quarta-feira, abril 29, 2009

Era uma vez...

... um deus que não queria criar o mundo. Seus amigos insistiam, pediam a ele que fizesse a existência, exigiam dele a realização do universo. Mas o deus não queria. Seja por medo ou por... algum mecanismo escondido no fundo de sua inconsciência; um mecanismo que o fizesse temer o que mais queria, que o fizesse desistir do que havia eleito como mais natural e correto para si. Em suma, era um deus covarde.
Os outros deuses não podiam entender. A ânsia de criar o mundo era como uma sede dificilmente implacável. Como entendiam as recusas do deus? Era algo pelo qual esperavam ansiosa e até mesmo impacientemente.
Mesmo antes do tempo, demorou muito para que o convencessem. Ou não o convenceram? Ele descobriu sozinho um modo de escapar do mecanismo auto-depreciativo ou quem sabe... simplesmente seguiu em frente, apesar de tudo.
Enfim, o deus resolveu criar o mundo.
Começou com a luz.
Separou a terra do céu. Tímido, não tinha o menor jeito com os movimentos grandiosos. Quando se animou, ficou ainda mais ridículo.
Foi seguindo com o ofício, segundo o que dele esperavam. Sobre a terra, fez as árvores, descuidadamente. Gostou muito de fazer os oceanos, eram o resultado de séculos de fantasia e desejos minuciosamente registrados e guardados em cada gota ou espuma, mas eles ficaram imperfeitos.
Fez personagens do mundo. Criou a raça humana e, sob os olhares auspiciosos dos outros deuses, criou até mesmo um Povo Escolhido.
Então descansou. Sentiu um misto de satisfação exausta com... com um não-sei-o-quê. Uma certa...
Descansou e deixou o mundo se desenrolar segundo seu plano.
Então chegou a época em que seu Povo Escolhido foi guerrear com outros homens. Rezaram pelo seu deus, mas ele os repudiou. Rezaram mais alto e se tornou evidente que ele os ignorava. Todas as cidades de seu Povo bradaram e gritaram seu nome, e o deus sentiu mêdo; mêdo de ir ao mundo e falar aos homens.
Por que temia sua criação? Aquela sensação incômoda de quando terminara o mundo voltou. Era mais forte agora, era uma ausência terrível, uma falta devastadora.
Do que ele precisava? perguntou-se o deus, para quem os minutos podiam passar como séculos. O que era aquela sensação que afundava toda vez que ouvia seu povo chamar?
Se escondeu, mas os brados e as preces se fizeram ouvir pelas frestas das paredes e pelas beiradas das estrelas. Sua covardia atingiu o limite máximo. Por fim, não se sabe se superando o medo paralisante ou sendo arrastado, apesar dele, para baixo, para a terra, onde encarnou no corpo de um soldado forte que lutaria pelo seu povo.
Desceu para lutar, mas era covarde. Foi atingido por uma funda e caiu. Aquilo era demais para ele. Ficou três dias em uma cama de campanha, com a cabeça rachada e vendo a perna sangrar.
Então um deus morreu. No meio do campo de batalha expirou um soldado esquecido; não sem antes conhecer sua angústia:
Aquele não era o mundo que ele deveria ter criado. Era um mundo imperfeito, e nada daquilo era parte dele.
Não tinha sido um deus livre, e morreu.

Um comentário:

Ozzer Seimsisk disse...

Isso foi incrível.