"Não sei por onde começar. Não sei, não sei mesmo. Estou tão perdida!
Dentro e fora do grande templo é a mesma coisa. Aqui as sombras frescas silenciosas, lá o campo lindo infinitamente quieto. Nenhum dos dois me oferece paz de espírito; continuo tensa e percorrida por fantasmas, vozes sussurrantes.
Ainda ouço ecoando a voz do templo, aquela voz que nunca foi ouvida:
"Penélope Noite... ela chamava... Você é... - "
Não, não quero mais continuar! Chega de ouvir os sussurros de novo e de novo!
Agora quero ficar sozinha, sem ver ninguém, sem dizer palavra. Só este caderno me dará algum conforto, aqui onde me escondo.
"Se eu soubesse o que fazer!" chora a minha cabeça.
Pá-Tum-tum! Pá-tum-tum! canta meu coração acelerado.
E eu fico aqui no meio, totalmente perdida e sem saber o que é o melhor. Gosto de pensar que, independente do que acontecer, as coisas vão melhorar. O mundo vai se aquietar e me deixar embalada em seu sono.
A voz me pediu para abandonar a minha vida.
Até onde eu vou ser capaz de fazê-lo? Tenho uma terrível aflição do futuro, um medo sem razão.
Estou hospedada neste templo há três dias. Vim a pé de Estafansa para desejar saúde a minha convalescente Mãe, que está de cama desde que resolveu sair doente para o festival do Verão. Ora, adivinhem, sobrou para a sua pequena Penélope pedir uma ajuda aos deuses, e por isso me encontro aqui no belíssimo Campo das Estrelas, vendo o vento bater no capim e dançar, ou o sorriso fervoroso dos peregrinos diante do altar central.
Engraçado pensar que eu vim aqui atrás de deuses. Pode-se dizer que encontrei mais do que gostaria, que encontrei uma nova vida a me esperar, como um corvo espreitador grasnando meu nome.
Mas as freiras são muito gentis. Cuidam de todos os peregrinos e viajantes que chegam à estas paragens e cozinham para nós em sua cozinha colossal. Tem sido muito agradáveis estes últimos três dias - apesar das dúvidas, agonias e repetidas reflexões tortuosas que me afligem sem parar. Ah! (nem sei mais a quem suspirar! Deus, deuses, eu? alguém ouvirá minhas preces? Sinto inveja dos outros peregrinos; eles têm a atenção dos céus enquanto que de agora em diante eu terei de fazer tudo sozinha).
Às vezes escapo para o jardim. Fico olhando as longas colinas quase-mar. Digo deste modo porque é o que me parece quando olho o vento batendo no capim: um lindo mar ondulante, corcoveado e verde. Se fosse assim, o grande templo de Campostela seria o navio que cruza reto as águas, e eu sua passageira.
Para onde vamos? Por enquanto fico aqui. Ora sozinha nas sombras, ora ajudando os peregrinos que chegam maravilhados. Vamos meu grande navio negro! Você roubou o meu destino com sua voz portentosa, então diga-me aonde devo ir e cruzaremos juntos as águas turbulentas.
Sei que agora só me resta o desterro: vou viajar para todos os lugares que existem. Esta idéia me enche de medo e assombro. Que maravilha! Que terror!
E minha Mãe? Por causa dela vim até aqui e agora será que devo abandoná-la também? e meu Pai? e o meu querido gato Rosnado?
Nas sombras do templo eu às vezes choro. Mas às vezes mal posso esperar para sair e conhecer lugares tão bonitos quanto este Campo das estrelas. E o que posso fazer? Como agir se sou apenas Penélope Noite?
Noite... foi este sobrenome tão diferente dado pelos meus pais que me enroscou em meu destino. Agora quero só saber como vou agir e o que fazer com o Passado. Me ajude meu anjo da guarda, eu preciso de você; e é por isso que olho com inveja os atendidos peregrinos.
"Penélope Noite... disse a voz que era feita de escuro... Você é a Escolhida das Sombras, ouviu? Você tem que encontrar o Krystalian agora. Esta é a sua missão, Escolhida das Sombras."
Ouviu?
Sim, ouvi.
