Subi para o meu quarto onde o computador ainda ligado ronronava baixinho. Ao invés de voltar a ele, escovei os dentes e não sei bem por quê deitei na cama. Fiquei assistindo a luz azul da tela iluminar o teto. De vez em quando o farol de algum carro que passava.
Era noite já, e o bairro estava vazio. Fiquei pensando na rua escura, era engraçado. Tão cheia de crianças brincando de manhã, gente lavando seus carros, vizinhos se cumprimentando enquanto saíam apressados para o trabalho e então a hora morta... Até que no almoço as pessoas voltavam. As mães cozinhavam as refeições dos filhos que foram buscar na escola, e depois todos iam atarefados para cidade ou voltavam de lá, era realmente engraçado; se formos pensar todos somos muito iguais, e temos todos os mesmos hábitos, acho que é isso que faz de nós uma comunidade. Todos juntos nos levantamos e víamos o dia passar. Então de noite vinha o silêncio. A outra hora morta. Minha cabeça parecia dar piruetas em minha cama enquanto tentava pensar em todas as casas do bairro e em cada casa uma família jantando, como a minha fizera agora à pouco, e todos sentados na mesa, e em silêncio ou falando, não fazia diferença, falávamos todos juntos e as mesmas coisas. Na hora não me pareceu ruim sermos todos iguais, só me assustou o número. Então minha cabeça teve a vertigem de ver o espaço aumentar. Quanto mais quieto na rua mais eu imaginava cada casa dos dois lados da alameda, e depois no cruzamento, e no bairro, nos jardins todos, nas piscinas, todas iguais, e em cada casa uma luz fraca iluminava a mesma sala de jantar, onde todos éramos iguais e diferente, era realmente uma quantidade impressionante, quem foi que disse uma vez que não conseguiria viver em um prédio porque ficava a imaginar que em cima de si e embaixo também houvessem pessoas, fazendo as mesmas coisas que nós, era como se nos recolhêssemos toda noite para nossas cavernas, era realmente um mundo inteiro nossa comunidade.
Voltei a prestar atenção ao silêncio da rua, para tentar me acalmar. Eu conhecia bem essa hora quieta. Nessa época, eu já havia terminado a escola mas não trabalhava e não saíra ainda da casa de meus pais. Admito que achava estranho ficar tanto tempo ali em meu quarto, vendo o bairro alternar entre momentos rápidos e outros mais lentos. A noite ninguém aproveitava, ficava vazia, e era tão fresca e boa. Sempre achei estranho que nenhum de nós provasse a noite, era curioso. Ninguém vivia nela. Já não pensava mais nos deveres, nas leituras, nos amigos. Agora sempre minha cabeça ia para essa multidão de casas, cada uma com sua família, e na noite vazia.
Quando olhei pela janela ele estava lá. Empoleirado na janela, o torso nu e suado brilhava na luz fraca da rua. Vestia um chapéu de penas como aqueles dos nativos americanos. Tinha a respiração ofegante, parecia estar quase morrendo.
Levantei a tempo de ampará-lo quando ele ia cair no chão. Coloquei ele na cama, o selvagem. Dava pra ver sua pele bem de perto, além de suada estava sujo, quase como se fosse verde, e também machucada. Estava ferido, o selvagem. Ele queria muito abrir a boca e falar, mas eu dei a ele um copo de água, tinha que descansar antes de qualquer coisa. Olhei pela janela de novo e só uma coruja me espiava da árvore, com olhos sinistros. Um carro passou devagar entre as casas e um arrepio percorreu meu corpo.
Ele descansava agora. Apoiei-o em meus travesseiros e ele disse estar melhor. Seu sotaque era fortíssimo, parecia inventar algumas palavras. Foi assim que ele contou pra mim sua história:
Nasceu em uma aldeia, muito longe. Lá onde todos eram selvagens aprendeu a viver na mata. Sabia caçar, sabia lutar, sabia esconder o medo e a fraqueza.
Tinham que dividir a terra onde viviam com outros homens. Eles não se gostavam. Diziam que esses homens tiravam e tiravam, e arrancavam coisas da mata para nunca mais voltar. Para onde iam todas essas madeiras que desciam o rio? Por que cavavam os morros, afugentavam as caças? Eram homens que viviam muito diferente, mas era preciso tolerá-los.
Eu já havia lido sobre isso. Fiquei com pena de meu novo amigo e ofereci-lhe minha compaixão. Acendi um abajur e admirei o selvagem. Suas armas eram rudimentares, quase quebradas. Contra esses homens lutara? Como chegara até aqui? Neste ponto sua história se fragmentava.
Decidira descer o rio, para ver como viviam os outros. Em casebres miseráveis na beira do rio teve que aprender uma nova vida. Trabalhou para os homens para ganhar comida. Todo dia levava toras e mais toras rio abaixo. Seguiu para encontrar uma fortaleza gigantesca, onde ninguém podia entrar. E depois os navios gigantes, que seguiam mundo afora. Embarcou também neles, decidido a lutar, a encontrar a raiz do mal que assolava sua terra. Aqueles homens tristes que conhecera não se alimentavam da madeira, da terra, das penas. Para quem as vendiam? No mar, encontrou outros homens perdidos, marinheiros do mundo todo, e conheceu também o mundo deles.
No porto esperava encontrar sua resposta, ser um herói que salvasse seu povo. Todos em casa morriam de fome e de doenças novas. Na cidade o rechaçaram, o atacaram, ele prosseguiu. Um homem de olhos em chamas, no alto de uma torre, os cães que latiam toda vez que se aproximava, suas visões se seguiam sem nexo. Teve de fugir da cidade, onde o império construíra um labirinto de fumaça densa e ervas venenosas. Armou sua flecha, que simplesmente se quebrava contra o metal dos carros. Era muita sujeira, em todo lugar. Ele era estranho, em todo lugar. Foi engolido por um monstro, mas conseguiu fugir. Escapou para um morro deserto, atrás do depósito de lixo da cidade. Lá reconheceu alguns animais, como uma gaivota e uma raposa doentia.
Correu rápido quando os cães o farejaram, entrou em um bosque ali perto. Cruzou um córrego sujo. Via poucos líquens nas árvores, a floresta era muda. Contornou um arbusto e deu de cara com minha visão:
milhares de casas, todas elas juntas, silenciosas como tumbas. Se olhasse de perto veria luzes acesas, não mais que abajures, onde famílias jantavam, milhares delas. Seguiu por milhas, e em todas as casas via a mesma coisa. Encontrara o que procurava, o coração da fera. Se conseguisse destruir isso, tudo teria fim, pensou. Mas onde atacar, se todo lugar era igual? Sonhou uma última vez com sua aldeia, com a curva do rio que, agora sabia, não iria mais ver. Percebeu que sangrava, teria forças para um último golpe. Via minha janela aberta e escalou. Eu era seu inimigo. Eu, que tivera a mesma visão que ele. Ele olhou para mim e soube que eu era inocente, que eu nada sabia do seu mundo, dos outros mundo, e uns outros tantos que alguém por mim destruía. Mas mesmo inocente ele teria de me matar. Nós dois nos entendemos completamente naquele instante, em que, fraco na minha cama, contou sua história e eu, mais fraco ainda, larguei-me e abri-me para ele, deixando que me matasse.
Com a resto de sua respiração não pôde erguer sua arma. O selvagem morreu em minha cama. Não fizeram muitas perguntas.