quinta-feira, julho 19, 2007

Pás e mós

A névoa não a deixava ver a casa escura. O som do moinho funcionando era ininterrupto e ocupava toda a noite.
E, claro, aquele som de vento escuro.
Testrel andou bem devagarzinho, com medo de acordar os espíritos assustadores que saíam de noite. Ela sabia de cor todos os demônios: gigantes, lobos, fantasmas, duendes, kremlins, vampiros, mortos-vivos, bruxas, trolls. Tinha medo de todos eles.
A mó girando dentro do moinho quase parecia cantar uma canção assustadora, que fazia Testrel se agarrar mais ainda ao seu casaco pensando no que poderia atacá-la a qualquer momento.
- Por que saí de casa?, se questionou. Não tenho que ajudá-lo, posso muito bem voltar para minha cama e dormir quente e segura.
Mas de novo ela se lembrava do sonho.
Era muito, muito escuro enquanto ela sonhava, o que talvez fosse um reflexo do lugar cinzento e assustador em que ela morava. A charneca de Saltzen não era colorida, e muito menos agradável: todos os seus moradores conheciam a sobriedade da paisagem e atribuíam seu silência a ela. Eles, inclusive Testrel, quase não falavam nada durante o dia. Cozinhavam, plantavam, colhiam e coziam e total silêncio.
Só o moinho girando, girando e o vento escuro que varria as encostas de Saltzen.
Ocasionalmente em sua caminhada noturna, a jovem Testrel escutava um rangido de madeira vindo das casas da vila. Poderia ser alguém se movendo? Um espírito maldoso espreitando? A medida que ela se afastava de sua casa o som da respiração de seus pais dormindo ia desaparecendo e o som de uma certa casa rangendo ia tomando conta de seus ouvidos.
Pssou o caminho central, margeado por todas as casas da vila. Passou as árvores sem folhas, de onde se dizia que os corvos sonoros vigiavam as pessoas. Passou o moinho em seu rangido constante. E, por fim, passou o portão velho e quase oculto pela névoa que a levava direto para a casa escura. Logo o feiticeiro empoeirada estaria audível, em seu gemido doloroso e febril.
Testrel subiu os degraus escondidos pela sombra e empurrou a porta pesada. Apesar de se esforçar bastante, não conseguiu conter um altíssimo rangido das dobradiças.
Imediatamente escutou a voz do bruxo recitando seus elementos magicos.
- Mercúrio e Platina. Ouro e prata. Terra, fogo, água e ar. Os antigos sabiam, o conhecimento foi banido e o triângulo perfeito perdido. Mas sim, eles sabiam.
- Bruxo?, perguntou bem baixinho Testrel antes de entrar no aposento que funcionava como quarto da casa escura. Sou eu, Testrel. Posso entrar?
- Quem está aí? É a garota? Santo Deus dos bruxos, magos e alquimistas, como você demorou!
- Não estava conseguindo encontrar, respondeu baixinho, com vergonha do olhar zangado vindo do velho. A roupa dele estava mais suja do que nunca, cehia de poeira e marcas de tinta; Testrel nunca soube como ele se sujava tanto naquela casa abandonada, parecia que quando ela virava as costas ele se jogava no chão e rolava no tapete puído.
- Me dê, me dê, pediu o bruxo, de olhar ávido, estendendo suas mãos com unhas compridíssimas para a garota.
Testrel tirou do bolso uma pedrinha pequena e colocou-a nas palmas impacientes do velho.
- Tem certeza de que é está? ele perguntou. Procurou direitinho, como eu pedi?
- Sim, eu fiz o que você me pediu, palavra por palavra. Essa foi a que eu achei mais interessante.
- Seguiu direitinho minhas instruções?
- No começo achava que... disse Testrel intimidada pela curiosidade séria do bruxo. Achava que seria impossível, que era bobagem. Mas quando encontrei essa pedrinha eu entendi o que você quis dizer. Eu usei a intuição.
