domingo, novembro 04, 2007

O Caminho das Águas


- Descemos aquele trecho durante a noite, sempre com medo de que, das casas, pudesse sair alguém e nos encontrar no escuro. Movíamos os remos com infinita cautela.
- Havíamos decidido assim no início do caminho.
"Temos que descer o Rio escondidos" explicou Fren. "Vocês também viram os cartazes em Schilleri, nossos rostos estão a descoberto. Qualquer tropa de espiões daqui até o Mar vai procurar um grupo de pessoas com a nossa descrição. Por isso recomendo que viajemos somente à noite e sem barulho; e temos que ficar sempre atentos para qualquer sinal de perigo. É o momento certo para desaparecermos."
"Mas, se estiverem esperando por nós, é exatamente aí que vão nos procurar." disse Haccu.
"Também acho, mas viajar de dia e mostrar nossas caras por aí me parece uma alternativa pior." disse Foxy.
"Então devemos enganá-los." explicou Haccu, depositando o remo sobre o colo. "Vamos viajar em grupos separados, com nomes diferentes, vamos sempre mudar nosso método. Às vezes descer o Rio de dia, às vezes de noite, sempre fazer diferente e sempre sermos diferentes."
- Entreolhamo-nos.
"Acho que ele tem razão, eu faria o que ele sugere. Me parece o melhor modo de fazê-lo." eu disse. "Haccu está sendo extremamente sensato." acrescentei, tentando convencer os que hesitavam.
"Se você diz, será assim" brincou Foxy.
- Fren assentiu. "Mas temos que ter boas idéias o tempo todo. Precisamos abrir os ouvidos e a cabeça para a inspiração. Lembrem-se sempre do risco que corremos."
- No dia seguinte, Neyleen e seu pequeno irmão, Myshba, entravam na cidadezinha, acompanhados de sua tia, uma senhora séria sob seu pesado véu preto. Entraram pela porta oeste da cidade, preocupados com todos ao redor, com Mellock ajeitando a todo momento seus óculos. Pararam à beira do rio para descansar, no mesmo instante em que Haccu, Gamma e Foxy davam a volta pelo lado externo do muro, atravessando o bosque verde.
- Mais à noite, Fren e sua filha doente, Hoshy, entravam pela porta leste. Ela estava mal, com uma doença debilitante, protegida da friagem por um xale verde. E ele tão preocupado! Iam ver o Rei, para tentar curá-la.
- Enquanto isso, eu e Karyn decíamos pelo rio, com uma corda prendendo os três barcos juntos, deslizando na correnteza suave. Quase não fazíamos força.
- Nos encontramos mais além da cidade, em uma curva escura em que brotavam salgueiros. Felizes, pois os espiões, se estes haviam, nada tinham percebido. Mesmo que nos vissem ou que os soldados achassem nossos rostos levemente familiares, nunca se dariam conta de que éramos o grupo que procuravam.
"Os espiões nunca perceberam. Será que podemos enganar as pessoas mais vezes?" sorriu Foxy, enquanto colocava um bigode negro no rosto. "Tivemos sorte. Quero ver quando chegarmos nas cidades maiores" disse Karyn ao seu lado, vestindo uma roupa de camponesa e preparando uma cesta de cogumelos para vender no dia seguinte.
- Mais uma vez desci com os barcos pelo Rio calmo. Uma brisa leve, muito leve, nos deixava confiantes e logo, sem percebermos, tudo se tornou uma brincadeira.
- A medida que avançávamos, nossas histórias ganhavam mais fantasia: Haccu e Neyleen, recém-casados, procuraram por uma casa em um vilarejo quieto. Mellock, uma viúva rica, pagou para um dos barqueiros descer suas canoas até a próxima cidade, onde um rapaz de cabelos luminosos os recebeu. Acho que ninguém percebia as trocas.
- Éramos irmãos, estranhos, amigos, viajantes. Lembro-me de quando, em Duas Rosas, fui visitar o cruzamento dos Rios. Fren e Gamma, sua sobrinha, pararam ao meu lado. Não trocamos uma só palavra. Admirei longamente a água borbulhante, impassível para seus movimentos. Rimos muito aquela noite, lembrando-nos de nossos mistérios e expressões. Aqueles dias foram encantados: soubemos, por alguma magia, não sei, mudar nossas expressões e nosso caminhar, como se realmente houvéssemos nos transformado em outras pessoas.
- A correnteza era forte em Duas Rosas, por isso as canoas foram transportadas por terra, à noite, sobre os nossos braços cansados. Andamos pela floresta no escuro, em completo silêncio, como se fizéssemos parte daquele ambiente calado e tépido.
- Hoshy conseguiu se imiscuir entre um grupo de costureiras, nunca saberei como, e atravessou Rama à pé, passando calmamente por todos os portões. Karyn também, usando um lenço para cobrir o cabelo e um livro para erguer rápido sobre o rosto a qualquer sinal de espiões. Já Foxy e eu, de volta à nossa cidade natal, trememos um pouco. Fomos pelo rio, entre os barqueiros de domingo, com medo de encontrarmos nossos conhecidos ou irmãos. A cada som mais alto nos virávamos assustados e encarávamos desconhecidos que passavam. Nossos corações batiam rápido, tínhamos mêdo de olhar para a cidade que abandonamos. Saímos de Rama com alívio. Foi nosso maior desafio; era uma grande e perigosa cidade, mas nossa boa sorte e o encantamento secreto nos protegeu. Dali até o Mar haveria apenas uma ou duas cidades e o resto era somente Rio.
