domingo, dezembro 07, 2008

Três dias para três bezerros. Para os três, uma história também.

Naquele momento eu adormeci profundamente. Não sei se foi o cansaço das últimas horas que passamos enfrentando a tempestade, a loucura subseqüente, ou simplesmente o fato de ser colocado em um quarto escuro depois de tantas horas de vigília nervosa. Adormeci sem sonhar, caíndo em um abismo.
Quando acordei - quem sabe quanto tempo depois? - levantei-me em um salto. Onde estava? Ah sim, no brigue do navio branco. Fui feito prisioneiro pelo homem de casaco de pena de ganso.
Estudei as paredes sem encontrar nenhuma passagem ou rachadura. Eram frias e tudo estava silencioso. Se escutasse bem, não ouvia nem mesmo o vento nas velas!
Bati de leve na porta e senti na vibração onde estavam as dobradiças. Não seria fácil desmontá-la, mas nem bem comecei a tarefa escutei passos no corredor.
Dois guardas abriram a porta e um deles apontou o dedo como se dissesse Venha conosco. Curvei-me ligeiramente, espantei a poeira de meu chapéu e caminhei entre os dois.
Os corredores do navio branco estavam desertos, o próprio navio estava parado. Se eu não me enganava... havíamos atracado enquanto eu dormia! Saindo para o convés, pude ver que nos encontrávamos em uma ilha, ancorados em uma pequena baía onde o mar era parado e calmo. Haviam coqueiros ao redor da praia e uma floresta densa no centro. Os guardas percorreram um caminho estreito que nos levou morro acima, para uma cabana de madeira com uma boa vista de quem entrava e saía da baía.
- Esta é a base de vocês? - perguntei inocentemente. Mas nenhuma palavra saiu da boca dos guardas.
Eles abriram a porta e sinalizaram com as mãos para que eu entrasse.
Lá dentro era fresco e claro. A grande janela iluminava completamente o único cômodo, com longas estantes cheias de objetos estranhos sinos que pendiam do teto. Em uma das paredes, um gigantesco espelho reproduzia todos os meus movimentos. E lá também estava o homem de casaco de ganso, olhando para a pequena baía.
- Seja bem vindo mestre gato.
Retirei meu chapéu em uma longa saudação.
- O prazer é meu, mestre captor. Estou à sua mercê e seus desejos me são uma ordem.
Ele sorriu e se virou - Não ha nada que eu queira de um felino como você.
Permaneci ainda sorrindo ao seu lado.
- Poderíamos conversar então. Sobre o motivo para você estar buscando um objeto tão misterioso, ou sobre o espião do Reino dos Gatos... Não sinto que seria um sacrifício tão grande para você me revelar o nome dele.
- Sim, não seria. Meus informantes sabem exatamente do que aconteceu. Venho de uma antiga família onde espionar é uma arte e uma tradição, portanto não foi nada difícil para mim espalhar uma rede de fofoqueiros e de informantes a cobrir vários reinos do mundo. Assim, quando eu soube do fato sem precedentes que ocorreu por volta de duas semanas atrás - isto é, o roubo de um objeto de dentro do cofre mais inviolável do mundo - eu logo quis descobrir a identidade do ladrão atrevido que fez isso.
- Pretende fazer algo com ele?
- Sim, interceptá-lo quando ele for vender o calendário para os agentes do Vaticano. Eu tentei encontrá-lo no mar antes que aportasse em Florença, mas pelo visto o único navio que encontrei foi o seu... Que pena, tenho certeza de que você não é o ladrão.
- Em que navio ele escapou do Reino?
- Não sei... Talvez no seu. - ele sorriu - Quem sabe aquele gatinho branco simpático não fosse um audaz pilantra?
Impossível, pensei. Percival nunca trairia nosso rei e esquadrão. Mas continuei a sorrir, seguindo seu jogo. Já que ele estava me revelando tanto, quem sabe não me contaria mais...
- Sim, eu não o conheço tão bem assim - disse - Nesse caso você teria muito azar por ter ficado com o gato errado.
Ele dobrou a boca, em uma expressão amarga. Isso me disse que, por mais que ele soubesse muito do gato ladrão, não o conhecia pessoalmente e não podia dizer, de cara, se Percival era o não o tal bandido.
- Sinto muito, mas nunca imaginei que o Peregrino Noturno tivesse a pelagem branca. Por isso não acho que seu amigo seja uma ameaça para meu plano. E, de qualquer modo - ele acrescentou, apertando mais o casaco branco - posso muito bem encontrá-lo no momento da troca em Florença.
Por que ele me dizia tanto? Só havia uma explicação: ele não pretendia que eu seguisse em frente com essa informação. De qualquer modo, eu estava preso nesta ilha.
Prossegui até uma estante. Livros narrando contos de fadas e alguns livros de mistério. Cadernos de anotação. Baús trancados. Um castiçal com o emblema de família: Stark, ele dizia. Este era o sobrenome de meu captor?
- Reparei na sua habilidade de pular rápido e alto, e de caminhar em cordas como se não tivesse peso algum - mencionei. Se ele abria o jogo, eu abriria o meu - É por causa deste casaco, não é mesmo? Ele deve ser encantado; é o que eu imagino.
O homem me olhou com surpresa.
