segunda-feira, dezembro 08, 2008

Para o dia do caçador, uma história de caçador

Cheguei enfim à praia. Estava à bordo de uma pequena embarcação vestindo o casaco mágico de pena de ganso. Depois de alguns dias no mar, em que testei toda minha habilidade em pescar, consegui chegar em terra. Onde estaria? Seria de algum modo próximo do meu objetivo?
Abandonei o pequeno barco na praia e escondi o casaco precioso em um buraco no tronco de uma árvore. Afinal, eu não sabia onde estava e não podia me dar ao luxo de ser visto com um objeto tão extravagante, no qual eu mal cabia, e que tinha poderes mágicos. Assim que eu soubesse onde havia ido parar, saberia como usá-lo e viria buscá-lo. Por enquanto apenas bancaria o gato inocente.
Caminhei ao longo da praia até encontrar um rio. Caminhei ao longo do rio até encontrar o moinho. Lá dentro havia um velho moleiro, o seu pai, e o primeiro ser humano que via em quilômetros. Rapidamente assumi minha postura de quatro patas e ronronei para ele.
Ele me ofereceu um prato de leite e, como estava muito cansado de minha viagem, adormeci em sua soleira. Seu pai foi um homem muito bom para mim Rufus. Ele sempre me dava comida, mesmo quando era difícil para ele alimentar a si e aos filhos.
De vez em quando eu caçava passarinhos e colocava propositalmente nas armadilhas dele, para que ele ficasse contente e tivesse o que comer. Por isso passei alguns dias na sua casa, ainda tentando descobri onde estava.
Até que fui dado como herança do velho para seu filho mais novo, seu filho mais esperançoso e sonhador. Porém era aquele que se desesperou ao ver que o destino lhe havia reservado um gato preto.
Ora, digo eu, um gato preto pode ser o melhor dos presentes do destino.


O gato então se silenciou e ficou a olhar o filho mais novo do velho moleiro.
O jovem Rufus piscou várias vezes antes de perguntar:
- E o que você quer de mim?
- Ora - Lancelot respondeu - Várias coisas. Em primeiro lugar, espero sua cooperação. Depois de ouvir minha história você entende que é imperativo para mim chegar logo à Florença. E, como você sabe, a Gasconha não é muito próxima de lá. Por isso preciso de um humano, que possa vestir o casaco encantado decentemente e que possa caminhar pelas estradas fazendo perguntas. Mas, depois de viver em sua casa por alguns dias e observar suas ações, eu percebi que você tem ainda mais uma habilidade que nos será muito útil.
- E qual seria? Eu sou o filho mais novo de um velho moleiro. Nada que se compare a um príncipe ou a um cardeal.
- Você pode montar bonecos - continuou Lancelot, como se não tivesse ouvido - Você faz títeres, bonecas, fantoches e joguetes. Já te vi produzir as mais perfeitas imitações e alguns de seus animais poderiam ser confundidos com os de verdade! Com esta incrível habilidade de controlar os títeres e enganar o público, poderemos salvar juntos o Reino dos Gatos! O que você me diz?
- Ora... - Rufus pensou - Se o que você acabou de me contar for verdade, eu estaria muito interessado em resgatar o calendário para o Reino dos Gatos, mas se for mentira... bem, se for mentira acredito que iremos nos divertir do mesmo jeito!
- Isso! Palavras de um verdadeiro sonhador! Agora vamos andando, não há mais tempo a perder.
Dizendo isso, Lancelot levou o jovem Rufus para o buraco no tronco de árvore e desencavou o casaco de pena de ganso, tão branco e bonito quanto da primeira vez que o viu.
- Vista isso - Lancelot ordenou.
Rufus agora parecia um nobre pomposo ou um viajante perdido. Estava engraçado de se ver: seu cabelo loiro e seu nariz quebrado se destacavam na alvura do casaco.
- Agora vamos para Florença - anunciou o gato preto - E no caminho teremos de montar um boneco igual a mim. Acredito que isso será muito útil.
- Deixarei os planos com você, mestre gato - sorriu o garoto, falando como o homem da família Stark - Vou obedecê-lo no que puder.
- Ótimo - disse Lancelot, cofiando os bigodes compridos - Sabia que poderia contar com você para pegar o traidor.