" Olstomé vai cair. O que vemos agora são os dias finais deste Império agonizante, prestes a entrar na escuridão e no esquecimento. Digo, com um pouco de receio de me tomarem por um fanático louco, que só podemos nos felicitar pela queda de um reino tão cruel e cheio de vícios como este. Sei que pareço hipócrita, já que, como sabem, fui chanceler do estado-maior de Olstomé, um cargo importante, influente e tudo o mais. Mas, se querem mesmo saber, estes dias estão no fim. Não sou mais um gentil súdito olstomiano: meu ódio me levou para longe deste erro. Como sempre digo, minha raiva e meu desejo de felicidade acabaram por me afastar do caminho ruim, de encontro ao magnífico projeto de Uruguthár!
Começou quando percebi o abuso dos impostos sobre a população. Durante as revoltas nortistas, quando os 7 reinos se separaram de Olstomé, 100.000 pessoas morreram de fome por não terem como comprar seu alimento. Uma delas, por acaso, foi Forja Lunn, minha antiga madrasta e sobrevivente das guerras e pestes que aniquilaram minha família. Não que eu tenha motivos para chorar um desafeto ancestral, mas o fato de conhecer uma das vítmas do descuido governamental me abriu os olhos para a grande quantidade de problemas no reino. Antes, quando eu ainda era um tanto ingênuo, pensei que era a minha chance de consertar o que estava errado. Já que era o chanceler de estado-maior eu poderia trazer a solução; mudar o mundo e coisa-e-tal. Olhando agora, vejo o meu engano. Eu tinha muito menos poder do que o meu título pomposo me levara a acreditar; os grandes do reino me esmagaram sem dó, e pior, fingiram que eu não existia. Nem se deram ao trabalho de discutirem comigo, o seu silêncio orgulhoso foi devastador. Arrasado, percebi o quanto o poder era importante, e o quanto Olstomé era fraco. E fútil. E tolo. E que seus súditos não passavam de um bando de babacas sem pensamento próprio.
O que eu buscava, percebi, era maior que tudo aquilo. Era um poder mais puro e decisivo, capaz de realmente moldar o mundo.
Então entra em cena a grande Torre Negra que estão construíndo no leste. Ah, mas os escritores que a apelidaram de nada sabiam! Deveriam chamá-la de Torre Branca, Torre da Virtude, Torre do Poder! Sua magnífica construção se estende diante do rio de fogo como uma mão enorme, a nos receber. O que se discute ali dentro é a criação de um mundo perfeito! Pois ouviram o que eu disse? Ali se discute, ali se conversa. Ali nós podemos juntos criar algo superior. Seu idealizador, um homem desconhecido e misterioso, está sempre nos mostrando o caminho correto a ser seguido. Foi ele quem me ensinou sobre o poder. E disse que meu futuro seria glorioso, pois meus ideais de guerreiro serão coroados na Nova Era - a grande Uruguthár. Uma Era sem tolas bobagens e convercices sem sentido.
E é assim que me encontro aqui nesta estrada, viajando com meus dois companheiros de Missão. Pois viram o que aconteceu? Depois de apenas sete meses dentro de Uruguthár já tenho uma missão especial. Aqui sou reconhecido, diferente de como acontecia no finado Império de Olstomé. O que diria meu antigo mestre se me visse aqui?
Já lhes falei sobre ele? Dou risada de me lembrar do habilidoso espadachim Haramis Mictian, que durante uma guerra foi se esconder em uma tumba e lá dentro encontrou um garotinho de treze anos. Treinou-o sob o caminho do guerreiro e o fez crescer sob sua rigorosa diciplina. Ensinou o que ele podia aprender e hoje aqui estou, o mais brilhante estrategista de todos! Mas já chega, que começo a me gabar. Mestre Haramis teria me dado uma bela bordoada por isso, e me encarado sério com suas sombrancelhas encurvadas, exigindo um pedido de desculpas. Me pergunto onde ele está agora? Talvez também tenha se juntado à Torre Negra; seria bom lutar ao seu lado novamente, mostrar-lhe o quanto amadureci na arte de desembainhar e na de matar. Seu conhecimento sobre as pessoas e suas naturezas seria uma grande vantagem nesta guerra que se inicia. Nós, aos poucos, estendemos nossa influência para o oeste, visando o mundo como um todo. Mestre Haramis: um bom substituto de pai, um excelente espadachim. Gostaria de vê-lo novamente.