- Víamos o céu azul, como se pela primeira vez. Neyleen tirou os sapatos e passou a caminhar descalça pela margem, com os pés dentro d'água. Dava a volta em galhos, pulava troncos caídos e sentia o lodo fresco entre os dedos com imenso prazer. Seus sapatos preciosos estavam agora em um canto qualquer dos barcos.
- As estrelas de noite serviam de guias. As frutas maduras de comida. O inverno ameno refrescava os bosques com uma brisa preguiçosa que mal movia as nuvens do céu.
- Éramos felizes.
- Muito contentes em nossas representações. Agíamos como se estivéssemos fora de nossos corpos, dançando sem perceber, mas com infinita alegria. Nos separávamos e reencontrávamos com facilidade. Fomos muito neste caminho, tecendo-nos com fios coloridos e dançando como a espuma troca de uma forma para outra.
- O último vilarejo, um grupo de casas ribeirinhas feitas de pau-a-pique, nos deu um prazer especial. Fren vestiu um manto preto que antes havia servido de proteção para Mellock e foi como um padre, auxiliado por uma noviça jovem de cabelos laranjas. Brincou com todas as crianças, conversou com as moças e desfiou rezas simples e bonitas que havia aprendido na juventude e que pensara ter esquecido.
"Que nunca nos falte comida na mesa, que nunca nos falte um sorriso na boca." Quase chorou ao lembrar-se de quando era criança e sua mãe, ao pé da cama, ensinava-o a rezar.
"Há quanto tempo! Há quanto tempo!" exclamou, ajoelhado na terra com crianças curiosas sob os braços. Refez surpreso os movimentos com as mãos e os meninos o imitaram. Não esquecera como era rezar. Seu coração disparou de amor e carinho enquanto ouvia, ecoando com a sua, a voz de sua mãe.
- Hoshy contava-lhes histórias e praticava truques de mágica com folhas e nozes duras de avelã. Seus olhos brilhavam enquanto suas mãos conduziam um outro tipo de ritual. Eu e Gamma podíamos ouvir do Rio as risadas dos garotos. Remávamos devagar, com um prazer secreto. Só paramos mais à frente, já longe da cidade, para esperar os outros. Foxy estava entre as árvores, deitado na grama macia, vendo o tempo passar.
- Sorríamos sem motivo, imersos na felicidade.
- Quando o Rio espumante mudou de cor, ficando cinza como as plumas de uma andorinha, os outros foram chegando aos poucos.
- Fren tirou a batina com um ar de melancolia. Haccu tirou seus óculos de mentira, guardou-os no bolso e foi sentar-se ao lado de Neyleen para conversar próximo da fogueira. Karyn pôs delicadamente as flores que sobraram de sua cesta no rio e aos poucos elas foram levadas pela água, para longe, para longe.
- Um jovem camponês largou sua enxada encostada na árvore. Tirou o longo chapéu e vimos Myshba sorrindo com seus dentes brilhantes de saliva.
- Logo estávamos descendo o fim do Rio, diante das últimas casas esparsas, esperando que a noite escura nos servisse de cobertura. Tínhamos um pouco de medo, por isso não fazíamos ruído. Vamos devagar, aproveitando o caminhar da água.
- Daqui a pouco estaremos enxergando a Floresta Encantada. Iremos atravessá-la e depois basta cruzarmos a Planície Entrágua - onde não mora ninguém - e chegaremos direto ao Mar." explicou Hoshy. "Sempre quis conhecer a floresta por dentro. Ouvi falarem muito sobre sua estranha característica."
- Baixei o remo e olhei o escuro das árvores mais à frente.
"Estamos quase chegando. Vamos seguir o Rio para dentro da mata."
- A noite nos dava uma sensação de pressa, o Rio dançava mais veloz, engolindo-nos. Depois da fantástica colcha de retalhos que foram os últimos dias, colorida, simples, quase religiosa como aqueles velhos relicários de madeira pintada, entrávamos na escuridão com sons. O grilo, os sapos, os morcegos. O Rio, sob as árvores, cantava uma canção quase nunca escutada antes por ouvidos humanos. Estávamos imóveis, nossa respiração não soava mais. O bosque nos envolveu completamente em seu encanto.

4 comentários:

Ozzer Seimsisk disse...

O Narrador é a Mizudinie?

Falando em mizudinie, encontrei a Mizu ontem. Ela está tão diferente...!

Anônimo disse...

Misú! Que saudades dela!!

Oh! Sim, você está certa, a narradora é a Mizudinie. ^^

Ozzer Seimsisk disse...

Por que você está usando profiles velhos?

Ozzer Seimsisk disse...

Você percebeu que eu fiz um post imitando o seu estilo?