domingo, novembro 23, 2008

Uma Outra História Que Não Termina

A despeito de sua aparência, Lucas era na verdade muito velho. Velho porque lera demais quando era criança, e todos sabem que a Literatura serve para nos envelhecer. Por isso, quando se viu sozinho no mundo, tendo perdido seu melhor amigo nos turbulentos eventos narrados anteriormente, ele escolheu a solução que mais se adequava aos romances que lera.
Como um Dom Quixote moderno, saiu de sua casa para perseguir um antigo sonho. No caso, um sonho de infância que tinha a forma de um quadrinho pequeno onde se viam retratados um palacete e seu jardim, e em cima, escrito em letras vermelhas e rebuscadas, as palavras "Continua Sem Acabar". Era um quadro tão pequeno que caberia em seu bolso, pintado por não se sabe quem, que havia pertencido ao seu pai. Quando criança, Lucas se acostumou a dormir ouvindo histórias que seu pai narrava sobre este palacete, como se o quadro fosse uma janela para um lugar no mundo em que todas as histórias, com todos os personagens, poderiam acontecer. Lá, onde a vida estava sem freios. E mesmo com a presença de ogros, bruxas e grão-vizires ciumentos, Lucas nunca desejou outra coisa que não encontrar o palacete e seu jardim, para viver uma aventura, para sorrir do fundo da alma, para errar e aprender, enfim, para ser.
Agora, desolado e sozinho, Lucas tinha nas mãos o quadro. Sabia que fora pintado nos arredores de Florença, então sabia por onde começar a procurar. Porque Lucas nunca duvidou que tal lugar existisse, e que todas as histórias que ouvira foram as pontes que o permitissem vislumbrar sua existência. Em sua longa vida adulta - e precoce maturidade devido aos livros - escondeu muito bem sua vontade de encontrar o lugar. Tão bem que nem ele próprio percebeu que o desejava, até perder seu melhor amigo e sua vida antiga e tudo acabar como se um terremoto devastador houvesse passado por si. Agora percebia que queria procurar o tal palacete, e caminhava tranqüilamente por uma das oito estradas que levava à Florença. Nem que seja para ver como está o lugar, pensava. E aspirar um pouco de sua atmosfera mágica, criada por anos e anos de sonhos com ele.
Caminhava apoiado em sua bengala, devagar e pensativo, embora estivesse triste demais para pensar em algo que o agradasse. Olhava para tudo o que via na estrada, buscando uma distração. Tendo uma educação rígida ao costume do norte, surpreendia-se com o descontrole que as plantas atingiam no calor do verão. Mesmo as flores mais educadas, ele percebia, vazavam para fora de seus vasos e desciam pelas colunas. O mato subia pelas calçadas e invadia a estradinha pitoresca, as moites proliferavam abundantemente.
Algo acontece com as plantas no verão, ele pensou, algo enlouquecedor para qualquer um acostumado aos movimentos humanos. Depois de toda a morte do inverno elas se reerguem com uma luxúria fascinante. Morriam para renascerem, diferentes e verdes, em todo o seu novo esplendor. As pessoas não conseguiam se acostumar a esse abandonar de si que tinha lugar todo inverno, para que, de um modo tortuoso e indireto, nascessem novamente no verão. Todo ano é a mesma coisa, observava Lucas. As plantas tão grandes e vivas! Elas sabem o que as espera no inverno? Ou sabem que há o verão seguinte?
