terça-feira, agosto 14, 2007

Rumo à Esperança


Na longa terra de Imil, as árvores conversam. Falam com vozes coloridas e cheias de fs e vs do vento. Lá todos entendem suas vozes e as mulheres carregam potes redondos e rubicundos de um lado a outro, de poço em poço e às vezes param pelas fontes para conversar e ajustar seus sáris coloridos. As trilhas de pedrinhas brancas são todos os dias percorridas por estas mulheres, que param em suas árvores conhecidas para conversar e deitar-lhes um pouco da água do pote, como uma oferenda.
Os habitantes de Imil temem somente os povos do leste, chamados de bárbaros Alacoas. Eles esperam que a grande cerca verde os protega do povo das estepes, que a floresta permaneça intacta e dure enquanto durarem os assaltos bárbaros.
Mas não se deve condenar tão rapidamente assim os Alacoas. Podem comer carne crua em campanhas e ter uma preledição por destroçar outros humanos, de preferência em cerimônias públicas e festivas; mas também devem ser lembrados como aqueles que fundaram a primeira biblioteca nômade, partindo de um antigo espólio de guerra. Foi na época em que o rei Nicomedes, da Bitínia, cosntruíra sua Bibliothéka Fantasticae, dias antes de Atal Huapa, líder dos bárbaros das estepes, chegasse de surpresa à capital e saqueasse todos os livros que pudera carregar. Desde então, os alacoas vêm carregando o volumoso espólio, sem que fosse feito (deve-se ser grato aos bárbaros neste ponto) nenhum uso indevido dos livros, como queimar as folhas em suas fogueiras cruéis ou costurar roupas com o couro de suas capas.
Rei Nicomedes caiu junto a sua Bibliothéka. Os bárbaros tomaram a Bitínia, vendendo seus habitantes como escravos para a poderosa esquadra de Jânio, a cidade dona do mar. Os escravos desfilaram pela Avenida das Pontes, cruzando Jânio do porto ao palácio da república, sob o olhar circunspecto dos senadores e o grito alegre da população que se aglomerava entre os canais e pontes da cidade para verem passar os estrangeiros.
Todos em Jânio estavam na Avenida das Pontes naquele dia: desde os filhos dos príncipes olhando invejosos das janelas até os humildes carpinteiros navais misturados à balbúrdia coletiva. Diz-se que Jânio já estava entrando em sua decadência, que quanto mais maravilhosa e alegre fosse sua festa de conquista, mais armas e pólvora se precisava depositar nos porões dos navios de guerra, mais sujeira se alastrava pelas ruas e mais infelicidade nos outros dias do ano.
A decadência de Jânio parecia maravilhosa, com todos seus habitantes e estrangeiros de reinos subordinados espalhados na comemoração que percorreu o Mar do Meio como uma onda de júbilo, um último suspiro contente de uma nação velhaca e pobre.
Só os sábios não foram, trancados em sua Torre Pétrea, na ilhota Isabel, próxima ao canal maior de Jânio. Ficaram discutindo as lendas e a geografia do mundo e chegaram à conclusão de que Adama existia enquanto Cibele não, dado que seus narradores eram confiáveis ou mentirosos. Abluma, o passageiro, narrador da cidade de Adama, era considerado confiável porque as mentiras que contava em seu relato eram de natureza econômica e mercantil, portanto não havia razão para que inventase uma cidade e um lago onde fora negociar quando garoto.
De fato, Adama existia às beiras de um lago azul resplandescente, próxima à montanhas que pareciam púrpuras ao pôr do sol. Diziam os pacíficos habitantes que eram nessas montanhas que moravam os dragões e as fênixes das lendas. Todo ano, durante a primavera, quando a cor púrpura se transformava em um rosado florido, as crianças de Adama tinham permissão para passear pelas trilhas e sendas da montanha. Era na primavera que os dragões dormiam, e as crianças voltavam para casa à salvo e contentes. Traziam consigo as raras e preciosas frutas-esmeralda, que só poderiam ser colhidas pelo coração puro de uma criança. Os pais enviavam seus filhos todos os anos às montanhas, na primavera, quando ficariam a salvo das criaturas mitológicas, e no final da tarde recolhiam com avidez as frutas-esmeralda, que iam parar direto nas cargas dos mercadores de Adama. As crianças tombavam exaustas depois de um dia de diversões na montanha, cheio de competições e brincadeiras, em um território no qual os adultos não podiam entrar; por sobre a obrigação imposta pelos pais gananciosos, as crianças criavam um mundo só delas, com leis e regras de brincadeiras e liberdade, um reino que cheirava a flores e lavanda, e que percorria as sendas das montanhas e suas plantas secretas.
As flores-esmeralda eram levadas pelos mercadores internacionais sobre o lombo de bois e mulas até a Estrada do Passadeiro, que se dirigia em uma linha reta até Esperança, a cidade para onde vão, sem saber, todos os caminhos.
Esperança é uma cidade linda, com grandes portões esverdeados e sinos repicando nas catedrais. Todo domingo, o burgomestre se veste inteiramente de verde e recolhe os viajantes que foram dar na cidade. Oferece um banquete em homenagem aos jovens perdidos e conta as mais variadas histórias e casos, rindo debaixo de seu bigode castanho e apontando para todos seus dedos roliços e contentes.
Lindas moças moram em Esperança, com tranças cuidadosamente feitas e vestidos claros. Recebem os viajantes em silêncio solene e contido: muitas não falam por promessas, geralmente amorosas e juvenis; e mudas permancem até a saída do viajante, pois este deve sempre abandonar Esperança.
Uma hora ou outra (mas sempre na terça-feira) chega uma carta - como são eficientes os carteiros dessa cidade! - e avisa, sem devaneios, que a Hora chegou. O viajante, que neste momento não pensa em mais nada senão na sua cidade querida e nas jovens caladas, percebe que a estrada está logo ali e que não é mais bem vindo.
O burgomestre se despede, desta vez vestido de azul, e promete que tempos bons virão para aquele que, ao menos uma vez na vida, esteve em Esperança, a cidade que fica no fim de toda estrada.

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