sexta-feira, maio 19, 2006

Os sonhos de Clara Mellock - segunda parte


O rio escorria devagarzinho por entre as plantas aquáticas. Mellock puxou o casaco até cobrir completamente os ombros e insiprou o fresco ar noturno. Ela estava dormindo ali no meio das plantas? Não sabia. Nenhuma lembrança anterior ao "despertar" chegava à sua mente.
Grilos e sapos entoavam sua sinfonia noturna. Uma névoa se erguia por sobre o córrego. Mellock se levantou e testou o chão com seus pés. Firme. Óimo, um começo.
Sua cabeça estava levemente dolorida, seus pensamentos todos perdidos. "Eu sou Clara Mellock", ela pensou em voz alta "Sou uma escolhida e devo encontrar Velho Tom. Meus amigos estavam me ajudando... Nós estávamos em um lugar esquisito, que era como um sonho, ou como estar dormindo... Sim! Eu me lembro da Terra dos Sonhos e da Torre da Memória, embora não acho que estou em nenhum desses dois lugars."
"Quer dizer... tenho ainda a sensação de estar dormindo e sonhando, mas ao menos lá eu podia sentir coisas como o vento no rosto e as folhas de papel na mão. Estar à beira deste lago é como estar vendo um filme sobre ele ou algo assim. Não me parece real."
Mellock chacoalhou a cabeça e continuou a andar. Era como estar em um sonho dentro de outro sonho, era difícil de prestar atenção em o que quer que fosse. Seguir a pequena trilha ao lado do córrego ocupava todos os seus pensamentos conscientes.
A cerração aumentou e o som dos grilos diminuiu. Mellock não podia sentir, mas soube imediatamente que um vento frio começara a soprar. A neblina corbiu toda a sua visão. "Para onde estou sendo levada?" ela se indagou, com uma pontada de desespero. O silêncio era profundo.
Uma forma escura apareceu à frente. Sua audição sumira, mas agora Mellock tinha a impressão que podia cheirar o orvalho aos seus pés. Novas sombras tomaram forma e grandes estátuas de pedra olharam para a moça. Olhos primitivos a espiavam de todos os lados, espalhados pela grama molhada.
Não era frio, não era assustador, não era nada. Desamparada,a escolhida se sentou em um grande bloco de pedra para pensar. Qual era sua última lembrança? Despertar perto das plantas aquáticas... Mexer nas pastas da Torre da Memória.. Não, tinha que haver algo entre isso. Algum elo entre a Terra dos Sonhos e este lugar esquisito. Seria um sonho? Ela estava andando por entre sonhos? Isso não deveria acontecer, ninguém é capaz de entrar em sonhos, não é algo normal ou seguro, nem mesmo na Terra dos Sonhos as pessoas faziam isso.
A menos que. . . Se isso fosse verdade, Mellock percebera, ela tinha feito uma péssima escolha. Ela arriscara tudo para chegar até aquele lugar, e agora havia sido engolida pelo poder que reinava ali.
Mellock estava na Floresta de Mnéias. Ela entrara dentro das mentes das pessoas e estava agora em algum pensamento, sonho, delírio ou cenário imaginado. A neblina voltara e agora as estátuas de pedra deram lugar à uma vasta campina e colinas ondulantes. Assustada Mellock pensou em um modo de sair dali. Ela não se lembrava de ter entrado, ou se algum de seus amigos também estava preso ali. Nada. A terrível "floresta" tomara conta de sua memória.


Um homem andava pelas colinas. O vento fazia o matagal ondular como um mar, enquanto o misterioso personagem subia a colina.
Mellock ficou quieta, esperando ele se aproximar.
- Olá - disse o homem, com um belo chapéu emplumado. Seus olhos inspiravam uma confiança serena - Você é parte do meu sonho? Eu acho que sonhar com uma bela senhora é melhor do que com monstros. Obrigado.
Quase rindo Mellock respondeu "Puxa, que gentil da sua parte. Na verdade eu estava tentando sair daqui, será que você conhece uma saída?"
- Hum... Imagino que acordando dê certo. Mas se você tem que me perguntar, deve estar com problemas em acordar. Vejamos... Outro dia eu sonhei que voava; quem sabe você deveria procurar uma saída no céu?
"No céu? Sim, parece uma boa idéia. A melhor que já ouvi hoje."
A neblina cresceu e envolveu a campina.
- Acho que agora eu devo acordar - suspirou o homem de chapéu - Adeus senhora!
"Espere! Não vá embora ainda, eu preciso encontrar meus amigos. Você viu mais pessoas como eu por aí?"
O homem pareceu pensar por um momento - Havia um garoto de cabelos loiros que fez essas mesmas perguntas. Havia uma sombra e alguns monstros. Mas eu espero que seus amigos não sejam monstros. Eles eram realmente. . . - Sua voz se perdeu na distância impossível do limiar entre o sonho e o acordado.
Mellock se viu dentro da neblina de novo e em um barco. Impassível, viu surgir diante de si alguns homens, um balde vermelho, um unicórnio e um labirinto. Ainda imóvel ela viu um longo desfile de símbolos e pensamentos passar pela sua frente.
Myshba estava ali, em algum lugar. Provavelmente os outros também.
Uma árvore, risadas ecoantes.
Todos eles presos em Mnéias.