Não há como negar que seria melhor companhia do que estes dois que caminham comigo. O primeiro é o odioso Pátroclo, por quem eu nutro um ódio antigo e azedo, mas que insiste em me acompanhar. Seria tão bom se neste novo mundo que surge pudéssemos matar quem nos viesse à telha! Seria a sobrevivência do mais forte e o fim dos chatos pedantes. Pátroclo certamente teria conhecido o seu fim a um bom tempo; e não pensem que eu teria qualquer segundo pensamento ou remorso. Já matei e matarei de novo pelos meus ideais. Penso que se um ideal é verdadeiro ele é forte: e qual é a melhor maneira de demonstrar a força de um ideal senão matando por ele? Mas não levem à sério minha brincadeira de mau gosto - voltemos ao assunto.
O outro companheiro é Ganzelthot, apelidade de Ganz, que veio reclamando a viagem toda. Mesmo assim, ele é meu único amigo, se é que posso dizê-lo assim. Ganz é forte e habilidoso, respeito-o por isso: estamos em pé de igualdade no que diz respeito a lutas corporais. Já no que concerne o pensamento, sei que sou mais inteligente. Se bem que Ganzelthot tem uma característica que dispensa o raciocínio: a crueldade. Extremamente perverso ele é capaz de qualquer coisa e muitas vezes me surpreendi tendo que pará-lo ou refrear seus instintos assassinos. Mesmo assim, ele é meu único amigo.
Se é que posso dizê-lo assim.
A estrada ao sul da capital Estafansa é esburacada e poeirenta. Faz muito tempo que andamos. Ouço Ganz praguejar novamente e Pátroclo sibilar consigo mesmo. Se o Novo Mundo se iniciar com sujeitos como estes daí estaremos em maus lençóis. Mas, como disse, confio nas pessoas. Sei que todas merecem duas chances e que podem mudar. Afinal, é isto o que queremos fazer: mudar as pessoas. Visando sempre o Bem maior.
Mal posso esperar o fim da jornada. Ao longe já vejo a grande e negra silhueta do Templo de Campostela, por entre os campos ondulantes de capim. A noite chega e podemos ver as lindas estrelas cintilando devagar. Não consigo pensar em algo mais bonito do que isso. A beleza do mundo me preenche e tenho que me esforçar para pensar na nossa Missão: trancar a sala das Sombras. Selá-la fortemente para que ninguém possa entrar ali. Nosso mestre diz que um poder terrível se esconde na sala das Sombras, e que é nosso dever impedir que outros tenham acesso a ele. Aos poucos, a figura do templo de Campostela vai se fundindo com o céu noturno e desaparece, apenas perceptível pelo vazio de estrelas deixado no meio do firmamento."
"Tamanho é o tumulto dentro de mim que poder-se-ia descrever os últimos dias deste modo:
Penélope: sou a Escolhida das Sombras, ando de um lado à outro no templo de Campostela, não sei o que fazer, fui escolhida, encontrei um homem lindo, nossos olhares se cruzaram, me apaixonei. Não sei o que fazer. Sou a Escolhida.
Por que isso aconteceu?
(entrei por acaso na fase da culpa? Tenho que culpar alguém?)
Se eu tiver, só posso culpar a mim mesma por ter entrado na Sala das Sombras. (Mas como eu ia saber? Muitos pergrinos vão lá rezar todos os dias. É culpa minha se naquele dia preciso eu entrei sozinha e fui espiar a estátua maior e acabei me encontrando com um deus que me escolheu como sua portadora? E agora?! eu me pergunto. Sem resposta alguma.)
Não vou perder a minha vida antiga assim! Quero primeiro saber. Entender. Não vou ceder antes disso: não farei nada como Escolhida pois ainda não sou!
Certamente não posso falar mal de minha Mãe, que deve estar doente e preocupada. Também não consigo ficar zangada com as freiras do templo, que foram sempre tão gentis comigo. E os peregrinos, com seus sorrisos deslumbrados me causam pena e inveja, mas nunca ódio.
Quero ficar sozinha, apenas eu e minha sombra.
Não esqueço, não consigo! No escuro vazio ao qual eu me retraí não tenho muitos pensamentos; aqui, três fantasmas me perseguem: o Primeiro é a voz do kassim que me escolheu como salvadora do mundo, que fica repetindo e ecoando dentro de minha cabeça meu destino em outra vida; o Segundo é a visão de minha Mãe deitada em sua cama, com meu Pai ao seu lado me acenando um adeus e, mesmo não estando na cena real, eu imagino que ali também está Rosnado, me pedindo um copo de leite ou um carinho; e o Terceiro fantasma são dois. Dois negros olhos tristes.
