A maré lançava ocasionalmente um ou outro pedaço de madeira sobre a areia branca. Nenhum dos pescadores dava muita atenção: era mais do que comum que as batalhas furiosas entre turcos e cristãos lançassem alguma tábua ao mar e que, como tudo o que é jogado ao mar, ela acabasse retornando à terra. Quem sabe que tipo de destroços podiam encontrar? Diante da variedade constante, os pescadores aprenderam a encarar entediados o que vinha dar à praia.
Porém, naquele dia, algo incomum chegou à margem. Algo que merecia certa atenção, não sendo nada menos do que um heterogêneo grupo de animais. Alguns porquinhos, um sagüi, uma cegonha cinzenta, um ilustre e rubicundo porco usando insígnias capitâneas e um gato branco, de capa e espada, muito desconcertado por estar todo molhado. Estavam todos vivos, é claro. Um pouco sem fôlego, muito cansados de água, mas vivos.
- Maldita tempestade! Raios e trovões nos partam! - gritou Pigmaleão - Nosso barco destruído, nós naufragados em terras estrangeiras. A desgraça! A desgraça!
- Não pode ser tão ruim assim - suspirou Percival, espremendo seu rabo branco, de modo a tirar dele toda a água - Estamos todos um pouco rabugentos, mas tenho certeza que uma olhada melhor na situação toda vai nos dar uma nova perspectiva.
- E não se esqueça que seu amigo foi capturado - disse Pigmaleão - Por aqueles corsários, aqueles piratas, filibusteiros, fanfarrões! Que dia mais terrível.
À menção de Lancelot, Percival empertigou-se e retirou o florete da bainha.
- Eu juro que salvarei meu amigo! - ele gritou - Vou tirá-lo das garras desses ladrões intrometidos! Vou mostrar para eles o que acontece com quem se intromete nos assuntos felinos, vou... vou...!
- Acalme-se - disse Pigmaleão, sentando-se desanimado na areia - Nem mesmo sabemos onde eles podem estar... Em qualquer lugar à essa altura!
- Mas eu vou encontrá-los, e escorraçá-los, e derrotá-los, e... - continuou o gato branco, mais animado do que nunca, pulando e fintando como se estivesse em uma batalha de verdade - Ah sim, eles nunca mais vão esquecer meu nome!
Os outros marinheiros olhavam para o gato desanimados. Em certo momento, a cegonha achou melhor perguntar:
- Capitão, o senhor tem idéia de onde estamos?
- Idéia nenhuma! - esbravejou o porco - E esse é só mais um de nossos problemas! Estamos em país estrangeiro e em uma praia desconhecida! Como voltar para casa? Nenhuma idéia! Incógnita total!
O que Lancelot faria? Percival pensou. Neste momento, o que eles mais precisavam era de um gato sensato, que pudesse examinar a situação e tirar dela o melhor proveito. Um gato animado como ele, ao lado de um capitão irritadiço não era a melhor das opções.
Mas ele tinha que ajudar estes marinheiros.
- Em primeiro lugar - declarou Percival - Temos que descobrir onde estamos.
Olharam ao redor e só puderam ver uma longa praia. Mais adiante, uma estrada.
- Os humanos costumam ter placas e mapas e outras informações assim! - exultou Percival - Vamos até onde eles estão. Mas atenção: vocês que não estão acostumados a se infiltrarem entre os homens, sigam exatamente minhas instruções e façam exatamente o que eu fizer, ouviram bem?
Os marinheiros concoradaram ressabiados. Haviam ouvido histórias horríveis sobre os hábitos alimentares dos homens, mas estavam decididos a acompanhar o gato.
- Agora, em primeiro lugar, andem assim:
- Nas quatro patas?? - perguntou Pigmaleão estupefato.
- Sim, é deste modo que os humanos acham que caminhamos, por isso temos de disfraçar. Agora façam como eu - disse Percival, seguindo em direção à estrada e miando sonoramente. Atrás dele, uma estranha fileira de bichos, ainda com roupas de marinheiros e acessórios, todos de quatro - inclusive uma cegonha muito confusa - e todos eles miando estranhamente.
- Miau, miau. Você tem certeza de que é assim que os animais se comportam por aqui? - o porco perguntou.
- Absoluta. E olhem: parece que estamos com sorte!
Ao lado da estrada, um longo caminhão estava parado. O motorista, de cabeça enfiada no capô, não se deu conta dos animais se aproximando.
- Ali devem haver todo o tipo de pistas sobre onde estamos! E lembrem-se de manterem os olhos abertos para qualquer pista sobre Lancelot!