- Acha que era bobagem? zangou-se o velho. Pois saiba que este confiabilíssimo método foi estudado vezes e vezes na Academia Arcadiana e eu mesmo li os perdidos pergaminhos que relatavam o experimento Alântico quando eu era jovem. Me lembro de cada palavra e foi fielmente que reproduzi as instruções para você. Agora me diga, quero ter certeza: essa foi a pedra que você escolheu, que a sua intuição indicou com toda a força. Pois me diga se você tem certeza.
- Tenho sim senhor. Acho que é essa a pedra.
- Acho?! Pois não pode achar! O que foi que eu falei?! Tenha certeza, cer-te-za! É essa a pedra?
Testrel permaneceu parada, sem saber o que responder.
- Arriscaria a sua vida por essa pedra? perguntou novamente o bruxo.
O som do moinho moendo durou todo o tempo que Testrel levou pensando.
- Sim, ela disse por fim, Eu acredito que essa é a pedra certa e acredito que não me enganei.
O bruxo olhou-a desconfiado e guardou a pedra na palma da mão.
- Agora o feitiço está completo, ele sorriu, mostrando dentes terríveis.
Testrel esperou enquanto o velho falava sozinho e se levantava da cama quente. Esperou enquanto ele saía de cabeça baixa, com muito medo de que tivesse esquecido da promessa.
No meio dos resmungos o bruxo virou-se para ela e disse:
- Ah sim, nosso acordo.
- Eu gostaria que você trouxesse o Keter de volta, pediu Testrel.
O bruxo torceu a cara.
- Então está certo. Vamos até o velho moinho se é isso que você quer - E, com surpreendente agilidade para seu corpo velho e fraco, ele saiu pela porta e entrou na noite fria, balançando sua roupa agitado.
Testrel seguiu-o com um pouco de medo. Entraram no moinho rangente e passaram pelo moleiro, um velho que os encarou por pouco tempo e continuou em silêncio, como se nada tivesse acontecido.
O bruxo parou diante da mó e jogou pó de feitiço pelo chão. Disse as palavras mágicas que começavam todos os feitiços, em um língua desconhecida e melodiosa. Testrel teve muito medo quando ouviu seu nome entre as palavras, além do nome de Keter, se amigo.
A mó começou a emitir um rangido diferente, agudo e medonho.
Testrel começou a rezar, como sua mãe havia ensinado para afastar os fantasmas e maus espíritos. Talvez não tivesse sido uma boa idéia.
O bruxo esfregou a pedrinha nas mangas e nos equipamentos. O velho moleiro parecia ter desaparecido de lá, para não presenciar o sortilégio escuro.
Então, o moinho inteiro se encheu de uma fumaça colorida e de cheiro forte de ervas. O velho bruxo parou seu feitiço e agarrou a pedrinha em suas mãos, enquanto seu rosto empalidecia até ficar mais branco que cera de vela.
Diante de Testrel, a fumaça se transformou em uma linda e altiva mulher. Apontando seus dedos compridos para o bruxo ela proclamou em uma voz que demandava obediência:
- O que pensa que está fazendo velho paspalho?
O bruxo caiu de quatro no chão, desfiando desculpas. Testrel observou a Feiticeira com assombro e um misto agudo de admiração e medo.
- Não se preocupe querida - a mulher disse para ela - Esse tonto não irá fazer mais nada de ruim. Agora, porque você não me mostra onde arranjou esta pedrinha tão bonita?
Sua voz era tão agradável e tão deliciosa que Testrel não conseguiu conter um sorriso e segurou a mão da Feiticeira. As duas saíram para a noite escura, diante do olhar aterrorizado do bruxo. Era o olhar daqueles que se sentem injustiçados, mas que sabem-se fracos demais para reclamar para si.
O moinho estava silêncioso. Tão silencioso quanto o resto da vila, envolta na fria névoa do fim de março.

3 comentários:

Charles Bosworth disse...

Boas férias pessoal!

Here and back there again.

Ozzer Seimsisk disse...

e o que aconteceu com Keter? que menina mais boba, abandonando a coisa no meio, pra seguir uma feiticeira que surgiu do nada sem dar explicação nenhuma. quero mais õ.õ.

Pioux's disse...

oh my gosh!
o q o bruxo estava fazendo? ele é realmente mal?
eu gostei dele!
Pra mim a feiticeira que é má.... e muito poderosa
q medo O.o