Lá fora o vento no capim. Lá dentro a frescura do santuário. E Penélope é seguida continuadamente pelos seus fantasmas, não importando o quanto ela escreva em seu caderno. Vão embora e deixem-me pensar! Deixem-me no vazio, e quem sabe este me preencha.
E você? Você quem é? Estranho misterioso que se aproximou de mim ontem, chegando cansado ao templo de Campostela. Lembra de quando você se sentou em um banco e eu fiquei admirando de longe seu porte altivo e o seu ar um tanto melancólico? Aí você olhou pela janela; devia estar pensando nos belos campos-mares de capim ondulante.
E eu vi algo em você que era duro. E muito sério. Aquilo me atraiu, pois queria desfazer o nó que havia na sua alma. Queria poder ter mãos de anjo, para tocar o seu coração, poder sentir o que você sentia. Podemos saber o Outro? Não sei, mas naquele momento a minha vontade era tremenda. E que gosto teria...
Me surpreendo tanto escrevento coisas assim para estranhos! Mas, meu senhor, meu caro misterioso, querido viajante, o quanto você é um estranho? Eu te vi sim. Eu te soube naquele momento, nossos mundos se cruzaram. Foi um esbarrar de almas. Você caminhou devagar na minha direção e me perguntou algo, eu estava distraída, você nem me olhara direito, eu nem olhara para cima, eu não respondi, você perguntou de novo e então, coordenado sem aviso, nos olhamos um pro outro dois universos se chocando foi tão gostoso e você ficou sem fala e eu não sabia o que dizer pois você tinha feito uma pergunta e eu nem ouvi mas não importava porque os seus olhos negros eram lindos e ali eu vi a raiva e a força e o desejo e uma tumba escura e o seu medo. Nossas sombras se tocaram e eu senti... Será que me apaixonei? Mas eu nem conheço você! Ou conheço sim? Eu que tentara tanto através das palavras não imaginava que o rio corresse pelos olhos, o desabar que caiu sobre mim foi profundo.
Mais um problema a me assaltar? Além dos deuses agora o amor me chama? Quem é você? Não sei seu nome, mas vi o seu coração. Não sei de onde veio mas saboreei a sua dor. Quero saber-te mais, estranho.
...Ainda escrevo para ele? Por que escrevo para ele? O estranho nunca vai ler.
Eu não quero mais nada, sr. Olhos Negros, me deixe em paz.
Você e seus companheiros são visitas no templo, por isso me escondo nas sombras tentando te espiar. Quero esquecer a voz que ouvi na Sala das Sombras e pensar agora no meu caminho para longe das confusões, pois sinto meu coração prestes a explodir.
Se você me deixar uma pegada, apenas uma, eu posso saber quanto você mede e como você andava. Mas para ter entendido o seu ar melancólico, seu porte altivo, seu orgulho de guerreiro, eu precisava, agora entendo, ter olhado nos teus olhos. Será que você sentiu o mesmo? Será que você me viu e me soube através daquele olhar apaixonado?
Me dê uma pista, uma pegada, jovem guerreiro. Não conheço o seu passado com palavras, mas senti o peso dos seus sentimentos.
Você viu o meu passado? Viu a minha Mãe e meu Pai e agora minha aflição de Escolhida?
Posso te ver novamente?
Que tolice. Algo que não vai ser lido. Penélope, sua tola... Vai afundar no peso dos seus fantasmas. Queria poder sair daqui, correr ao lado do vento nas colinas-mares de Campostela, mas sem você nada parece ter graça, estranho que conheci de súbito. Viajante de negros olhos tristes, abertos.
3 comentários:
Que lindo!
Até eu me apaixonei....
Não sei nem o que falar..
Eu li!!!! Li sim! li dois posts completos! hwhwhw
belo texto charlie! muito bonito mesmo!
nao esquece de continuar, estou curioso!
Mas Ugo... tinha que começar antes, pra entender da infância do Sark.. Tudo bem, eu adorei que você tenha lido, mesmo. Valeu Ugo! Estou feliz.
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