domingo, novembro 05, 2006

H. Sark - três / Penélope - um


- "Mas porque não poderia sentí-lo? Acostumei-me a pensar que tudo o que nos viesse na forma de instinto natural de sentimento fosse bom: felicidade, amor, surpresa, ódio. Acredito nas pessoas; acredito que o ser humano está certo, absolutamente correto em suas vontades. Temerosos eram os deuses que destruíram Babel, estes conheciam a extensão de nossa força! - A humanidade depende de nós para ser direcionada e encaixada no correto caminho. Eu vejo no futuro um mundo melhor. Eu também, porque não?, busco o Bem. E por isso acredito que devemos afastar de nós tudo o que nos obstruiu de chegar lá: Deus, religião, esperanças tolas, primitivismos e oposições infundadas. É por isso que escolhi o caminho do guerreiro, sem casa para repousar. Sigo as ordens da grande Torre Negra porque algo em mim diz estar certo. E é confiando em minha humanidade que penso ser o ódio algo natural, portanto aceitável.

- Matar é a lei na selva. Sendo humanos progredimos, isso é claro. Nós saímos do estado de selvagem bestialidade. Porém, ouso afirmar que o ódio ainda nos guia!

- Claro, claro, e porquê não? Não entendo porque as pessoas me olham deste modo quando trago o assunto à baila. Por acaso pareço louco? Eu, pessoalmente, posso dizer que estou onde estou - Chanceler de estado-maior da corte de Olstomé, dito com orgulho - graças ao meu ódio. Quando era pequeno uma guerra e uma peste deram conta de aniquilarem meus familiares mais preciosos; só eu sobrevivi. Se não fosse pelo meu ódio, pelo meu instinto de vontade de viver, não teria saído nunca do buraco onde me enfiara para morrer. Estou onde estou porque batalhei para isto. Lutei acirradamente pelo que eu acreditava. Detesto usar frases melosas de poetas menores, tolos e piegas, porém não há outro modo de colocar a situação. Acreditem: sou eu feito de meu ódio, a partir dele moldado e no mundo inserido. Tenho orgulho de minha posição. Orgulho tremendo!

- Acredito que somos movidos por ambições. Ninguém é capaz de fazer algo verdadeiramente altruístico. Quando fazemos um bem somos movidos por instintos mais básicos (ou seja, mais humanos) do que gostaríamos de afirmar, tais como a vontade de sermos valorizados, a Cobiça por recompensas, o desejo da Fama. Não existe o Bem e o Mal. Portanto, ninguém é capaz da maior das malvadezas sem se arrepender, assim como ninguém é capaz da maior das caridades sem um interesse pessoal em segundo plano. "Faço o bem para ir para o Céu!" Amem, cantam os padres, Amem. Isso tudo me enoja.

- Mas porquê falava disso? Ah sim, para justificar-me. Justificar aquele meu sorriso de alegria diante do livro de poemas sangrados. Cada vez que os abro (não há como negar para uma platéia tão cônscia da verdade) sorrio ligeiramente. A tristeza de Pátroclo só me causa alegria. Adoro ver suas linhas infelizes deslizando pelo papel, me regojizo com seus suspiros de dor, quase dou risada com suas promessas suicidas! E quem há de dizer que meus sentimentos são ilegítimos? São tão naturais e espontâneos! - como o amor! Contra o qual não há remédio.

- Se odeio Pátroclo é por causa da sua infeliz propensão à Poesia. Ele não é capaz de compor um ode decente que seja, mas se vangloria como o maior dos Camões. Ele é um homem cheio de faltas e pecados - defeitos inúmeros! Não vejo como ele poderia ser merecedor de meu amor e caridade. Ódio é só o que tenho para infelizes como ele.

- A raça humana é sem dúvida um brinquedo interessante para os Céus. Tão frágil, tão tola, tão insípidamente voltada para o vazio de si própria. Um dia desejo que tudo isso acabe, que todos se vão para as profundezas do Inferno e deixem o planeta a descansar!"

