domingo, abril 20, 2008

Como montar uma porta

Mas ela tinha um segredo.
Tomava seu chá e escalava com os olhos as altas estantes de livros pensando nele.
Olhava os cabelos pretos de seu marido recostados no travesseiro pensando nele.
Um dia, enquanto servia aperitivos aos ilustres convidados na varanda, pensou nele. E o segredo se tornou impossível de ser escondido deste dia em diante.
Cresceu e transbordou. Através dos sorrisos, dos olhos, do ar que ela exalava, nada podia contê-lo.
Resolveu afundá-lo no lago que ficava a vinte minutos de carro de onde morava. Mas foi à pé. Demorou quase uma hora e meia e jogou o segredo com todo o seu cansaço dentro do lago e esperou.
Ficou muito tempo olhando para a superfície escura e os desenhos que a água fazia. Por fim, satisfeita, voltou para casa. Ele não a seguiria mais.
Voltou para casa, se arrumou da caminhada e beijou a filha.
Agora estava contente de novo. Livre de um peso horrível, de um fardo assustador.
Na segunda-feira O viu. Ele estava lá, conversando com seus amigos em alguma reunião qualquer. Ela tinha se esquecido que nunca mais podia vê-Lo. Naturalmente, quando voltou para casa encontrou, plantado no armário onde guardava o café, o segredo.
Se assustou, chegou a lhe perguntar como é que escapara do lago. Mas segredos nunca respondem. Ela teve que preparar o café assustada, tinha que suportar este estado de ânimo tão alheio, tão desconcertante.
Era óbvio que o retorno do segredo estava conectado com Ele. Enquanto Ele ainda estivesse lá não seria possível se livrar da terrível companhia e não lhe seria possível conduzir nenhuma vida digna, nenhuma família de respeito.
Tentou de tudo, desesperou-se de todos os modos. Passava noites inteiras acordada, pensando, pensando, olhando os cabelos pretos de seu marido. Só dormia quando os pássaros cantavam, exausta.
Por fim, com algum método perfeito, ou com o desespero, conseguiu. Simplesmente esqueceu-se do segredo, como quem se esquece de respirar ou que se está sobre o chão.
Não chegou nunca a se lembrar do método que empregara, porque fora esquecido também. Abençoada treva!
Podia se encontrar com Ele de novo. Podia conversar e rir em Sua presença com naturalidade ignorante. Estava tranqüila.
Será que ainda escondia alguma inqüietação? Tinha sim um receio: de voltar a lembrar. Sabia que tinha um segredo, mas não qual era. Por isso não sabia quais eram os objetos perigosos, aqueles que a lembrariam dele, ou as conversas proibidas. Entrou em um segundo inferno, com medo da possível e talvez iminente lembrança.
Tentou acalmar-se, e conseguiu se resignar. Se houvesse alguma situação que ativasse a memória esta já teria acontecido; por isso apenas repetiria seus atos, criaria uma rotina, uma conhecida vida que ela já sabia que não a lembraria do que esqueceu. Viveu pouco, viveu baixo, em paz.
Então chegaram os homens de terno e sorrisos desconcertantes. Pediram para sentar e ela lhes ofereceu chá. Sua intuição lhe dizia que aquilo estava intimamente ligado ao seu segredo.
Eles perguntaram-lhe coisas, informações. Queriam ajudá-la.
Perguntaram de seu envolvimento com Ele, de suas ações no verão passado. Ela não entendia e ficava cada vez mais confusa. Porque a perguntavam isso? Os homens de terno se entreolhavam e nunca respondiam.
Perguntavam de novo, mas ela não podia responder. Só intuia que esquecera, não conseguia chegar além do limite que impusera à sua própria memória. Disseram-na que teriam que tomar medidas drásticas, que era importantíssimo que ela falasse Dele - e pior! - que lhes dissesse seu segredo. Ela sabia que era impossível, mas nada os convencia.
Ela se lembra pouco destes dias. De um olhar confuso de seu marido, que não podia acreditar no que via e de uma terrível sensação de que olhava para ela.
Se lembra dos homens de terno a levarem-na para um passeio.
- Aqui dentro você estará protegida. Não há mais com que se preocupar, o que existe de ruim ficou lá fora.
- Mas agora é a vez da senhora nos ajudar. Precisa nos contar qual era o segredo.
Ela sacudia a cabeça, negava, implorava e dizia que não sabia, que havia esquecido. Os sorrisos dos homens de terno se fechavam e tudo voltava a ser vertigem. Escuridão.
Não estava mais em casa. Aqui, também haviam estantes altas.
Preenchia fichas e relatórios, a maior parte sobre si mesma. Ao seu redor, apenas olhos simpáticos. Perigosamente simpáticos.
- A senhora estava envolvida?
- A senhora se lembra de Seu nome?
O nome era importante, assim como Ele era importante. Ela se esforçava e procurava dentro de si até se esgotar por completo, mas a cada dia que passava tudo se tornava mais difícil de ser pensado, de ser compreendido, ainda mais lembrado. Um rodemoinho a envolveu e ela esqueceu quase tudo.
O marido, os chás, os atletas de seu tempo e os heróis que imaginava com a família. O segredo cobriu tudo com sua presença transparente. Ele existia e apesar dela não saber o que era, dominava todos os seus pensamentos.
Preencheu mais pastas e papéis do que podia se lembrar, todos arquivados nas altas estantes. Eventualmente, até os homens de terno pararam de visitá-la. Tudo voltou a ser silêncio.
Um dia a liberaram. A deixaram sair, em sua cadeira de rodas e pijamas, para voltar à casa dos pais.
Era uma tarde fria de sol; as crianças saíam de casa em grossos casacos e gorros para brincar nas folhas amareladas que acabaram de cair das árvores.
Ela estava livre. Mas tinha um segredo.
E somente ele.

5 comentários:

Ozzer Seimsisk disse...

Que legal. Um conto. Uma conto fantástico! Obrigada por ter escrito e publicado isso, Cham.

Anônimo disse...

Jogo: adivinhem a música que me fez escrever este conto.

Utak disse...

hm... não tenho a menor idéia... mas esse conto é Muito legal!!!
(eu li! eu li!)

Ozzer Seimsisk disse...

Não tenho idéia. Mas chuto que seja ecocêsa, porque ultimamente você tem ouvido muita música escocesa. Ou chuto que não, porque nós não conheceríamos se fosse. Não, então, não tenho idéia mesmo. Talvez eu chutasse aquela "Only when I sleep". Mas acho que não porque você não gosta tanto dela quanto eu. E não tem muito a ver. Desisto.

Ozzer Seimsisk disse...

Uma coisa eu posso dizer: a primeira frase remete a Clarice Lispector. Mesmo que talvez vosse não o quisesse.