sexta-feira, setembro 29, 2006

Sonho de Inverno

Estava dormindo tranqüila dentro de um sonho. Lembro-me da luz das estrelas entrando pela janela e da confortável colcha ao meu redor. Lembro-me também de sair do meu corpo quente e de vagar além, pelo Palácio Oceânico.
Meus pés tocavam o frio metal resplandecente e apenas de camisola cruzei um longo corredor, onde luzes pulsavam mecânicas e perfeitas.
Procurei devagar pelo sonho perdido, admirando a força titânica que retumbava no silêncio do Palácio Oceânico. Olhei seguidamente cada uma das portas e janelas feitas do mesmo misterioso metal presente em todas as estruturas. Longe, sentia os acordes de um suspiro conhecido e parei para respirar - Via de novo algumas das imagens que sobraram do sonho perdido: um sobrevôo de Paris no verão, um rosnado fugaz de um urso cinzento, o primeiro bispado espanhol, a última xícara de café.
Esfreguei os olhos sonolenta e decidi entender esse mundo novo e assustador que se abria à minha frente; premi uma das estruturas na parede e preparei-me para o empurrão. O Palácio Oceânico regurgitou as lembranças desexistentes e me afundou em seu vóritce na parede.


De volta à sala de jantar, lá estava ele.
Eu disse "Você foi meu marido" e ele respondeu olhando sério para mim por cima do bigode: "Não fui. Você está sonhando de novo".
"Não posso estar sonhando, isso é impossível".
Tia Ermina entrou na sala e tivemos que disfarçar a conversa, prestando enorme atenção às nossas xícaras de café.
- Enfim meu caro Thomas, conte-me logo tudo! - ela esganiçou, daquele jeito detestável que faz quando se intromete em nossas vidas.
O velho senhor que estava ao meu lado começou a conversar sobre uma viagem da qual havíamos acabado de retornar, meu marido e eu.
Eu olhava enquanto ele descrevia os prédios brancos da grande avenida arborizada, os rios quase parados, as moças de sombrinhas que passeavam alegres pelo jardim. Segui com os olhos a linha longa de seu nariz, o seu bigode branco-cinzento.
Perguntei-o "Onde estamos agora?" quando Tia Ermina estava ocupada limpando a garganta. "Na sala de jantar" ele disse sorrindo. "Que sala de jantar?" "Esta sala de jantar." "E onde fica está sala de jantar?".
Enquanto ele pensava, tia voltou a perguntar-lhe infinitas miniscularidades e perdemos nossa conversa. Em silêncio me perguntei aonde estávamos indo. Afundando assim nos pensamentos era mais do que assustador ou aterrorizante. Era além dos sentimentos humanos.
- Quer comer algo Thomas? - perguntou-lhe a tia. "Seu nome não é Thomas!", pensei em gritar "Este é o velho Tom que eu trouxe da floresta de Mnéias!"
- Adoraria!
"Seu nome não é Thomas. Você não é Thomas."
Ele me olhou oblíquamente, semi-sorrindo.
"Você é Tom" eu disse, e sem-querer percebi que um tom de pergunta escapara de minha boca.
"Eu sou" ele garantiu afirmativamente, balançando a cabeça.
"O que faremos agora? Você estava me ajudando a procurar."
- Pensei em controlar melhor os gastos Thomas - comentou o seu irmão - A empresa podia diversificar a sua produção em Schilleri, para poder vender em Capital o excedente.
Tom olhou para o lado e começou a conversar sobre a empresa com tanta facilidade e fluência que fiquei completamente desconcertada ao pensar que ele não era meu marido. Era só um estranho em seu lugar. Um estranho que usava as mesmas expressões e tinha a mesma cadência que ele.
Minha cabeça estava apoiada em seu colo.
"Porque você está aí?"
Tom olhou-me. Imaginei que ele soubesse o que eu quis dizer, mas ia me obrigar a explicar. "Porque você está no lugar dele?"
Ergueu e abaixou os ombros, indeciso.
"Porque você o quer" ele respondeu, e isso me irritou mais do que tudo.






Acho que isso deveria ter-se chamado "Os sonhos de Clara Mellock - quinta parte", mas não pude conter a vontade de fazer uma surpresa.

2 comentários:

Pioux's disse...

hummmm q .... estranho e triste e..... estranho...

Ozzer Seimsisk disse...

é delicioso... não... é como uma melodia, ondulante, nectarina... é... como a ondulação dos morros, mas de forma aflitiva, clara clara... Toda essa história... ou como o movimento da grande serpente que dá forma ao mundo uma... não sei, oroboros... tudo onda...