terça-feira, agosto 29, 2006

Uma história III

Ou:
A história da garota aymará que descia os degraus, ou: A longa escadaria de uma ilha perdida no meio do Lago Titikaka.

Duas horas de navegação pelo lago frio. O sol, que muito iluminava mas pouco aquecia, brilhava por sobre a superfície de pérola do Titikaka. O barquinho se movia devagar, poc-popoc, cruzando água, passando pelas ilhas de junco.
No horizonte aparece uma grande massa de terra amarela, a Isla del Sol. O guia nos diz que devemos aportar em um dos lados da ilha e caminhar até o outro, onde ficaria o restaurante. Tudo bem, caminhar aquece, é gostoso andar observando o azul da água se misturar com o do céu e com o amarelado seco do capim na terra.
Descemos no embocadouro e o barco saiu devagar, para nos pegar depois, do outro lado da ilha.
O grupo então se dividiu. Alguns foram na frente, outros, mais cansados e doentes ficaram para trás, caminhando devagar. Eu resolvi seguir.
Fui andando lentamente no começo, mas sei que não consigo fazer isto por muito tempo. Queria ser o primeiro. Andei rápido, quase apressado.
Passei por várias pessoas, ultrapassei um grupo inteiro conversando.
Até que fiquei sozinho. Andava sem me cansar, subindo e descendo colinas e morros, olhando para a ilha. Percebi que o guia tinha nos enganado: aquela não era de modo algum uma ilha pequena. O outro lado ficava uns bons quilômetros afastado, e o restaurante então... Mas tudo bem, era delicioso andar sob o sol, no meio de uma ilha, no meio do Titikaka, no meio dos Andes, no meio da América!... A água era quase verde próximo à praia e azul profunda no horizonte. De vez em quando se viam algumas casinhas de telhados vermelhos, onde moravam (no meio do nada) pessoas calejadas e senhoras de roupas coloridas, que andando de um lado para o outro na única estradinha da Isla del Sol. Sorria e balançava a cabeça para os velhinhos que passavam e imaginava coisas que me ajudavam a seguir em frente e rir(como o fato de que a palavra para "vamos!" em quêchua é "háccu").
Eu me sentia muito alegre por ter ultrapassado todos do grupo e alguns turistas no caminho, me sentia muito rápido, muito feliz, muito disposto a fazer qualquer coisa no mundo sem nem mesmo me cansar.
Até que eu cheguei na escada.
Ela descia, do topo da ilha até o porto lá embaixo. Era o porto do outro lado, onde se via uma vilazinha com um arco em ruínas como portão e, provavelmente, onde se encontrava o tal restaurante.
Comecei a descer a longa escada. Mais uma vez, me sentia veloz e ágil, passando por duas moças que estavam morrendo de medo dos degraus íngremes.
Alegre, invicto, o mais rápido daquela ilha toda!
Ia pulando de degrau em degrau, quase dançando, sentindo o sol.
Passei por uma casa, uma casinha simples de terra batida plantada na encosta da montanha, no meio da escada. A porta se abriu apressada e uma garotinha saiu, bateu a porta rápida e passou por mim. Ela tinha quase que dez anos, ou menos, usava uma linda roupa colorida e nem me viu.
Um pouquinho à minha frente ela começou a descer a escadaria. Eu, que tinha vencido todas as pessoas no caminho, achei que seria interessante passar a garotinha. Apertei o passo, pulei alguns degraus.
Ela, timidamente, seguia sem parar, com passos de cabrito, conhecendo cada rocha do caminho, sabendo sempre onde pôr o pé. Tentava correr o mais que podia na escada de pedra, mas o meu máximo só era suficiente para acompanhar o passo apressado da menina.
Ela descia a uma velocidade alucinante, quase voando. Para ela não era uma escada, era uma continuação do corpo leve, parecia feita de vento! Eu pulava, corria, me apressava; sabia que só um pouco mais rápido eu tropecaria e cairia feio, rolando escada abaixo até o porto. Não tinha mais velocidade do que aquilo, e ela.. ela dançava, sem se importar comigo ou nada ao redor.
Ficamos um tempo assim, correndo, correndo. Ela na frente e eu alguns passos atrás, cansado mas ainda determinado a alcançá-la ao menos. Descemos assim, juntos, uma longa sessão, antes que eu desistisse.
Perdi a competição. Quero dizer, a competição só existia na minha cabeça. Ela estava só andando apressada. Era eu quem queria me provar como o mais rápido. Ela não precisou provar nada, ela desceu os degraus tão agilmente que eu pensei que fosse impossível. Diminui o passo, incapaz de continuar aquela perseguição inútil. Desisti de ser o mais veloz e olhei a garota sumir escada abaixo.
Quando eu cheguei ao porto, nem sinal da menininha. Talvez ela já tivesse subido de novo por outra escada, talvez ela tivesse entrado em alguma casa.
Gostei imensamente dela, e prometi que nunca mais a esqueceria. Uma garotinha que morava em uma casa de terra, no meio de uma escada que descia uma enconsta de uma montanha em uma ilha perdida no meio do Lago Titikaka. E que descia os degraus mais rápida do que eu jamais poderia conseguir.

3 comentários:

Ozzer Seimsisk disse...

Odara... e tudo se esvanece...

Conta mais. Dá vontade de se aventurar, sonhar, esse seu mundo, o mundo, tudo isso...

Algum dia quero conhecer esse lugar...

Charles Bosworth disse...

E eu quero voltar...

Pioux's disse...

Eu vou ^^