- Isto está realmente incômodo - preguejou Pigmaleão.
- Miau, miau - disseram os outros animais, enquanto engatinhavam em fila até a parte de trás do caminhão parado.
Ali, a porta aberta deixava à mostra um sem número de objetos. Provavelmente se tratava de um caminhão de mudanças que parou entre um destino e outro. Percival guiou os animais para dentro e retirou uma das capas brancas que protegia um sofá macio.
- Quantas coisas! - murmuraram os marinheiros, esquecidos de andarem de quatro patas por um momento, maravilhados com o que poderia ser revelado ao se retirar o pano branco.
- Olhem isso! - grunhiu o capitão Pigma - Livros e revistas, dentro de uma caixa! Quem guardou isto aqui?
- Ora, - disse Percival, abrindo os braços - é muito claro que os humanos estão trocando informações. Este é o modo com o qual eles se comunicam entre duas cidades: passando objetos.
- Fantástico! - disse o porco - Olhem, aqui há um piano!
Neste momento, a porta de trás do caminhão se fechou em um estrépito.
- O que foi isso? - gritaram os animais assustados, engantinhando novamente e miando devagarzinho, para o caso de algum humano estar espionando.
- Eles nos fecharam dentro deste lugar! - gritou Pigmaleão - Você acha que fomos capturados?
- Não - disse Percival, já não tão seguro assim de suas afirmações - Ele só não percebeu que ainda estávamos aqui dentro... Acho que devemos tentar avisá-lo.
E os animais começaram a miar em voz alta. Porém, no mesmo momento, o motor do caminhão voltara a funcionar, abafando na cabine do motorista qualquer barulho externo. Estavam em movimento.
- E isto agora? - disse Pigmaleão, cada vez mais zangado com o felino branco.
- Ora... Eles estão apenas... Trocando informações.
- Seremos trocados? - engasgou-se a cegonha.
- Não, não se preocupem! - disse Percival, mas o caminhão já adquirira velocidade, fazendo com que os móveis e objetos escondidos no escuro chacoalhassem barulhentos - Basta encontrarmos uma luz!
Todos se dispersaram, abrindo e fechando gavetas e armários.
- Nada por aqui - sussurrou um dos marinheiros assustado.
- Por aqui também nada - disse Pigmaleão - E agora sim estamos com problemas. Se estamos sendo transportados, como vamos saber onde estamos?
- Se ainda estamos andando não precisamos saber onde estamos - sorriu Percival, tentando fazer uma graça - Basta saber onde chegaremos. E para isto, basta chegar!
- Mas estamos nos afastando cada vez mais do mar! - urrou o porco - Cada vez mais dentro de território inimigo e perigoso. Você escutou as lendas! Ficará mais difícil ainda de encontrarmos o seu amigo!
Percival fechou a expressão.
Era preciso encontrar Lancelot o quanto antes. Sem esquecer que havia ainda uma difícil missão a ser cumprida.
Eles se encolheram no escuro, esperando.
Não foi preciso esperar muito; o caminhão começou a diminuir de velocidade e, logo, os animais sentiram o movimento parar por completo.
O motorista assobiava. Com tranqüilidade ele deu a volta no caminhão e abriu a porta de trás. Assim que ele deu as costas, um grupo de animais assustados - e vestidos! - pulou para fora e para o ar livre. Correndo desengonçadamente de quatro, eles entraram, sem serem vistos, no quintal mais próximo.
- Estamos livres! - comemorou o gato branco - Não disse que daria tudo certo?
- Foi por muito pouco! - suspirou Pigmaleão - Vamos continuar a farsa mais um pouco, não se sabe quando um humano pode aparecer. Continuem a miar homens! E você, senhor gato, trate de descobrir onde estamos.
Percival olhou em volta. Era o quintal de uma estalagem. Duas casas, uma fazendo as vezes de moradia e a outra como taberna, aberta à rua e ao movimento. Os animais atravessaram o quintal e foram se esconder na estrebaria, achando que de algum modo ali seria menos evidentes.
- Tratem de encontrar esconderijos e camas para nos escondermos por enquanto - Pigmaleão ordenou aos marinheiros - E juntem tudo o que puderem, nunca se sabe o que será útil.
Percival escalou uma viga até o teto. Lá, em poucos passos ágeis, ele pulou até a árvore próxima e da árvore até o telhado da taberna.
E então, foi com um olhar de triunfo que o gato branco divisou, através da rua, a placa pintada a mão que mostrava um mapa da cidade e as palavras "Bem-vindo à Florença".
Agora ao menos sabiam onde estavam.
sexta-feira, dezembro 12, 2008
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