Alguns dias depois, já caminhando na estrada, Rufus terminou de construir um boneco igualzinho a Lancelot, em todos os menores detalhes. Para isso, ele usou alguns materiais que trouxera em sua bagagem quando decidiu abondonar sua casa.
- Seria bom se eu pudesse construir um boneco do homem do navio branco também. Você acha que consigo imitar alguém que nunca vi?
- Improvável - suspirou o gato, que estava mais do que admirado com a habilidade do filho do moleiro em controlar seu títere, como se ele estivesse diante do espelho - Ainda que eu pudesse descrevê-lo bem, o casaco que você está usando agora é sua característica mais distinta e não creio que seja esperto gastar um objeto mágico em um boneco.
- Tem razão, tem razão... - suspirou Rufus, que estava feliz demais com a herança que lhe coubera.
Aquela noite, Lancelot avisou que iria caçar e saiu pela floresta. Quando estava voltando com um pássaro na boca, caiu em uma armadilha, deixada por algum caçador no meio das moitas.
Ele estava preso dentro de alguma cesta, feita de uma madeira tão resistente que não conseguiu partir com as mãos. Logo mais aparecia o caçador, usando calças compridas e marrons, com sua espingarda à tiracolo e um cão acompanhando.
"Ótimo," ele pensou "um cachorro babão. É exatamente o tipo de coisa que eu não precisava ter que aturar agora."
- Ora, ora - comentou o caçador, abaixando-se - Pegamos um gato. Mas só um gato? Não vai dar nem para sopa... Mas olhe isso, ele até usa um chapéu...
Lancelot, que não pretendia entregar a existência do Reino dos Gatos tão facilmente, ficou quieto.
- Não vai nos servir de nada. Acho melhor matarmos aqui mesmo e vender a pele amanhã.
Porém, com sua existência em risco...
- Espere! - gritou o gato preto, acenando sua pata na cesta - Eu não sou um gato comum, não senhor. Sou muito especial.
- Minha Nossa Senhora! - exclamou o caçador, por sobre os latidos estúpidos do cão - É um gato falante! Onde já se viu isso? Posso vendê-lo no mercado por sabe-se lá quantas moedas de ouro!
- Vender-me? - Lancelot questionou ofendido - Se você quiser mesmo sofrer a maldição...
O cão e o caçador olharam-se.
- Que maldição?
Ora, agora só restava a Lancelot sorrir, relaxar e contar alguma história. O caçador foi curioso. O caçador foi pego.
- Como assim? Você não sabe que eu sou o gato encantado do mestre Harabamibus? O maior mago do ocidente e você nega que o conheça, balançando essa cabeça de um lado à outro?! Ora, isso não pode ficar assim. Se meu mestre me encontrar aqui, dentro desta cesta - capturado por um simples caçador! - nem me atrevo a imaginar sua fúria! A maldição que ele colocará em você será pior que mil infernos: pode ser que ele faça sua língua cair e te deixe morrer de fome. Ou ele pode chamar um batalhão de formigas para devorar sua comida e sua casa. Ou mesmo, quem sabe o tamanho da crueldade de mestre Harabamibus?, ele pode até inverter a ordem da natureza e fazer com que lebres e cervos te cacem noite e dia sem parar!
O caçador parecia assustadíssimo, olhos arregalados.
- Certo... - ele gaguejou devagar - Os feiticeiros costumam ter gatos pretos mesmo... E se ele for tão poderoso quanto você diz eu terei uma maldição terrível para enfrentar. Mas... - e nesse ponto ele olhou para o cachorro que não parava de encarar Lancelot - Quem disse que eu deveria confiar em um gato falante?
Ele agora coçava sua barba confiante e sorria.
- Sim, porque eu deveria escutar o que um gatinho me diz? Não deve haver feiticeiro nenhum, é isso que eu penso. E mesmo que houvesse, minha vida já é tão ruim que nenhum inferno poderia piorar, Vou tentar minha sorte: Vou vendê-lo no mercado e comprar uma nova casa para mim! Não vou mais cair nas conversas que me contam!
Neste momento, quando tudo parecia perdido para o gato preto, uma voz de cima das árvores falou:
- Pois deveria escutar este gato.
O caçador olhou para cima e lá estava Rufus, vestindo o casaco de pena de ganso, parecendo magnificamente assustador na luz noturna, de pé em um galho tão fino que tirou da cabeça do caçador qualquer dúvida de que ele fosse mesmo um feiticeiro.
- Eu sou Harabamibus, o maior feiticeiro do ocidente - e, saltando agilmente para o lado do caçador - E creio que o senhor capturou meu gato.
Nem mesmo o cão ousou latir desta vez. Lancelot foi libertado e logo os dois - caçador e animal - sumiram da clareira, correndo assustados.
- Essa foi por muito pouco - suspirou Rufus - Nem acredito que enganamos ele.
- Não comemore muito - avisou o gato preto - Parece que os humanos estão muito menos sucetíveis às histórias do que antes. As coisas estão tão ruins assim, que eles se importam mais com o que podem ver do que com o que podem imaginar? Ainda teremos um longo caminho até Florença e sinto que terei que usar todos os meus truques e que, mesmo assim, eles não serão suficiente.
Rufus acenou com a cabeça.
- Pode ser assim, mas mal posso esperar para ver quem será o próximo que enganaremos...

Nenhum comentário: