sábado, maio 05, 2007

Gamma no Fundo

A história da caverna é a seguinte: começa rápido, com uma queda. Alguém cai lá embaixo, no fundo escuro, e se vê presa pela barriga das rochas.
(a caverna é o ventre vazio de onde nascem os monstros)
Ela apalpa, geme, procura um chão que foi perdido. Não sabemos, mas a terra sobre a qual pisamos é falha e cheia de cavidades enganosas. Não sei de onde tiramos a ilusão de firmeza para construirmos céleres tantos edifícios, sobre algo rachado e incerto. Esquecemos as surpresas guardadas ns túneis e caminhos subterrâneos, nas roídas estruturas que seguram o mundo.
Ela sente dor. Nas costas, nas mãos, no rosto. Acabou de cair bem fundo. Seu nome é especial: ela acaba de abrir um segredo. Sem querer libertou todo seu futuro que, se não enfrentado, acabará devorando-a, como o fez toda essa terra. Gamma Aggner, quem diria, acertou o segredo, pronunciou a senha, desencantou o feitiço e fez com que as firmes pedras sob seu pé abrissem passagens. Ela falou e o chão se desfez; o chão, antes tão firme, agora um engano, percorrido por rachaduras vorazes que engoliram ela e seus amigos.
Por isso, solto seu futuro, estamos contando a história que acontece na caverna. Depois do começo rápido, temos o seguimento lento, bem lento.
Dessa vez é difícil despertar. Com todo o escuro, é difícil dizer se Gamma abriu ou fechou os olhos. E o mesmo acontece com o rapaz ao seu lado: ele tem um ferimento muito feio na perna; podemos dizer pelo cheiro forte de sangue que vem de lá.
Ele não acorda agora. Ainda não. Ele - acho que seu nome é Haccu - terá que esperar a Escolha acontecer. Só depois veremos o que fará com sua perna.
Não há vida aqui embaixo. E nem há olhos. Mas para continuar esta história preciso dizer algo aparentemente incongruente: Gamma viu algo quando acordou. Algo, sem dúvida, vivo. Enquanto apoiava a cabeça em suas mãos, raladas de tentar se segurar nas rochas durante a queda, ela viu um Cassim abrir seus braços.
Talvez fossem seus outros sentidos, todos em alerta pelo perigo, que criaram a ilusão de estar vendo na treva; ou foi o Cassim que irradiou um pouco de luz; ou quem sabe Gamma desenvolveu a rara habilidade de não precisar de nada a não ser um pouco de sombra para enxergar, de ver-em-trevas.
As coisas mais misteriosas e inversas ocorrem aqui embaixo.
- Você abriu o caminho?

- Foi você quem abriu o caminho?
(quem está aí?)

- Se você conseguiu chegar até aqui, se foi a sua voz que cortou estradas por entre as rochas e se foi sua a habilidade de atingir o coração das cavernas, então deixe que eu me apresento: sou um Cassim. Um deles, o que mora em dois lugares: nas cavernas debaixo do chão e no pântano vasto que segura as pessoas.
É por isso que nossa história tem duas partes. Nós estamos na primeira delas.
(Eu me lembro que ouvi falar disso. Eles, meus amigos, falaram em Cassins, em serem escolhidos. O que vai acontecer?)

Um comentário:

Pioux's disse...

uhhhhhhhh
misterioooo

Acho que o chão é a coisa mais sólida que o homem pode se firmar e é nisso que estabelece sua confiança. Se fosse de seus valores morais cujas rachaduras são muito maiores e mais imprevisíveis que a da terra, o homem não teria apoios.
E qual não é o homem que depende de bengalas?