* * *

Mellock se pôs a trabalhar em seu plano. Primeiro se sentou em um dos bancos da infinita praça que tinha na sua frente. Ignorando as badaladas da igrejinha ela se concentrou em um ponto de luz. Se essa fosse mesmo a temível floresta, seu plano deveria funcionar. O ponto de luz brilhou em sua cabeça e na sua frente. Cresceu e se expandiu, exatamente como descrito no Livro dos Sonhos, que ela lera (ou não, sua memória era confusa por aqui. O que importava era que o conhecimento estava lá, de algum modo registrado). A luz virou uma porta, de madeira, entalhada e destoante do resto da monótona paisagem da praça abandonada.
Mellock entrou pela porta e se lançou adiante com total certeza.
Uma triste paisagem em sépia, uma fonte. Um violino? (era difícil escutar ali). Um gato entre as mesas de um café abandonado. Um gato de mentira.
"Então é assim que se parece o interior da minha mente?" perguntou Mellock animada por ver que sua idéia funcionara. "Agora, se eu conseguir fazer funcionar..."
Para sair dali ela teria que usar uma das suas maiores qualidades: a sua fértil imaginação. Isso porque tantas vezes no passado as pessoas reclamaram de seu hábito de andar pelo mundo da lua...
- Mellock, atenção, você está ouvindo o que eu estou dizendo?
- Senhorita Mellock! Estou explicando algo aqui. Sinceramente!
- Mellock! Aonde você esteve? Todos aqui te procurando e você perdida na rua à esta hora! Será possível? Essa menina não escuta nada do que dizemos...
Silêncio. A praça com a fonte sumira. Ela agora se encontrava no meio de um corredor comprido. Uma figura corria em sua direção.
"Minha nossa!" ela gritou. A figura que corria pelo corredor não era outra senão ela mesma, há 34 anos atrás. Ela se distraíra e fora parar em uma lembrança!; lá estava o corredor da escola, sua carteira e seus livros.
Estonteada, Mellock observou a si mesma entrar na sala de aula e se enfiar atrás de um grande livro antes que as outras garotas ou o professor entrassem.
Uma dor aguda atingiu seu coração. As memórias dolorosas da adolescência voltaram com força total. A solidão, a nulidade, a decepção. Tudo ao mesmo tempo.
"Eu tenho que me concentrar!" ela gritou (ou não; o som não se movia nas lembranças)"Se eu ficar me lembrando vou apenas me perder mais ainda neste labirinto. Devo manter minha cabeça no lugar."
Por entre as chacotas das outras alunas, da voz austera do professor, da voz aguda e irritante da madrasta, Mellock achou um espaço vazio. Um silêncio.
Ela tinha que imaginar uma ponte. Uma ponte que a levaria até o céu, como dissera o estranho sonhador. Era exatamente disso que ela precisava para sair dali, ela estava certa, mesmo sem entender porque.
Estando dentro de sua própria mente ela podia criar tal artefato facilmente, mas era tão difícil encontrar seu caminho enquanto se está perdido no meio de lembranças próprias. A dor era muito mais pessoal.
Suspiro.
De novo, do começo...
- Mellock - soou uma voz. Doce. Terível.
"Não!". Ela desejou fundo que não fosse ele. Não Ele. Não Ele!
- Você disse que me seguiria até o fim do mundo.
Uma dor maior ainda explodiu em seu peito. Mellock perdeu o ar e o rumo.
- O que houve?
"Eu cheguei até o fim do mundo," ela disse, arquejante. "Mas você não está mais aqui comigo... Você me abandonou há tanto tempo, Thomas..."
Uma lágrima dolorosíssima caiu.
-Não chore Mellock. Eu estou aqui agora. Nada mais de ruim vai acontecer..
"Não! Você não é real. É só uma lembrança minha, um truque da Floresta de Mnéias. Por favor Thomas, vá embora, não faça isso comigo!"
- Isso não é mais um daqueles sonhos - ele riu. Era ele mesmo. Ele. - Isso é real. Você sabe disso, está só brincando comigo. Você sabe o quanto isso me irrita.
Mellock chorou. A dor era tamanha que ela nem podia se levantar. Ficou parada ao lado da cama (era sua cama, de quando tinha 22 anos e acreditava que podia conhecer o mundo através dos livros), se segurando na lembrança esquisita de que estava na verdade em Mnéias, e que tinha que encontrar o velho Tom e Myshba e quem mais estivesse ali.
Tom, Thomas. Era quase como se eles fossem a mesma pessoa. Um era um velho desaparecido que ela tinha que encontrar e o outro... Ah, era tão doloroso sequer pensar!
- Venha comigo. Não chore, meu bem.
Mellock tentou argumentar, dizer que ele estava morto, que não podia estar ali de pé e conversando com ela, que tudo não passava de uma medonha armadilha da floresta. Ela tentava explicar a ele que aquilo era errado, mas o que realmente saiu foi:
"Sabe... Eu nunca deixei de te amar..."


