depois descer do outro lado. Ia sozinha, mas carregava na testa uma estrela. Ao longo, uma ilha surge de dentro da espuma. Faz de tudo para chegar lá. Ela ancora na areia macia e caminha até a terra. Neste instante olha para mim, e sei que este sonho é verdadeiro. Algo me diz que isto é a verdade puramente mostrada para mim.Ela me olha com os mesmos olhos de sempre, que sabem colocar as maiores tristezas sob a luz e vê-las sem temer, é assim que me encara e me sinto relaxar. E mesmo sendo um sonho sei que estou vendo algo que está para acontecer.
Não estamos sozinhos na ilha. Um homem velho, de cicatrizes e rugas imensas, se aproxima curvado sob o peso de seus bastões. Parece o ser mais triste do mundo, mas ela vai até ele. Tem o cabelo solto e lágrimas estão voando. Tento me aproximar, mas é tudo muito longe. Estão conversando, e seguram as mãos, mas não posso ouvi-los. O ruído do mar é muito alto. Tento correr para a grama, vejo carneiros na ilha, e colinas muito mais macias que as do mar. Ela cai de joelhos, e corro até ela. Você quer prova, ela diz. Quer que eu te mostre que sou mesmo quem digo ser? Ele chora também, confuso. Tudo se aproxima, estamos os três muito próximos.
Ela fala dos bosques de árvores frondosas perto de casa. Quando era menina via as frutas inalcançáveis crescendo. Até que ela mesma aprendeu a subir, e escalando descobriu o saber de se tomar algo com as mãos e saborear seu gosto. Bastava pegar. Quando cresceu mais viu as madeiras descendo da floresta para o mar, virando canoas, virando navios, crescendo sob as velas brancas e partindo para as guerras e tratados comerciais. É bonita a floresta, agora eu a vejo também. As árvores são altas e oferecem uma sombra feliz. Agora vejo os dois caminhando entre as árvores de mãos dadas; mas não são os que vi há pouco, estão jovens e felizes, acabaram de se casar. Juntos escolhem uma árvore. A mais bonita, a maior. Cortam-na aos golpes do machado. Choram juntos a cada golpe que o ferro dá no tronco. Ao fim a árvore cai, sua madeira desce também ao porto. Sobra apenas o cepo, a raíz da árvore que ficou para fora. Nele, enorme, começam a entalhar. Trabalham sempre juntos. Vejo os dois entalhando com muito cuidado. Eventualmente transformam o cepo em uma cama. É onde os dois vão se deitar, e viver juntos. Ao redor já começam a surgir as paredes, ergue-se um palácio. De frente para o mar, de costas para o bosque, cresce a sua casa. Os dois moram ali, e muitos homens e mulheres entram e saem. Vejo o guardador de porcos trazendo os rebanhos. A governanta lava os pés do homem. O filho nascendo, o velho cão sorridente comendo as sobras. Neste palácio todos podem entrar, mas há algo que nenhum deles sabe, um único quarto que sempre permaneceu fechado a todos. Só os dois podem entrar. Quem mais saberia, de todas as pessoas no mundo, sobre a cama na qual dormiram juntos? Quando ainda não havia telhado, eram as estrelas que cobriam o cepo entalhado onde dormiam; apenas as mãos dos dois conheciam aqueles sulcos. Ela lhe conta a história, ele não para de chorar, se reencontraram. Nesse sonho feliz tenho a certeza de que o mar, sempre, em algum momento, quando for, devolve o que engoliu.