sexta-feira, outubro 12, 2007

Rumo à Esperança IV


Em Esperança, as pessoas choram toda vez que precisam debulhar o milho e, muito tristes, cantam em coro assim:
- Ai milho, querido milho. Por que se deixaste comer por nós?
Terminado o trabalho colocam os alimentos no barco da cidade e baixam as velas para aproveitar o vento fresco que desce o rio. Muito lentamente, seguindo o movimento das nuvens no céu, os habitantes de Esperança navegam pelas águas calmas e cantam outra canção, mais alegre, mais despreocupada, que diz assim:
- Ai rio, querido rio. Por que nos leva adiante tão sem piedade?
A música é freqüente nessa cidade. Mesmo quando os ferreiros amolam as facas e afiam as espadas e os cozinheiros recolhem o óleo quente para ser usado contra os assaltantes das fortalezas, a canção paira no ar, suave e fresca, em meio à guerra. Apesar de pacífica, Esperança já participou de uma guerra em sua história. Apenas uma, mas uma que já dura séculos e não tem sinais de que chegará algum dia ao fim.
Os sitiantes não entendem como os habitantes dessa cidade feliz podem continuar a viver entre os sítios prolongados, o som dos aríetes no portão e a chuva de flechas incendiárias por sobre as casas. Não se preocupam e, curiosamente, até agora nenhum habitante de Esperança morreu por causa da guerra.
No domingo, que é dia santo, os atacantes repousam suas armas e iniciam uma trégua reticente. Não gostariam de parar nunca, pois seu ódio contra Esperança é enorme, e só o que querem é destruí-la e ver suas construções virarem pó e escombros.
Mas no domingo tudo pára. E o silêncio do lado de fora é acompanhado de mais música no lado de dentro. Porque é no domingo que chegam na cidade os viajantes de todas as partes do mundo, cansados e felizes. E é feita mais uma festa, mais uma comemoração em honra dos recém-chegados. Comem o milho colhido, apreciam a brisa ribeirinha e observam os costumes locais: os ferreiros que cantam enquanto amolam armas, os cozinheiros que cantam enquanto fervem o óleo e os jovens que cantam ao treinarem com espadas vestindo lindas armaduras de prata.
De vez em quando Esperança recebe a visita formal do majordomo da Bavárdia, Alto Inspetor do Reino Mundo. De rosto comprido, tez carrancuda e barba de bode, o majordomo sai distribuindo condenações e intimações por todos os lados, batendo ocasionalmente seu pequeno martelo de madeira para exigir ordem. Ele vem inspecionar e receber as reclamações e pedidos, em nome de sua Majestade, cujo reino e domínio são todos os países do mundo, cujos limites são ditados por Deus, cujo trono é Behemot a Baleia Universal, que não tem tamanho, mas seus olhos são medidos pelo total do Conhecimento e sua boca cabe na Imaginação Possível e Impossível, não sendo portanto, sua figura conhecível. É mera formalidade que a chamamos de Baleia.
Reunidos na sala de Inspeções e Reais Ordens, enquanto se escuta externamente os tiros dos canhões inimigos, o burgomestre da cidade implora ao majordomo que escute os habitantes. Estes, um pouco atrás, balançam desesperados a cabeça, como que induzindo-o a aceitar a proposta.
- Uma nova casa para minha filha que vai casar - pede uma senhora.
- Não - resmunga o majordomo da Bavárdia, batendo seu martelo.
- Um silo para guardarmos os cereais - pede o burgomestre, de mãos torcidas - Pense no inverno!
- Não.
- Um rota do circo, armas melhores, casas terminadas e seteiras para nossas fortalezas.
- Não - bate o martelo do majordomo inflexível. Nunca o convenceram, mas não desistem os habitantes. Perseguem-no suplicantes pela cidade inteira durante a inspeção.
- Mais comida, mais trabalho, mais descanso e mais amigos!
- Não, não, já disse que não.
E vai batendo seu martelo.
- Novas letras de música.
- Novas pedras de amolar.
- Um navio que cruze qualquer mar!
- O amor daquele rapaz!
O majordomo é sardônico. Satânico, sereno, lacônico e determinado; seu martelo nada permite. Todos em Esperança suspiram e voltam para sua cidade que ainda-está-a-caminho-de-ser. Finda a visita, veste seu chapéu côco, abrem-lhe a porta sul e sai correndo de pasta na mão por entre os tiros da artilharia, as trincheiras inimigas, o espoucar das armas, e some na estrada.

2 comentários:

muriel disse...

parece aquela peça "O Inspetor Geral".

muriel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.