sábado, novembro 08, 2008

Mbumbusa (warrior's cry)

Eles caminhavam escondidos pela sombra larga da árvore napal. O homem estica o dedo e o garoto rapidamente entende o que ele quer dizer. Ali dorme uma família de leopardos, por sobre os galhos da árvore. Vamos dar a volta.
Eles caminham sobre as folhas secas em perfeito silêncio, pois fazem três dias que estão juntos fora de casa, dormindo onde podem, comendo o que encontram, e caçando. Também fazem três dias que se conhecem.
- E se ele sair da floresta?, pergunta o garoto enquanto se arrumam para dormir sob os galhos de uma outra árvore napal. Não vamos conseguir seguir os rastros para dentro do deserto.
O homem deu de ombros e fechou os olhos. Quando acontecer, quando acontecer, ele parecia dizer. Para que se preocupar agora? Estamos seguindo nossa caça, não estamos?
Dormiram pouco. Estavam se acostumando nestes dias a dormirem apenas algumas poucas horas. Todo o tempo que dispunham era necessário.
Durante o dia, o homem metia o nariz no chão e ia seguindo. Ali, via uma folha amassada. Aqui, uma rocha movida. Só podia ser o rastro da caça que perseguiam.
Não está longe, não está longe, o garoto lia em suas costas curvadas. Mas temos que correr.
Dentro da selva abafada e úmida haviam várias distrações para o garoto enquanto ele esperava o homem decifrar as pistas. Às vezes ele pensava em como seria difícil a vida deste homem; em outras se distraía com uma borboleta. Não podemos culpá-lo, ainda era muito jovem.
Uma certa rotina de perseguidores se instalou. Acordavam logo para aproveitar toda a luz que podiam, comiam pouco e rapidamente: não havia tempo para caçar outra coisa que não sua presa. Logo estavam dentro da natureza, acostumados com seus sons e suas figuras. Caminhavam rápido. E em silêncio completo. Quando o homem olhava para trás, para o garoto que o seguia, seus olhos pareciam dizer Está indo muito bem. Parece até que nasceu para ser caçador.
Até que a perseguição os levou para o limite da floresta.
Exatamente como temiam, os rastros entravam no grande deserto rochoso.
O homem hesitou por um instante e logo abaixou-se e começou a procurar na areia algum sinal de passagem. Mas era difícil, muito mais difícil do que até então.
Porém, para quem seguira sua caça a vida inteira, esta não seria a hora de desistir. Os passos do homem se aceleraram para dentro do desolado. O garoto, atrás, mal acompanhava os saltos que ele dava pelas rochas. Mas podia ler claramente a excitação em seu rosto que dizia Vamos, talvez ele esteja logo ali, atrás daquelas rochas!
As duas mãos se moveram até os arcos pendurados nas cinturas. Estariam prontos?
Mas, por mais que corressem, não encontraram ninguém além dos promontórios rochosos. Exaustos, continuaram seguindo, pois nunca se sabe se é no próximo que encontraremos o que buscamos.
Até que o homem caiu no chão e disse que não aguentaria mais continuar. Teriam que dormir ali mesmo, desanimados e frustrados. Montaram acampamento e o garoto ficou de guarda, para o caso de chacais curiosos aparecerem.
No dia seguinte, conversaram. Estranhamente não conversavam desde que haviam se encontrado e decidido unirem-se, há apenas quatro dias atrás.
Você tem certeza de que continuar é a melhor decisão para si? parece perguntar o homem com seu rosto tenso e marcado.
- Sim, eu vou com você até o fim, diz o garoto. Eu aguento, posso caçar por dias sem me cansar.
O homem tem um sorriso amargo que parece dizer E por anos? E por anos então? Conseguirá continuar firme tendo abandonado tudo menos sua caçada?
- Ele queimou minha aldeia e matou meu pai. Não há nada mais importante para mim do que matá-lo.
Agora é o garoto que encara o homem. Ele não sabe o que aconteceu a este homem há tantos anos atrás que ainda perdura na forma de vingança. Não perguntara na noite em que se encontraram e se uniram para perseguir o assassino. Naquela noite, muito aconteceu. Atrás do rastro de fogo que o assassino deixou para trás veio um viajante, um caçador na procura de sua presa esguia.
- É fácil segui-lo, na verdade. fala o homem com uma voz clara e limpa que o garoto nunca escutara antes. Seu séquito e seus incêndios denunciam-no facilmente. Porém, ele sempre está um passo à frente. Ele sabe se esconder, mas logo fica inquieto e levanta outra chama para me chamar. De incêndio em incêndio eu vou, perseguindo-o.
- Você acha que ele sabe que você está atrás dele?
O homem sorri. Seu sorriso diz: Não sei.
Mas ele gosta de acreditar que sim. Gosta de pensar que toda presa pressente um caçador. Senão, que motivo ele teria para andar de um lado a outro, sem direção, como se fugisse?
Então continuaram a caminhar. Agora o sol era muito mais forte do que antes, dentro da floresta, e queima as costas dos dois. O garoto esté cansado mas continua a andar, decidido a mostrar que ainda pode prosseguir na caçada.
As mãos do homem estão áridas e secas, com grandes sulcos que parecem dizer Olhem. Passei por tanta coisa que nem posso me lembrar de tudo.
Chegam enfim a um entreposto. Dois homens da natureza em um elemento estranho. A cidade os incomoda com seus barulhos, movimentos súbitos e sujeira que escorre por toda a parte. Ainda assim o homem não perde seu rastro e continua a seguir sua presa mesmo que seja cada vez mais difícil. Os mercadores são deslumbrantes demais para o garoto, que se distraí diante de tantas cores. Não havia nada assim em sua aldeia, somente quando o fogo deitado pelo assassino de seu pai lambeu as casas e destruiu as árvores. Somente naquela noite escura houvera tanto barulho e confusão.
Quando olha para frente o homem desapareceu. Seu sumiço soa como uma advertência. Nenhum guerreiro pode perder de vista aquilo que segue. Nenhum guerreiro pode se permitir perder-se. Mas o garoto é jovem. Sabe andar em silência na floresta mas não sabe caminhar na cidade. Tem mêdo.
Porém o mêdo também é passageiro. Aos poucos ele percebe: há ali uma pegada na areia que só pode ser do homem. Um colar que se movimenta sozinho em uma banca é sinal de sua passagem. O cheiro dele ainda está no ar.
O garoto anda pelas ruas com mais desenvoltura, porque aprendeu a ler os sinais da floresta que permaneceram apesar das casas e dos homens. Ele vira a esquina à tempo de ver um pé sumir porta adentro. Segue-o para a sombra de uma casa a tempo de ver em longo corredor uma sombra que caminha. O garoto corre confiante e entra no pátio. As mulheres conversam enquanto costuram e ninguém parece se dar conta de sua presença.
Uma porta com uma certa poeira parece indicar o caminho. Foi ali que ele entrou? O garoto entra também e sobre uma longa escada, seus pés tropeçam um pouco, ainda não está acostumado. Chega lá em cima a tempo de ver uma porta se fechando. Abre-a e dá conta da situação em um instante.
Lá, sentado em uma cadeira, está o assassino de seu pai. Gordo, surpreso, vestido de branco com um pequeno fruto nas mãos, pronto para comer. Ao redor, duas mulheres de rosto branco próximas de uma bandeja dourada e o resto de seu séquito comem espalhados pelo quarto, iluminados pela forte luz do dia que entra da varanda e consegue pouco avanço sobre a penumbra da sala.
Nenhum sinal do homem por ali. O garoto pensa no arco que carrega na cintura. Será rápido o suficiente?

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