sábado, junho 16, 2007

Gamma funda uma cidade

Passaram os ciprestes e os juncos na beira de um lago. Temeram pelas enganações aquáticas e evitaram o mato abundante dos baixios. Subiram as colinas, onde o chão era sempre seco e menos lamacento que os vales, e continuaram a andar.
A massa verde-escura da floresta se aproximava devagar. Para alguns dos antigos habitantes das cavernas ela era ameaçadora (mas bem menos, admitiam, que o tal céu, coisa terrível!); para outros estava recebendo-os de braços abertos; Hoshy via nela a possibilidade de mistérios e Foxy enxergava o sorriso sedutor de um predador voraz.
Gamma tentava não sentir medo diante dela, e tratava tudo como se fosse uma floresta normal e um mundo normal. Não buscava estranhar os ruídos que saíam dos arbustos ou as sombras que voavam no ar escuro da noite.
"Morcegos" respondeu quando os outros se assustaram. Talvez fossem mesmo, mas talvez... um dar de ombros resolvia tudo.
Acamparam sem saber o que havia ao redor, com um medo profundo que vinha do começo dos tempos, de quando os homens nem eram homens e os monstros viviam sobre a terra.
Montaram vigias e mantiveram as crianças e mulheres a salvo, no centro de uma roda. O acampamento improvisado dos refugiados mal tinha sido montado quando os problemas foram imediatamente encontrados. Faltava água, comida, camas. Por um instante o som de vozes suplantou o silêncio assustado da caravana.
Um dos homens que viera das cavernas achou uma machadinha entre um arbusto, onde ia montar sua barraca. Velha e quase podre, jogada ali por acaso, descartada no mato.
"Então há pessoas" concluiu Fren.
"Com armas" adicionou Foxy.
As fogueiras se acenderam como vaga-lumes, uma atrás da outra. Logo um ar familiar e recolhedor se instalou na noite úmida do pântano. Gamma tentava resolver os problemas (que sempre pareciam suplantar seu atendimento) com um certo bom humor cínico; não sabia de onde tirava frases tão esperançosas, sabendo que dentro de si não existia nenhum tipo de contentamento. Os refugiados encontraram alguma comida nas árvores e trilhas entre os arbustos. Por todo o lado conversavam em voz baixa sobre o estranho "mundo de cima".
Choveu e parou. Choveu e parou.
Aí o silêncio. Os sapos roncando mais do que nunca, os insetos se banqueteando, os ruídos crepitando e sussurrando ali ao lado. Mais um silêncio que Gamma julgou delicioso; como um crepitar aconchegante ou um marejo sussurrante que deu repouso para seus problemas.
No dia seguinte, coordenar todas aquelas pessoas se revelou um desafio maior do que o esperado. O comandante Yirigrul tentava apressar o passo, mas com tanto para carregarem ficavam sempre alguns para trás. Gamma gritava a todo instante, incitando a caravana a andar. Não queriam ser pegos pela noite novamente.
Teobolt não entendia como poderia ajudar: cada vez mais o pântano parecia um labirinto confuso, com vários becos, voltas e rios. A geografia do lugar lhe era desconhecida. Mesmo as plantas surgiam como uma novidade: havia um certo esplendor na fauna que ele nunca encontrou em nenhum outro lugar. Confidenciou a Haccu, quando Gamma não estava olhando, que se sentia absolutamente perdido. Aquele pântano não estava em nenhum mapa e em nenhum lugar do mundo: haviam passado uma espécie de limiar que os levou para um mundo completamente novo e desconhecido, um mundo recente e do qual não havia notícia ou história que não fosse o zumbido dos mosquitos ou os ruídos noturnos.
A névoa úmida guardava o pântano e favorecia o crescimento das espécies mais bizarras da natureza. Myshba encontrou um pássaro roxo e Gamma viu heras que se moviam por conta própria. Seguiram o caminho de cabeça baixa.
E então viraram a curva e encontraram a floresta escura e úmida logo ali. Gamma olhou ao redor, para ter certeza de que era onde queriam chegar. Toda a sensação de perigo havia sumido, como se neste ponto do pântano o ar fosse ingênuo demais e puro demais. "Ali." ela disse, apontando para uma colina seca entre o vale e a floresta escura, grande o bastante para comportar um povoado.
Foi para lá que os refugiados caminharam contentes, e quando chegaram soltaram suas mochilas e pás e utensilhos e deitaram-se por sobre a grama olhando o céu, sempre o céu.
Yirigrul concordou que aquele parecia o lugar perfeito para morarem dali em diante e que poderia sim ser ali o local de sua nova cidade. Agora eram habitantes da superfície e deviam aprender a viver sobre a terra.
"Não será difícil" ensinou Teobolt. "Há um lago de um lado e a floresta de outro, com madeira suficiente para abastecer a pequena vila. Vocês aprenderão rapidamente a fazer tudo o que precisarem."
"O pântano há de provir-nos de subsistência, como a caverna o fez antes." confirmou a velha bruxa sem nome "Só pedimos para que a escolhida funde oficialmente a cidade, e que escolha um nome."
