Aos poucos as figuras escuras iam saindo dos cantos e de trás das paredes. De todas as ruas, das casas aos pedaços, do fundo de algum prédio abandonado vinham pessoas e pessoas.
Um ladrão, uma velha quase cega, um rapaz mal-encarado, uma criança cantando. Todos andavam ao seu lado.
Falkwer se viu no meio de uma procissão. Estudantes concentrados, sérios ou brincalhões; advogados que não podiam pagar o aluguel; velhos que só se lembravam do passado e tinham receio do presente. Todos eles seguiam o escolhido pela rua, todos eles tinham uma canção presa no peito, todos queriam saber: e aí, o que vai acontecer?
Uma garota que queria ter cães, uma cigana charlatã, Haccu, um bandido assassino, um vendedor, Fren, um homem que achava que o mundo era ruim e sem solução. Andavam pelas ruas, seguiam o homem de roupas arrumadas, iam ver onde dava.
Têmis ria e ria, seguindo, guiando.
- Por aqui, pedia e Falkwer se via seguindo o labirinto de ruas adiante, adiante! Cada vez uma multidão maior os seguia. Prisioneiros e soldados, ex-funcionários da repartição pública, atuais condenados, Karyn, bruxas, cantores pobres, moleques, senhores, vendedores de frutas de animais e de remédios, leitores, escrivãos, Myshba, Teobolt, Mizudinie, Heitor M. e Carlos T.
- É por aqui!
- Lord Beckett, the prisioners started to sing!
- ... Finally...
Vamos por palavras, pediam os pesquisadores. Coloquemos elas assim, sem ordem mesmo.
Falkwer primeiro resolveu libertar os condenados. Depois todos os outros resolveram salvar os prisioneiros e instalou-se a confusão. Foi posível porque esqueceram-se de si mesmos e puderam pensar além de fantasmas e poderes, além de superstição e egoísmo. Vamos juntos conversar, racionalmente. Por favor?
Sim, é isso o que queremos. O líder do sindicato ficou realmente bravo porque pensou ser uma armadilha das elites dominantes. O prefeito não compareceu por medo. Apenas Falkwer e a velha bruxa se sentaram juntos, ao lado de um garoto que falava calmamente e com enorme desenvoltura para alguém de sua idade. Ao que parecia ele estudava ciência política. Hum, este estava em seu ambiente.
Mizudinie parou as execuções porque pensou que eram cruéis demais. A cidade inteira resolveu se reformar. Neyleen aderiu às causas ambientalistas e pediu que parassem de desmatar as selvas. O conselho de industriais negou qualquer possibilidade de que isso acontecesse pois não podiam parar as máquinas e acabar com o produto assim. Os cientistas garantiram que era possível produzir sem desmatar, ou causando um dano menor. E Mellock teve quase certeza de que era possível produzir menos ou mudar. Os propagandistas resolveram apoiar a causa das árvores e iam encomendar cartazes mas Neyleen discartou qualquer ajuda e, quando precisou dos cartazes, pediu para os garotos nas esoclas que pintasem para ela, no que foi atendida com muita boa vontade. Os diretores quiseram cobrar os alunos para que estes fossem às aulas ao invés de pintarem cartazes, mas Mellock também garantiu que a escola não ensinava nada que valesse a pena tanto assim. Alguns professores secretamente concordaram.
João tirou, de noite, sem que ninguém reparasse, todo o dinheiro do cofre central. Gamma acordou neste dia sorrindo sem parar, mas nenhuma ligação sua com o caso foi confirmada.
Parecia que, de repente, ninguém mais precisava do Estado. Os médicos saíram dos hospitais e os vendedores das lojas. Ninguém foi trabalhar naquele dia, apenas, quem sabe andar e conversar. Os maquinistas dos trens e metrôs trabalharam de solidariedade, para levarem as pessoas como sempre faziam. Uma associação de donas-de-casa se reuiniu para levar cachecóis e bolos cozidos em casa para estes gentis trabalhadores. As indústrias amanheceram paradas e frias, nenhuma máquina funcionava e nenhuma falta foi sentida. Alguns cidadãos visitaram o lixão e perceberam o tamanho do lixo usado.
João reuiniu armas. Mas não explicou para ninguém o que pretendia. Falou em tomar o poder para o povo e em revolução dos pobres.
No fundo sabiam que não daria certo, mas, como todos bons marginais, sabiam também que sua espécie iria sobreviver para sempre. Pois não há sociedade sem piratas, ciganos e escolhidos.
Por mais que o general e o político quisessem enforcar, sempre haviam mais deles. Saidos sei lá de que buraco escuro. Foi o que toda civilização aprendeu antes de cair.
Um tiro certeiro. Um pá do revólver bem na cara do maldito bisbo e tudo terminado. Os tiros de resposta ressoaram cruéis e perfuraram Falkwer em vários lugares. Parte máquina, parte homem, sofreu e sentiu dor mesmo assim.
O vitral onde estava se quebrou e explodiu em milhões de pedaçinhos!
Falkwer Lorn caiu no meio da missa. Eram pedaços de vidro brilhante que voavam pela catedral? Ou eram partes dele mesmo que voavam pelo ar? Ele via seu reflexo e seu rosto atordoado e perdido em cada um dos fragmentos.
Agora o mundo caiu e quebrou-se!
Acabou!
Como o tiraram de lá ele não se lembra. Só o escuro depois
Por que morremos mesmo?
Ah sim, porque um dia vivemos.
Ai do sol que nunca subiu ao céu! Ai daqueles que nunca saíram para libertar a canção secreta dos oprimidos. Vamos cantar, vamos cantar porque o mundo está errado.
Sob os nossos pés.
terça-feira, maio 29, 2007
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4 comentários:
ahnnnn
q lindo...
se ao men os fossemos todos mais Falkwer!
ahnnnn
q lindo...
se ao men os fossemos todos mais Falkwer!
Sim...
Charles, acho que gostei deste texto mais do que de qualquer outro que já tenha lido neste blog. Mas não posso ter certeza. Há sempre aquele sentimento de que tudo o que não é extremamente recente já foi esquecido para fins comparativos. Nesse caso, este é o texte extremamente recente que mais gosto no seu blog. E acho que posso até mesmo dizer porquê. E certamente isso faz com que eu goste ainda mais dele.
Acho que precisamos do Estado mais do que nunca, agora que ele não pode mais nos proteger. Mas precisamos, acima de tudo, de coragem, de força, de conciência e de empatia. Acho também que, justamente porque precisamos do Estado, e porque ele não pode nos ajudar, devemos lutar sem ele. Não é que sejamos rebeldes: apenas estamos sozinhos. E o mundo clama por uma nova revolução (ou isso, ou será de fato o fim da História)...
Esse trecho do Falkwer caindo na catedral... eu lembro quando vc me deu pra ler, muito tempo atrás. Era mesmo Falkwer? É a primeira vez que leio essa parte dentro de um contexto, é diferente! Não sabia que quem morria era um bispo, por exemplo. Mas admito que gostei mais da queda na outra versão. Vc ainda a tem? Se vc quiser posso te devolver.
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