Logo após a curva da estrada via-se uma estalagem de madeira, elegante e confortável, onde alguns cavalos já estavam alojados e o som de riso e conversas saía do interior. Já que não estava apressado ou tinha um itinerário certo, Lucas abandonou suas conjecturas sobre a dificuldade dos homens em abandonar e entrou no estabelecimento.
Lá dentro era fresco e agradável. Lucas rapidamente escolheu uma mesa e dedicou-se a uma de suas atividades favoritas, observar pessoas. Esquecido momentaneamente de suas tristezas, ele olhava em volta com curiosidade.
Um senhor idoso, magro e amargo, gritava com seu mordomo. Na mesa ao lado, duas damas italianas à passeio eram atendidas pessoalmente pelo estalajadeiro. No balcão, sentavam-se alguns homens, provavelmente florentinos, descansando e conversando. Viu de relance também um espanhol vestido belamente com um colete verde, que saiu para um dos quartos logo que Lucas começou a prestar atenção.
Então ouviu-se um ruído de fora e um grupo de cinco rapazes entrou na estalagem. Eram jovens e conversavam, animados por alguma disputa intelectual. Lucas observou-os com interesse de sua mesa no canto. O estalajadeiro logo atendeu o grupo e deixou-os sentados em uma mesa próxima, da qual Lucas poderia ouvir claramente sua conversa.
Quatro dos jovens estavam muito empenhados em preparativos, arrumando o almoço, examinando os quartos, vendo se os cavalos estavam em ordem. Já o quinto era silencioso e sentou-se logo, como se esperasse que os outros terminassem as tarefas. De algum modo, Lucas pensou, este quinto jovem parecia ser o centro gravitacional ao redor do qual o grupo girava. Estavam ali por sua causa.
Então começaram a conversar, discutindo questões que para Lucas não despertavam o menor interesse, mas sim diziam respeito ao amor e a um reino distante, do qual ele meramente ouvira falar.
O quinto jovem estava em silêncio. Comeu devagar, ouvindo os seus companheiros sem falar uma palavra. Terminada a refeição ele se levantou e disse devagar, sob o olhar dos outros:
- Então tenho uma história para contar.
E Lucas prestou enorme atenção, pois adorava mais do que tudo ouvir histórias. Seu antigo amigo, fora um excelente narrador, e haviam passado várias noites juntos, inventando histórias agradáveis de se ouvir e de se contar. O que não era fácil, pois como foi dito, Lucas havia lido demais quando era jovem e tinha a alma envelhecida por tudo o que passara através dos livros. O que significava que era um crítico severo e que não suportava histórias mal contadas ou mal estruturadas. Por isso prestou muita atenção quando o jovem levantou-se da cadeira e anunciou uma história. Lucas não tinha idéia se ele se revelaria um bom contador de histórias ou não, mas ao menos o jovem tinha uma noção do ritual necessário. Havia ficado em silêncio o jantar inteiro e só agora falava. Ainda por cima estava de pé.
Os outros rapazes ofereceram-no uma cadeira solicitamente, mas ele recusou.
- Será curta, acrescentou.
Os rapazes olhavam-no sorridentes. Lucas acreditou cada vez mais que eles eram apenas servidores e que o jovem de pé era o verdadeiro protagonista daquela viagem.
-