* * *

Myshba foi o primeiro a ver a estranha janela que se pendurava no ar, bem no meio do grande pasto. Ao seu lado uma porta e em cima uma chaminé. Como se fosse uma casa de paredes invisíveis, ou uma desconstrução que deixara elementos de lado.
- O que você acha que é isso? - ele perguntou, virando a cabeça de lado, para ver se a mudança de perspectiva auxiliasse a compreensão.
- Esse é um lugar tão estranho! - disse Neyleen - Nada parece continuar ou permanecer fixo. E nem sei o que estamos procurando.
Ali ao lado, Karyn moveu a cabeça, percebendo que seus medos eram corretos - Estamos em um sonho mesmo. Era o que eu temia! Isso aqui é Mnéias!
- Eu gostaria de me lembrar como viemos parar aqui em primeiro lugar - disse Teobolt, extremamente desconfortável com a situação de estar em uma sonho - Não me lembro de muita coisa antes de acordar no meio de um deserto, só que meu nome era Teobolt e que eu buscava algo sobre o velho Tom. Sorte que nos encontramos, esse lugar parece enorme.
- Sim, foi muita sorte mesmo - disse Karyn alarmada - Mas ainda precisamos encontrar os outros, incluindo a própria Mellock. São muitos os caminhos que podemos tomar daqui, infinitos quase. É como se estivéssemos diante de todas as mentes do mundo, pulando de uma à outra, sem saber onde fica a entrada ou a saída.
A neblina cresceu. Um mar tomou forma.
- Mas você sabe como fazer para nos tirar daqui, não é mesmo Karyn? Aposto que você tem alguma magia para uma ocasião assim - perguntou Neyleen.
- Não. Não sei como sair daqui, embora eu imagino que Mellock saiba. Ela é quem leu o Livro dos Sonhos e deve saber de algo. O que eu posso fazer é nos colocar em outro lugar. Quem sabe dessa vez escolhemos o pensamento certo, que possa nos levar até os outros.
- Isso seria ótimo - animou-se Teobolt - Não que a água me incomode, na verdade parece que eu não sinto nada, mas eu ficaria feliz em sair deste mar.
- Segurem-se - mandou Karyn com um movimento das mãos. Uma porta de madeira se abriu em pleno ar - Esta é nossa saída. Permaneçam juntos, nós iremos atrás de Mellock e dos outros e encontrar o velho Tom e a saída. Segurem-se.
A porta se abriu para um céu estrelado.
Myshba atravessou a porta e sentiu em sua pele uma sensação de formigamento. Lá em cima o céu imaginado piscou. Eles seguiram adiante, para mais uma lembrança, para mais um pensamento dentro deste terrível labirinto.
- Aonde quer que você esteja Mellock, - suspirou Neyleen - espero que você esteja acompanhada e segura. É melhor tomarmos cuidado com nossos pensamentos: nossas memórias nos perseguem.

6 comentários:

Charles Bosworth disse...

Sim, é verdade. Não dá pra comentar no post do Rio. Por quê? Sei lá. Eu quis testar o bloqueio de comentários. Deu certo. E agora eu estou com preguiça/desvontade de desbloquerar a comentação. Sei lá porque. O azar é seu..

(quem bebeu morreu)

huhuhu

muriel disse...

Er...Charles, você não precisa ficar se justificando, sabe? Nem achar que desativar os comentários é assim extraordinário...

Ozzer Seimsisk disse...

oh! estou muito ansiosa para saber como continua essa história! obrigado, Charles!

(btw, Cham, eu não vou responder à sua carta. desculpa.)

Anônimo disse...

*_*
que tenso.... por favor n deixe assim.... eu sei que com certeza eu vou sonhar com isso o.o...

Anônimo disse...

considerações about seu about:

Primeiramente: eu li o que estava antes desse mas nem deu tempo de comentar de tão rápido que vc trocou!

segundo mas n menos importante: Eu não sou BOBA nem LOUCA!!!!! Apenas tenho manias esquisitas e falta de memória..... E aposto q com essas suas mudanças de profile n sou eu só que vou cultivar esse siricutico de ler seu about n importa o que u.u...

Anônimo disse...

btw as imagens são lindas.... =D


... e vc escreve muito bem T_T