terça-feira, abril 15, 2008

O verão de Cataventos

Desde a última vez em que estive em Los Dopicos o lugar mudara imensamente. A casa principal estava mais velha, mais escura. Mais estranha. Ou era eu que me tornara um homem de fora enquanto estivera na capital? Os cavalos haviam se ido. Os pássaros eram diferentes. Mesmo os homens que costumavam se reunir nas varandas ao final do dia não estavam mais lá.
Dona Fernanda me recebeu com ternura. No mesmo forno que usava minha avó, ela cozinhou para mim. Tinha uma mão boa para doces, e cozinhava sempre em quantidade, enchendo a mesa de travessas e pratos todos igualmente deliciosos. Não pude recusar nada, agradecido e feliz que estava por ela ter me reconhecido e recebido, e ficava olhando suas costas ocupadas no fogão que eu bem conhecia de antes. Dona Fernanda não poderia ser mais diferente da minha avó. Ela era magra e firme, enqunto que minha avó era grande e forte, podendo me carregar nos braços e obrigar-me a sentar em seus joelhos mesmo depois de já crescido.
Mas as duas sentiam por mim o mesmo amor imenso e abusadamente atencioso, característico daquelas que são mães apenas no sentido simbólico. Dona Fernanda não parou de cozinhar ou de servir-me, mesmo eu dizendo estar satisfeito. Minha avó também costumava encher-me de histórias e sermões, alguns assustadores, enquanto eu tinha que sentar em seus joelhos, só podendo descer depois de terminados os relatos.
Era esse o tipo de amor nunca recebi de minha verdadeira mãe, pelo contrário, ela me embalava em um amor muito mais simples e feliz, menos pressuroso e mais confiável, apesar de um pouco distante, como quando, por exemplo, ela me ensinava a ler o jornal ou a cuidar dos pequenos gatos perdidos que vinham parar na chácara.
Terminado o jantar, fui passear ao ar livre e ver as flores. O canteiro das grandes e exuberantes vermelhas não estava mais lá. O regado principal era agora à direita da casa principal e continha apenas flores pequenas, simples e clarinhas, que quase não chamavam a atenção. Entretanto, o cheiro era o mesmo.
Me deixei levar pelo pensamento, tentando compreender como o cheiro das antigas flores pôde permanecer no mesmo lugar, apesar de todos os anos passados e de sua própria extinção. Isso me fez sentir novamente na Los Dopicos que vira quando era criança, como se a nova Los Dopicos mostrasse apenas para mim sua outra face, a escondida, que havia por baixo de sua face costumeira e que, por certas ranhuras do universo, podia ser percebida. Através do cheiro das flores antigas saindo das novas, ou do fogão no qual Dona Fernanda e minha avó cozinhavam simultaneamente.
Andei mais um pouco, até o arvoredo perto da casa. Entre as clareiras, sentia a mesma lua de minha infância iluminar o chão agora. Estava com sono, mas sabia que não poderia dormir tão cedo.
Examinei a árvore atrás de onde, um dia, se escondera um batalhão. Era noite também, e um réquiem pairava no ar. Os soldados se esgueiravam por entre as plantas, seus pés não faziam nenhum barulho na grama. O comandante, com voz suave, ordenou que avançassem. Sua voz não diferia da noite perfumada ou da luz da lua.
O batalhão não sentia frio. Eu avancei. Eu estava lá, segurando minha arma, caminhando por trás da árvore. Olhei para o comandante que apontava a casa. O som do réquiem continuava tocando.
Andamos com cuidado e apenas naquele dia, por decreto divino, ficaram abolidos os sons que nossos pés poderiam fazer. Era um dia de silêncio.
Chegamos até a porta principal, de armas nas mãos. O comandante disse, com sua voz suave, sua voz de mulher:
- Ali, no piano.
E avançamos dentro da casa. Íamos à origem do réquiem noturno, de mãos dadas, sorrindo satisfeitos. Aquela noite foi uma vitória de nosso batalhão.
Pensei, entre as árvores tristes e escuras, nos dias que passara em Los Dopicos e em minha mãe, quando ela ainda tinha a voz macia e o sorriso calmo.
Ao voltar, Dona Fernanda me esperava na porta.

2 comentários:

muriel disse...

"amor imenso e abusadamente atencioso" - realmente descreve essas mães simbólicas!

sabe, os seus textos sempre remetem a um lugar extremamente familiar, mas a que eu nunca fui.

Ozzer Seimsisk disse...

me deixe morar um pouco nesse lugar. conte-me mais sobre ele.