Era pouco depois do anoitecer quando um homem bateu à nossa porta. Henry estava para dentro, ocupado com seus papeis. Então fui atender.
O homem à porta: é preciso descrevê-lo. Escuro, de porte majestático e indiscutível. Olhos perfeitamente magnéticos que me assustaram. Posso conseguir expressar um medo tão fundo, tão primitivo?
- Você é a esposa?, ele perguntou, pondo a mão sobre a porta, de um modo que me fez sentir que nunca mais poderia fechá-la.
Acenei e ele entrou.
Então na contraluz pude ver sua sombra, tempestuosa e estrangeira, este homem não deveria estar aqui! Poder, me gritou sua sombra, vingança, destino e Deus. Tantas outras palavras, e em línguas destinadas à proibição. Ver sua sombra foi olhar em um rasgo do universo, ver o vertiginoso e repugnante fundo. Este homem era o mestre de meu marido, aquele que estava construíndo a Torre em nosso mundo.
- Onde está Sark?
Epolenep tremeu e eu andei para trás. Henry terminava de descer a escada e viu quem chegara; fez um cumprimento e tocou em meu ombro, então pude ir embora.
Os dois homens se afastaram e foram conversar ao portão. Eu entrei, assustada demais para me concentrar em outra coisa. Epolenep me olhou esfregar a estante com um pano. Ela me disse a calamidade está próxima.
- Não sejamos pessimistas.
As vozes dos dois chegavam distantes demais. Conversavam no escuro, não pude ler suas sombras.
Henry voltou depois de um tempo. Pude ouvir o movimento de sua roupa quando fez uma reverência e seus passos na escada. Convêm-me descrevê-lo neste momento também:
Estava assustado. E suas unhas curtas pareciam ainda mais brancas. Uma mecha de seu cabelo preto caía sobre o olho esquerdo. Sua boca, um pouco aberta, revelava os dentes cerrados e rijos. Ele se apoiou sobre a bancada como se desabasse, respirou algumas vezes bem silencioso e disse:
- Arrume as malas e avise nossa vizinha porque estamos indo embora.
Não havia entendido a razão, mas cumpri a ordem. Nos separamos e eu comecei a me preparar para a coisa terrível que ele havia me pedido em voz tão calma.
Hoje tenho um pouco de dificuladade em me lembrar de nossa casa em Estafansa. Eu não sabia, quando ouvi Henry dizer aquilo, por quanto tempo ficaríamos fora, por isso não sabia que tipo de olhar merecia minha casa.
Agora tenho saudades. Estávamos casados enfim, morando juntos em Estafansa, um certo tempo depois das atribulações sofridas no templo de Compostela que, apesar de angustiantes na época, só consigo me lembrar com carinho.
Apesar de não ter entendido a razão secreta das palavras de Henry, sabia que aquilo se resumia a uma coisa: fosse o que fosse era uma fuga. Estávamos aproveitando os últimos minutos dados para escapar.
Abri o armário. Ali, vendo minhas roupas e meus objetos tão pessoais, me desesperei. Poucos conhecem o terror de guardar os seus pertences para fugir. Coloquei tudo de modo apressado e desorganizado dentro da mala. E se me arrependesse? E se estivesse escolhendo errado? Rapidamente consegui trazer também este caderno. Eu levaria poucas coisas. Por quanto tempo ficaríamos fora? Onde iríamos?
O que estava acontecendo?
Senti que seria impossível perguntar, mas também seria impossível continuar arrumando minhas coisas sem saber.
Era muito escuro, asism eu sentia, pensar no que teriam discutido à porta. Sentia também que não podia ainda discernir uma razão.
Olhei ao redor, para a casa. Quem cuidaria dela enquanto estivéssemos fora? O que aconteceria com tudo o que iríamos deixar para trás? Quem alimentaria o peixe?
Henry estava em silência e trazia suas coisas. Nada mais foi dito.
Avisei minha vizinha, aturdida pela falta de informações que dispunha. Por sorte ela entendeu, como eu havia entendido, que era inútil fazer perguntas e que o melhor era agir.
Saímos eu e ele e a noite era escura. Paramos em um restaurante no caminho onde fingimos que estava tudo bem. Depois de um tempo de luzes ofuscantes e sorrisos colocados entre uma multidão desconhecida, voltamos à estrada escura.
Era tarde da noite e já havíamos saído da cidade. Não dormi. Olhava a escuridão passar mas não dormia. Como poderia? Diante de nós se abria um limiar, um umbral terrível e ameaçador; dormir apenas nos faria deslizar para o outro lado.
Tenho essa impressão. É durante o sono que mudamos. É enquanto dormimos que as nossas idéias mudam de lugar e logo abandonamos aquilo em que mais acreditávamos; as coisas terminam devagar, com a passagem do tempo: e essa passagem do tempo se dá onde menos nos damos conta. Se ficássemos acordados sempre, perceberíamos os limites e nunca mudaríamos de opinião.
Durante toda a noite viajamos. Vi a estrela do norte subir e descer até que, exaustos, chegamos
Era uma pequena cidadezinha, próxima a um lago onde, mais tarde eu saberia, dormiam patos listrados, em conjunto e felizes, sem saber que atravessávamos limites e rompíamos fins.
