sexta-feira, março 17, 2006

Uma história

O mar, o doce aroma fresco que entra pela janela. Os penhascos enormes invadem o pequeno quarto e me puxam na direção do som das gaivotas. Não, frei Lucath ficaria furioso se me visse aqui, devo voltar ao manuscrito para terminá-lo antes que o sol desapareça e mergulhe minha cela na escuridão perpétua. Já já os sinos tocarão e terei de descer. Por enquanto, novamente, eu me recosto na cadeira de madeira, espartana, firme, feita de troncos da floresta do povoado, e volto a escrever. Paro no meio do meu movimento e penso na floresta que apenas visitei com o olhar, observando-a secretamente pela janela da torre do sino. As copas das árvores eram ondulantes e verdes, flutuando com o vento, calmamente como um grande mar sereno, igual ao verdadeiro, que observo pela minha pequena janela quadrangular. Me espanto, estou novamente à janela. Lucath censura esta minha curiosidade pelo mundo lá fora. Sempre sonhando com o mar, ele me diz usando sua voz severa e potente, isso não há de ser bom para um filho de Deus; a curiosidade é a principal arma do demônio! Demônio, quantas vezes ouvimos essa palavra aqui dentro, sussurrada e escondida pelos corredores, censurada e encarada com paranóia. Aqui é um antro sagrado, onde o Demônio não reside, graças às nossas penitências diárias e todas as rezas que o frei Lu... Meu Deus! Olho para minha perna direita, dependurada por cima do parapeito da janela, se esticando na direção do penhasco, buscando essa ardente brisa marinha! Quase que sou levado para fora! Acho que não tenho muito controle sobre meu corpo. Queira Deus que frei Kiril possa me ajudar nas penitências, para que o demônio não mais resida em meu corpo. Será que estarei perdendo o controle? Me sento à mesa tentando aparentar calma. Busca a caneta com minhas mãos ainda trêmulas e risco linhas no papel doce. A sua textura me abre caminhos por entre a escrita. Olho o texto escondido no livro que está à minha frente. Apesar da crescente escuridão ainda consigo ler a bela caligrafia dos mouros infiéis. A escrita árabe não me é estranha: fui criado no seio de uma família moçárabe da Ibéria, minha terra natal. Foi minha mãe, meio árabe de cabelos negros, meio cristã de pele alva, que me ensinou a ler e escrever em sua língua materna. Me ditava as doces letras que compuseram minha infância por entre acácias naturais e aromas de mel. ..Isso foi antes que o meu pai me enviasse ao mosteiro para que eu me tornasse um monge, trazendo assim uma reputação extra à família. Memórias que já estão quase apagadas pelos longos anos passados aqui dentro. Longos anos nesta cela de pedra. Sendo o único que sabe ler e escrever em árabe, sou necessário para o mosteiro como copista de vários textos mouros, e frei Lucath precisa que meus olhos estejam sempre nos livros para que eu termine as trad... Novamente aconteceu. Estou na janela e vejo gaivotas voarem próximas à minha cabeça. Estava quase terminando o manuscrito quando me deixei levar pelos pensamentos. Acontece com frequência, d'eu ser levado pela minha mente; talvez não esteja rezando com o devido fervor. Deus me ajude a controlar meus pensamentos. Nem mesmo a inóspita cela que faço de lar é capaz de aplacar minha imaginação; ela sobrevive aos invernos hostis onde a comida é rala e os morcegos gritam toda noite; ela sobrevive aos rituais longos e cansativos da cópia de textos; sobrevive aos sermões de frei Lucath e ao meu desespero criado pela minha indisplicência. Deus ajude-me! Já não sei o que fazer. É hora de obedecer frei Lucath e copiar os textos, como venho fazendo todos os dias desde que entrei para o mosteiro. Talvez a monotonia termine por me convencer. É isso, devo voltar antes que escureça e tudo... A gaivota maior passa por cima de minha cabeça. Ela é a minha companheira de manhãs vazias. Minha vida é vazia. Passo os dias rezando e transcrevendo os livros mais antigos. Vivo ouvindo o mar e sonhando, sonhando com algo que há lá fora, algo maior que tudo isso. Com aquela bela floresta ondulante que passo horas admirando escondido na torre do sino. Minha vida é solitária, não existe sonho, amor, ou outra coisa além dos livros antigos, das penitências, das rezas (as longas rezas que ocupam os dias e noites sem fim) e as gaivotas. Invejo-as, Deus meu, como sou pecador por invejá-las e querer ter essas asas longas e belas que flutuam pelo vento assoprado do mar, vindo de terras distantes de onde vem a língua bela, prendada e poética de minha mãe. Sentado no parapeito, minhas pernas já saltam para fora da janela. Entrelaçando-as, como os dedos de um amante segurando os do outro, abro os braços e estico-os, tenho asas também e respiro alegre a brisa suave. Esqueço completamente o mosteiro e todos os anos em que fiquei preso aqui dentro; agora sim posso sorrir de dentro do meu coração e pensar em liberdade. Os pergaminhos voam com o vento que entra forte pela janela e minha mente pecadora voa pelo mar e para longe. Estou indo mãe, vou até as terras que você me narrou, voarei como uma gaivota, a única gaivota que sabia voar dentro dessas muralhas de pedra. Me solto, o vento bate em meu corpo, estou voando, vou para longe, abro minhas asas. O vazio do mosteiro fica para trás e o vazio do mundo se abre para mim silencioso. O mar..

8 comentários:

Pure disse...

É inútil falar que o texto é lindo...

A janela... Acho que todos temos uma janela pela qual olhamos a vida que queremos ter, a vida que achamos que deveríamos ter. Mas, às vezes eu penso: será que não dá para aproveitar a vida de dentro da janela sem olhar tanto pra grama do vizinho?


Obrigado... o que você escreveu foi exatamente o que eu precisava. Obrigado mesmo.

Anônimo disse...

Dolorosamente maravilhoso.

Todo mundo é um pouco como esse monge.

Ozzer Seimsisk disse...

onde foi que eu já li isso...?

Além de em Sláine ou em um poema simbolista, claro...

Onde foi que já li isso, Cham?

Anônimo disse...

O mar...

Charles Bosworth disse...

Ô Marina... Esse texto saiu de um e-mail que eu te mandei... Mas tudo bem que você não se lembra e tal... *snif*... Brincadeira. Mas tenta não esquecer dos outros textos que eu te mandei..

Ozzer Seimsisk disse...

¬¬

Nota cult: vc já me mandou algumas dezenas de textos. Você quer que eu lembre de todos??

Charles Bosworth disse...

Acho que você sabe qual é a minha resposta...

Anônimo disse...

Eu gosto desse texto. É que ele é feito inteiramente em um só parágrafo. Um parágrafo! Desde quando eu consigo fazer textos em um só parágrafo?? Eu sou o rei da quebra-de-linha e de repente faço um texto em UM parágrafo! Nossa!