"Um dia, voltando para casa, encontrei no chão molhado algumas pegadas. Estavam marcadas contra a lama que o resto de uma chuva recente deixara próximo ao bosque. Inclinei-me devagar para observar aquele resto de pessoa. Algo tão sutil, deixado sem pensar no chão. Uma marca solta, um caminho percorrido. Voltando para casa peguei o bloco de desenhos e, reclinada contra o tronco da árvore do jardim, tentei desenhar como seria o homem que deixara a pegada no chão.
Seria ele alto? Talvez pelo comprimento da marca pudessemos dizer.
Seria ele velho ou novo? Outra vez o tamanho do rastro nos informaria a respeito da idade do misterioso personagem.
Acreditava ele em um universo único ou em milhares de divindades espalhadas dentro de cada um de nós? ... Ah, mas isso não poderia ser respondido pela pobre pegada! Isso teria de ser um recheio bem recheado, feito com esmero a partir de Imaginação apenas.
Fiquei a imaginar que pegada eu poderia ter deixado. Será que poderiam ver pelo comprimento de meus pés o meu gosto por mel? O que de mim ficaria para sempre e o que sumiria no vazio do universo?
E o que de fato sabemos sobre os outros? Não encontrei solução, não sei o tipo de pegada que minha Mãe deixaria. Gosto muito de explorar estes limites que definem pessoas diferentes.
Se falo muito é por puro nervosismo, ou quem sabe excitação de encontrar algo diferente.
Tentei por muito tempo ser os outros. Fundir-me à Existência e pensar junto com minha Mãe, caminhar junto com meu Pai e deitar-me na sacada com o gato Rosnado. Gostaria de saber se os pensamentos são realmente transponíveis entre as pessoas. Será que durante a mutação em palavras algo se perde? Até que ponto podemos nos transmitir aos outros?Um dia percebi que os sonhos são coisas únicas e pessoais. Sonhos são algo que só vive o sonhador. Ao tentar explicar à Mãe a paisagem etérea que vi durante o sono, percebi o quanto as palavras deturparam o sentido do que vi, obrigando algo tão incorpóreo a existir no mundo. Nunca mais expliquei sonhos. Eles são só matéria pessoal, diluída, efêmera. Tinha medo de matá-los ao prender palavras pesadas em seus fios compridos de imagens e ilusão.
O que não deixa de ser irônico: palavras são a minha vida.
Desde que eu era pequena eu me imaginava com este certo caminho, e sabia quais eram as escolhas certas a fazer para percorrer o meu caminho de mim mesma. Escolher errado era me perder, mas talvez, penso agora, sozinha no quarto, talvez não existem escolhas ou caminhos. Quem sabe o que eu teria sido ou dito em outras situações? Em qualquer escolha eu teria as palavras a me acompanhar, como sempre fizeram?
Divago demais. Sei que são coisas que não poderei passar completamente a vocês. Claro, sentimentos e sonhos são formados da mesma matéria. Como poderia transmitir para uma outra pessoa algo que não existe? Quais os canais que somos capazes de usar? Até que ponto as palavras são confiáveis?
Continuo a escrever, pois é assim que eu aprendo. Aprender, eu suspeito, é lembrar-se. Me parecem existir coisas que já sabíamos desde há muito. Eu sei, pois isso é algo que me demorou para ficar claro. Mas um dia, olhando o mundo, lembrei-me, descobri. Percebi que as coisas são o que elas são.
Divago novamente? O que queria perguntar-me era sobre a validade das palavras. Não sei se é possível saber o Outro, mas continuo a empurrar os limites. Sonho que um dia as palavras hão de me levar lá, onde só existe cachoeira e silêncio. Quem sabe no final do arco-íris não exista uma Palavra Perfeita, capaz de destruir as barreiras que condicionam a existência.
?
Quem sabe?"

2 comentários:

Anônimo disse...

Nossa!
Adorei..... poderia ler um livro inteiro somente sobre isso =p...
Eh tão gostoso perceber os pensamentos dos personagens e as verdades dentro deles.
E a Penélope... Ah eu não sei quem ela é mas eu adorei =DD


(boa noite sombra do charles o/ a minha sombra manda lembranças)

Ozzer Seimsisk disse...

apoiado apoiado

e não tenho mais palavras.