Logo estaria amanhecendo. E a noite, terminada.
Henry havia me dito no caminho. Seu mestre aparecera à nossa porta esta noite porque tinha uma missão a lhe oferecer. Ele deveria encontrar e matar um homem. Henry havia ficado abalado, ele não se sentia capaz de matar. Mas o homem da Torre lhe dissera que era preciso, que só assim o seu projeto triunfaria e, como os dois acreditavam no projeto, sabiam que seria preciso realizar muitas ações impensadas, entre elas terminar uma vida.
Eu nada disse. Apoiava secretamente sua decisão de não matar.
- É algo que eu preciso fazer, ele me disse.
- E você acha que não conseguirá? eu perguntei.
- Você não vê? Quem eu preciso matar é você.
Olhei-o confusa.
- Ele me ordenou que encontrasse o Escolhido, que havia um no mundo agora. E que seria uma pessoa a nos atrapalhar porque faria de tudo para destruir os planos, acreditando estar destinada. Eu conseguiria. Eu teria conseguido matar uma pessoa...
Então ele me disse:
- Mas é você!
Nos olhávamos. Só havia o escuro que tomava formas diferentes: seus olhos assustados, nossas mãos frias, roupas e cabelo.
- Então o que faremos?
- Agora você deve ficar escondida. Eu te trouxe para uma cidade nos arredores de Estafansa. Ninguém pensará em procurar o Escolhido aqui, então acredito que você ficará segura por enquanto. Então, eu farei o que devo fazer. Vou ser obrigado a levar adiante minha missão de busca. E ao fazê-lo, eu irei despistá-los.
- Como?
- Se eu estiver no comando, isso será fácil. Mas nada disso importa. O que eu te peço é que fique quieta e more aqui por uns tempos. Eu sei que vai ser difícil de suportar essa mudança, mas vamos ter que continuar acreditando que vamos nos reencontrar. E não fale a ninguém sobre as sombras. É disso que estão atrás.
- Eu farei.
- Eu vou me esforçar o máximo para te manter à salvo. Por favor, espere por mim.
Um último toque, um último olhar. Este era um limite que eu me recusava a ultrapassar. Ele estava triste porque perdera a capacidade de acreditar no que mais confiava. Seus projetos, no fim, haviam decidido como alvo a mulher que amava. Naquele momento eu vi escrito em sua sombra toda a sua dor e vacilação diante da dúvida imensa que o dominava. Eu vi as palavras onde está certo? e porque somos? Pensei ver também o medo de morar ali, longe dele, e percebi que olhava na verdade parte de minha própria sombra, misturada à de tudo o mais no escuro.
Nos separamos. E foi como se houvesse sido para sempre.
Ele sumiu no fim da história, para dentro de sua própria vida.
A noite estava escura e eu não pensei em dar mais nenhum passo. Estava gelado ficar de pé na estrada mas nada podia ser feito. Eu estava petrificada, imobilizada.
Epolenep me mostrava uma confusão de palavras, que era a confusão que eu sentia. Medo, medo, escuro, amanhã.
Tive muito medo do amanhecer e do que ele traria. Não poderia suportar a passagem do tempo.
É preciso ficar em silêncio e não despertar atenção. Vou viver...
Fechada.
...nesta cidade por um certo tempo, preciso me acostumar.
Eu era Escolhida esse tempo todo. Me lembro muito bem de ter me encontrado com um deus que me disse isso. Minha habilidade de falar com sombras não era a prova? E agora seria perseguida por isso? Sempre ouvi dizer que os Escolhidos fariam coisas incríveis, e que poderiam mudar toda a estrutura do mundo. Achava que era tolice. Com todos os problemas pelos quais o Império passava ultimamente, eu acreditava que essas histórias milacurosas eram normais, já que traziam esperança para os que haviam perdido a sua.
E eu, o que fiz como Escolhida? Sim, admito que pensei em fazer coisas grandes e bonitas como as histórias(certamente agora tenho inimigos grandes a me desafiarem). Mas agora sentia ainda mais forte e viva esta vontade: Eu estava pronta para cumprir um destino que eu preferi ignorar por boa parte de minha vida.
Porque o que fiz neste tempo foi apenas me casar. E viver feliz em Estafansa, sem compreender muito de mim mesma. Poderia agora tentar procurar por algo que fosse realmente meu, escondido em alguma estrada do mundo? Sim, eu poderia começar tentando entender qual era a verdadeira extensão de minha habilidade. Eu gostaria de ajudar as pessoas, nem que fosse devolvendo-lhes um pouco de esperança...
Mas não podia. Agora precisava me esconder, ficar em silêncio e não chamar a atenção. Ou isso arruinaria o plano de Henry para me manter à salvo. Preciso me acostumar a viver nesta pequena cidade próxima a um lago e me acostumar a não ser mais quem eu deveria ser e estivera evitando estes anos todos.
De repente, não haviam mais caminhos.
quinta-feira, outubro 09, 2008
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Um comentário:
Ahhhh q tristeee....
sempre existem caminhos Penélope!
Só que as vezes é preciso se livrar das rodas que prendem agente nos trilhos atuais e passar a usar asas!
Eu adoro essa história chan...
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