Terminada a história, Lucas sorriu e voltou os olhos para seu prato, para que não percebessem que se apaixonara pela história contada. O protagonista parecia-se muito com seu antigo amigo, agora perdido, que pensou que desmoronaria de tristeza ali mesmo. O jovem contara-a com delicadeza, evitando as expressões chulas e comuns que poderiam estragar a narrativa sublime, escondida no meio da sordidez como uma flor que nasce em meio ao estábulo.
Sentindo cada vez mais aumentar o vazio em seu peito, Lucas foi deitar-se. Alugou um quarto e passou o resto da tarde ora olhando pela janela, ora deitado na cama. Lá fora o dia esquentara tanto que era impossível permanecer no sol. As plantas quase se faziam ouvir crescendo.
Quando enfim a noite caiu, resolveu que não podia mais ficar ali dentro e desceu para o salão central. Encontrou ali o mesmo grupo de cinco jovens rapazes, sentados em um banco no jardim da estalagem, em silêncio. Aquele que contara a história estava apoiado contra o tronco de uma árvore e descascava uma laranja. Definitivamente havia algo nele que o diferenciava dos outros quatro, como se fosse um espírito da natureza apenas disfarçado de homem. Houvera uma força na história que contara à tarde - a mesma força que fez Lucas se entristecer ao obrigá-lo a se lembrar do passado - que sugeria que este mesmo jovem poderia ter protagonizado o conto, ou vivido algo parecido.
Isso despertou em Lucas o desejo de saber seu segredo, desvendar seu enigma. Compreender o que fazia dele uma pessoa diferente. Pois ele não parecia caber no grupo de jovens viajantes. Andava entre eles mas não era um deles.
Com o cair da noite e pôr-se da ceia, os quatro acompanhantes saíram de perto do jovem e deixaram-no sozinho. Lucas, que lera tantos romances de aventuras, sabia que este seria o melhor momento em que o protagonista poderia abordar aquele que mudaria seu futuro, ou pelo contrário, o momento no qual o estranho o interpelaria e pediria ajuda com seu destino. Lucas era normalmente um homem de fácil conversação. Sabia discorrer facilmente com desconhecidos e não tinha nenhum problema em ser simpático e despertar interesse. Porém, desta vez, a intensidade da solidão do jovem o fez recuar. Não conseguiu pensar em um motivo sequer de conversa, nem articular um simples olá. Envergonhado, permaneceu sentado em um banco do jardim, não muito próximo e nem muito distante.
Duas vezes se convenceu a levantar e parou no meio do movimento. Na terceira, tendo se levantado devagar e desistido no meio da tentativa, desequilibrou-se e acabou por deixar o quadro com o palacete pintado cair de seu bolso no chão. Enquanto se reerguia e reabaixava para pega-lo, sentiu um movimento no ar e percebeu que o jovem adiantara-se rapidamente.
- Bonito quadro, ele disse, levantando-o do chão. Se não me engano já vi este palacete antes. E curiosas as palavras, Continua Sem Acabar.
Lucas olhou de perto o viajante. Tinham quase a mesma idade. Mas que diferença fazia ter a alma jovem! Lucas pensou com inveja. Mesmo triste, o rapaz tinha os sentimentos de seu mundo, de seus amigos e não os sentimentos de um falso velho.
Lucas respira fundo. Não queria conversar com este jovem? Não estivera a tarde inteira pensando em modos de parabenizá-lo pela bela história? Não queria saber seu segredo? Por fim ele percebe a atenção que o rapaz dedica ao quadro e consegue falar, em um tom que parecia o de um homem que houvesse descoberto uma coisa fantástica.
- Já viu este lugar? Conhece este jardim, este palacete?, ele pergunta entusiasmado. Será que era isso que fazia dele uma pessoa diferente? ter encontrado a fonte das histórias? - Já os viu antes?
- Não, devo ter me enganado. Conheci um lugar muito parecido, mas olhando atentamente são muito diferentes. Estive em um palacete a um certo tempo atrás, lembro-me muito bem de seu jardim. Foi lá que ouvi a dura história de um rapaz que não queria nunca crescer. Mas isso já passou e foi em um lugar longe daqui. Agora nada disso importa para o senhor, porque não se trata do mesmo lugar.
- Andei procurando esse palacete minha vida toda, sem saber, disse Lucas, segurando o quadrinho nas mãos. Somente agora arrumei coragem para me aventurar fora de meu país. Larguei minha casa e minhas possessões no norte e estou aqui, a caminho de Florença, percorrendo suas oito estradas para ver se em alguma delas... Em alguma delas... - ficou em silêncio, sem saber como continuar. Nunca havia dito nada disso à ninguém, nunca havia pensado isso claramente também. Logo, acrescentou envergonhado pelo seu próprio entusiasmo:
- Sinto muito por isso, não deve ser da sua conta senhor.
O jovem sorriu um tanto amargamente.
- As pessoas se enganam fácil. - e, mudando de expressão - O senhor não gostaria de me contar sua história?
- É uma história triste demais. Ainda não terminei de sentí-la, dificilmente poderia contá-la bem.
- Você sente como um homem velho, que já conheceu o mundo e precisa descansar. Mas não parece ter a idade muito diferente da minha. Porque você pensa assim? Não tem vontade de experimentar? Eu mesma, quando era ainda mais jovem, costumava pensar que tudo valia a pena, mesmo os erros. Quem sabe eu não deveria ter escutado os conselhos dos mais velhos, já que agora sou somente uma viajante solitária que errou demais.