Gamma, mais interessada em olhar o que havia na floresta, foi pega de surpresa. Concordou um tanto distraída e pegou a bandeira feita de trapos marrons e fuligem e começou a subir a colina.
Um ar frio envolveu a multidão que a seguia alegre. Depois de tantos anos decidiram que podiam viver em cima da terra, sem temer a vertigem e a profundeza feroz. Gamma descobriu que em cima da colina não havia aquela neblina pestilenta que perambulava pelo pântano; era agradável e limpo; o lugar recendia a um perfume desconhecido, mas revigorante.
Enquanto desfraldava a bandeira, uma cobra saiu de sua toca e atacou Gamma. Rápida e letal; a escolhida conseguiu desviar do bote na última hora. Os primeiros refugiados que chegavam ao topo da colina, ao verem a cena se assustaram. A serpente ainda sibilava feroz quando Teobolt pegou um pedaço de pau e atirou em sua direção. Os antigos habitantes da caverna, ao verem esse novo monstro atordoado, pegaram paus e pedras e mataram a serpente venenosa, em uma explosão de violência coletiva.
Gamma acalmou a todos, pediu que ficassem quietos, que estava bem.
"Era o espírito desta colina!" gritou a velha bruxa "Nós matamos o espírito dessa colina! Agora ele está junto aos deuses".
Hoshy abriu bem os olhos, prestando atenção ao que a bruxa dizia. Ela sentiu que havia algum mecanismo que começara a funcionar.
"Seremos castigados?" perguntou o garoto Païk, ainda assustado com o aparecimento súbito e a morte de uma serpente. "Não sabíamos que era um monstro sagrado!"
"E se a serpente sagrada se zangar conosco?" perguntou o comandante Yirigrul.
"Não se preocupem" sorriu a velha bruxa "Ela não vai maltratar seus herdeiros. Agora somos nós os habitantes deste lugar, e se formos generosos com sua memória, o Senhor da Colina irá nos ajudar com muitos privilégios. Temos que fazer como fazíamos com os antigos deuses na caverna: se oferecermos, todo ano, comdia do mundo de cima para a serpente sagrada, ela irá interceder a nosso favor entre os deuses. Se cuidarmos de sua colina e vivermos com amor em seu topo, sua morte não terá sido em vão, e ela não irá nos castigar."
"Começou." disse Hoshy, extasiada por ver algo em criação.
Os refugiados começaram a cantar uma canção antiga e assistiram a Gamma, de pé no centro de uma roda, tentando prender a bandeira no chão.
"Precisamos de um nome, antes de mais nada" ela disse enquanto desviava a bandeira empurrada pelo vento de seu rosto.
Surgiram alternativas variadas:
"Nova Suddòp!"
"Barcelona!"
"Adriana!"
"Esperança"
e, por fim:
"Lírio",
que foi a opção mais festejada e aceita. Antes, nas cavernas, a única flor que crescia nas profundezas era o lírio. Como lembrança deste tempo e promessa de um novo começo, os refugiados ganharam uma cidade e a chamaram pelo nome de uma flor.
Gamma, com um certo enfado na voz, disse que seria Lírio então. Mas que deveriam plantar mais dessas flores por aqui, ou o nome seria em vão. Com a distração de quem cumpre tarefas burocráticas com um automatismo desinteressado, Gamma plantou a bandeira suja de fuligem e musgo no centro da colina e desejou boa sorte para os refugiados.
"Tenho que fazer outras coisas agora. Espero que já tenha terminado tudo por aqui. Sei que não precisam de mim; tem florestas e lagos e tudo o mais."
Haccu ajudou-a a colocar o mastro fundo o suficiente na terra macia.
"Acho que só o que falta são organizações político-sociais" disse Hoshy "Mas não parece que precisarão de algo além do que trouxeram consigo de lá debaixo. Sei que vão se virar, espero-lhes toda sorte do mundo."
Yirigrul reuniu o clã dos caçadores e deu as mãos a todos os escolhidos, como despedida. Agradeceu a sorte desejada e desejou, por sua vez, uma boa recepção de parte do resto do pântano.
Gamma se despediu com certa tristeza da velha bruxa e prometeu que encontraria um novo tutor, para aprender mais sobre suas habilidades. Muito feliz por ter ajudado os refugiados a encontrarem um lar muito distante, a escolhida acenou para todos e pensou sorridente no povoado.
A garoa bem fina que acompanhou os viajantes na descida da colina parecia confirmar um futuro para a cidade de Lírio. Mas essa já é outra história.

2 comentários:

Ozzer Seimsisk disse...

Tenho um pouco de pena de Gamma. Por ela não estar entusiasmada com a criação de um novo mundo, entende?.

Mas:
"Choveu e parou. Choveu e parou.
Aí o silêncio. Os sapos roncando mais do que nunca, os insetos se banqueteando, os ruídos crepitando e sussurrando ali ao lado. Mais um silêncio que Gamma julgou delicioso; como um crepitar aconchegante ou um marejo sussurrante que deu repouso para seus problemas."

Adoro a Gamma. E ela se parece comigo às vezes.

Anônimo disse...

=)
esse povo da caverna!
Adriana lá é nome de cidade =p?