- Não esperava que você tivesse percebido. Muito bons olhos os seus, mestre gato.
- Obrigado, pretendo usar essa minha habilidade para escapar daqui.
- Não há navio ou embarcação que você possa usar - ele sorriu - E tenho meus soldados à postos e vigilantes também.
- Seus soldados... Afinal, o que seriam eles? Antigas armaduras que ganharam vida com um feitiço? Ou servos mudos que obedecem à qualquer vontade de seu dono.
- Pelo visto você está descobrindo um a um os dons secretos de minha família. Vou tomar muito mais cuidado com o que disser de agora em diante.
Dei de ombros.
- Acredito que já conversamos o suficiente mestre Gato. Vou deixar que volte para sua cela agora mesmo.
Retirei meu chapéu e apontei devagar o espelho grande que cobria uma parede da cabana:
- Mas e meu reflexo? Você conseguirá prendê-lo também?
O homem de casaco de ganso chamado Stark olhou-me com estranheza. Isto não lhe parecia hora para brincadeiras.
- Estou falando muito sério - advertí-o - Seus guardas podem muito bem capturar este gato aqui, mas e quanto ao que está dentro do vidro? Ele pode escapar, encontrar um barquinho e escapar para a cidade de Florença, onde ele interceptará o Peregrino Noturno antes que você o faça e recuperará um calendário que, pelo visto, é muito importante para muitas pessoas.
Aproveitei sua surpresa para agir: era um truque velho, mas sabia que ele cairia. Joguei meu chapéu para cima e o olhar do homem do casaco de ganso subiu também. No tempo que demorou para olhar meu chapéu de plumas voar, corri e me escondi atrás da mesa de madeira. Deste modo, ele não podia me enxergar, mas via muito bem meu reflexo no grande espelho.
- Viu? - riu o reflexo - Como você pode capturar algo que não pode nem tocar.
- Impossível! - ele gritou. - Para onde ele foi? - e, em um salto ágil subiu em cima da mesa, bem próximo de mim.
- Entre no espelho também, Stark - provoquei-o.
Quando o homem pulou para o chão atrás da mesa, passei por entre as pernas de madeira e subi do outro lado.
Meu reflexo acenou.
Agora Strak estava impaciente. Em um salto ele já estava na porta.
- Chega de truques - ele falou - Se eu ficar aqui você não vai escapar.
Dois soldados apareceram na soleira.
- Verifique o barco principal e os escaleres da baía leste. Não deixem o gato preto escapar - ele ordenou e uma das figuras saiu - Avise toda a companhia para ficarem de olho nele!
Obrigado pela informação, agradeci mentalmente. Tudo o que precisava fazer agora era chegar na baía leste.
- O jogo de espelhos terminou mestre gato.
- Certamente. Será hora de iniciarmos outros truques então.
Joguei para cima minha capa, fazendo-a raspar nos sinos do teto e no mesmo momento ele já a tinha agarrado e sacava seu espadim. No mesmo segundo, pulei e acertei-o com o florete.
- Precisa melhorar sua mira - ele riu e avançou para mim com sua agilidade sobrenatural. Porém, só pôde observar meu sorriso. O florete segurava o casaco de pena de ganso na parede.
- Vamos ver se você poderá lutar sem sua agilidade.
Stark estava furioso. Veio na minha direção tirando seu casaco, acreditando que minha falta de arma era pior que sua falta de velocidade. Ele agitava o espadim com destreza e fúria, me obrigando a pular de um lado a outro da sala. Logo estávamos no canto oposto, dançando acrobacias impossíveis.
- Acredito que isso seja um adeus, caro perseguidor - sorri-lhe - Faremos uma pequena corrida para ver quem será o primeiro a chegar a Florença.
E, sem dar a ele tempo de responder, saltei e corri até o outro canto da sala, puxei meu florete da parede, vesti o longo casaco de pena de ganso e, antes que o homem da família Stark pudesse esboçar algum movimento, eu já havia pulado pela janela e pisava de galho em galho nas árvores, com um equilíbrio que nunca havia sentido antes, até a baía leste.
Chegando lá, vi os barcos enfileirados. Escolhi o mais distante para embarcar, mas tomei cuidado para soltar a todos e deixá-los serem levados pela correnteza marítima. Assim, ele teria menos meios de me perseguir e mais dificuldade de adivinhar onde eu estaria.
Graças ao longo casaco - que eu mal vestia, a bem da verdade. Era mais como uma manta confortável - em um movimento eu já estava sobre o pequeno mastro do escaler e tinha amarrado a vela. Movi o leme para alto mar e parti sem olhar para trás.
O vento estava forte mas, envolvido no longo casaco, não senti frio. Estava sim muito satisfeito de ter escapado de meu captor.
Olhei para o horizonte, me perguntanto onde diabos estaria Florença e se Percival e Pigmaleão tiveram alguma sorte em escapar da tempestade. Onde quer que estivessem, como iríamos nos reencontrar?
Mas antes precisava contactar o Reino dos Gatos e avisar que estava indo capturar o Peregrino Noturno, o ladrão traidor que roubou o calendário e estava, neste exato momento, esperando para entregá-lo aos agentes do Vaticano. Cabia a mim impedí-los.

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