Então Lucas percebeu que estivera conversando este tempo todo com uma mulher. Então era isso, ele pensou. Por isso ela não se parecia com nenhum homem! Uma mulher que usava roupas de homens e podia caminhar entre eles com total desenvoltura. Envergonhado, ele percebeu que havia chamado-a de senhor.
Vexado, pediu desculpas pela confusão, chamando-se de estúpido. Ela respondeu que não fora culpa dele. Se andava assim era em parte para disfarçar, então seu erro seria desculpável e em parte para libertar-se, e neste caso ela teria preferido que ele nunca percebesse, pois temia que ele a tratasse como uma dama comum, entediante e frívola.
- Sinto muito, pediu Lucas. Mesmo tendo observado-a contar a história durante o almoço não me dei conta de que se tratava de uma moça. E eu que me pensava um homem atento aos detalhes!
Ela riu.
- Eu mesma já fui enganada várias vezes e por muito tempo. Minha educação me ensinou a desconfiar dos homens perfeitos, que não temem nada e que juram a eternidade. Mas nem mesmo eu fui capaz de resistir por muito tempo. Logo a mentira me alcançou e me pregou uma peça amarga.
Lucas baixou os olhos. Olhou para o quadro em suas mãos e para a moça de roupas escuras, agora enxergando-a completamente diferente, como se uma chave houvesse sido virada no mundo, modificando sua visão.
- Você esteve me ouvindo, durante o almoço, enquanto contava a minha história?
- Sim. E devo dizer que me entristeci muito. Sua história me fez lembrar de uma importante pessoa que perdi não faz muito tempo. Ele sempre dizia que uma boa história deve provocar os melhores sentimentos, pois para ele haviam diferenças fundamentais entre os sentimentos. Havia a boa felicidade e a estúpida. A deliciosa tristeza e a tristeza devastadora. O cansaço de um dia bem vivido e o cansaço de um dia derrotado. As histórias, quaisquer que fossem os temas, deveriam sempre nos inspirar os melhores lados de todos os sentimentos, mesmo o terror e a raiva que, de vez em quanto, é bom sentir.
- Ele está muito certo, a viajante disse sorrindo. Concordo plenamente com a pessoa que lhe disse isso. Estou certa que se tratava de um excelente contador de histórias. E o senhor? Não gosta de contar?
- Não, sinto muito. Prefiro muito mais ouví-las, disse Lucas. Mas em compensação, me tornei, por assim dizer, um especialista em ouvir histórias.
A jovem olhou-o com os olhos bem abertos e sérios.
- O senhor então me faria um favor?
Lucas acenou com a cabeça. Sentia-se encurralado por um grande felino, e que não teria nenhuma saída senão obedecer. Porém, obedeceria com a mais alegre e contente servidão.
- Eu mesma sou uma contadora de histórias experimental, a moça disse devagar, olhando para as exuberantes plantas do jardim. Estou ainda aprendendo a fazê-lo, por isso preciso de sua opinião como ouvidor profissional para saber como estou me saindo. Queria que ouvisse a história de minha vida e depois me dissesse o que você pensa dela. Geralmente os bons ouvidores sabem como uma história irá terminar pelo modo como ela começa, e sabem o que o herói deve fazer antes mesmo do mago ensinar.
Lucas concordou com a cabeça. Talvez por isso se sentisse tão velho, tão experimentado. Parecia que ele conhecia todas as histórias do mundo, e eram poucas as que lhe davam genuíno prazer.
- Eu precisava de sua ajuda para saber como minha história irá terminar, a jovem disse. Por favor, se você pudesse, se ao menos tentasse, talvez poderia adivinhar qual caminho eu devo seguir agora. Pois tem algo muito importante que eu procuro, e não sei onde está.
Lucas sabia. Inconscientemente percebera durante a história que ela contara no almoço que havia algo faltando à esta jovem. Agora tudo ficara um pouco mais claro.
Sentaram-se juntos em um dos bancos do jardim enquanto o anoitecer trazia um vento fresco e agradável. Estavam escondidos pelas plantas e pareciam velhos amigos trocando confidências antigas. Ela respirou muito e profundamente antes de começar. Lucas desejava ajudá-la do fundo de seu ser.
- Sou uma viajante solitária agora. Tenho vários companheiros de viagem que me alegram e falam do mundo com embriaguez. Estamos nesta estrada porque procuro algo... bem, não o procuramos todos?
- Mas talvez este não seja o melhor modo de começar. Não vou falar disso agora, prefiro falar de como começou. De quem eu era antes de me transformar sucessivamente em diversas coisas diferentes. Antes eu não era assim. Eu era...
Lucas apurou seu ouvido e ouviu com todo o interesse a história da jovem:
- Muito tempo atrás, num reino muito, muito distante, vivia uma linda princesa, tão bela quanto os raios dourados do sol nascente, ou quanto as flores noturnas, ou quanto as rosas recém desabrochadas cobertas de orvalho no início da primavera...

Um comentário:

Rafael F. disse...

Cliquei aleatoriamente num mês do teu arquivo, e caí nesse texto. Agora acho que terei que ler todo o resto.

haha