quarta-feira, junho 28, 2006
Os sonhos de Clara Mellock - terceira parte
- Ali! - gritou Haccu apontando as duas figuras na praia enevoada dentro do sonho - Finalmente a achamos, é Mellock quem está lá! Eu tenho certeza disso.
- Mas quem é aquele? - Perguntou Myshba - Tem uma segunda sombra ao lado dela. Será que é outro de nós? Ou o velho Tom que estávamos procurando?
- Não... - sussurrou Foxy assustado - É alguma outra ilusão. Mellock está em perigo, isso sim! Vamos logo, temos que correr! Algum sonho pegou a nossa amiga - gritou ele se pondo de pé.
Os três garotos pularam da areia e correram na direção das duas sombras paradas. Seria tarde demais? Seria mais uma ilusão?
Mellock olhou para o lado e os viu chegando. "O que fazem aqui?" se perguntou.
- São intrusos - respondeu Thomas, calmamente - Eles não pertencem ao nosso sonho. Vamos embora antes que eles cheguem.
"Não são intrusos" ela riu "São meus amigos! Quem sabe eles também querem entrar neste nosso sonho, querem ser felizes como nós somos aqui".
- Não. Eles querem tirar você daqui, meu amor. Querem acabar com tudo o que construímos juntos. Não dê ouvidos à nada do que disserem.
"Não darei... Mas gostaria que eles entendessem."
- Ninguém pode entender o que se passa entre nós. É especial e único. Os outros querem destruir, só isso.
"Oh Thomas!" Mellock suspirou, abraçando-o "Senti tanta falta de você. Esses anos foram solitários demais... Você promete nunca mais me abandonar?"
- Prometo. Ficaremos sempre juntos aqui. Não se preocupe.
-Mellock! - gritaram os garotos. - Saia daí! A floresta dos sonhos quer te prender!
"Ora garotos!" ela riu," Quantos disparates! Thomas bem que me avisou sobre as suas maluquices. Isto é uma praia, não tem nenhuma floresta por perto!"
-Não.. - arfou Haccu - A floresta de Mnéias, aquela dos sonhos, estamos presos dentro dela! Você está dentro de um sonho! Nós temos que sair daqui. Agora.
Os três olharam então para o estranho ao lado dela, intimidados pela sua alta silhueta e seu olhar ameaçador e firme. Tiveram medo dele, de que ele os dominasse também e de que nada pudesse salvar sua amiga.
- Você não é real - Foxy disse agressivo. - Por que está fazendo isso com ela? Por que a prende aqui?
- Mellock, por favor... - sussurrou Thomas no ouvido da moça.
- Não o escute! Nós temos de ir embora. - disse Haccu - Existe alguma saída?
"Vocês não entendem, não é mesmo?" Mellock disse. "Esse é Thomas, meu marido! Não sei de quem vocês querem me proteger. Sinceramente... Essa é uma linda praia, cheia de névoa e paz, sem nenhuma ameaça por perto. Tudo está simplesmente... perfeito. Acalmem-se e se sentem aqui conosco para aproveitar.."
-Você tem um marido? - Haccu perguntou confuso.
"Sim, não é maravilhoso? Eu achei que ele estava morto, bem, todos achávamos, mas era mentira! Era tudo um sonho ruim, uma longa noite tenebrosa. Mas, agora ele está vivo, ele está aqui comigo agora, e nada mais importa: todos os sentimentos ruins foram embora, o medo e a solidão foram esquecidos. Não quero voltar, isso aqui é que é verdadeiro. Meu marido finalmente voltou para mim, acabou-se o pesadelo."
- Já chega! - grunhiu Foxy. Com destreza e rapidez, ele agarrou a moça e a jogou por sobre os ombros - Nós vamos embora daqui e acabar com essa loucura, queira você ou não.
Thomas o encarou furioso.
"Me solte Foxy! Você não entende!"
Haccu apontou para um ponto da praia onde a névoa parecia menos densa e gritou para que os outros o seguissem. Os três correram para longe da figura ameaçadora, levando a triste senhora.
"Não, por favor, me deixem aqui! Eu estava tão feliz, o que vocês querem? Thomas! Oh, Thomas! Ajude-me, por favor. Porfavor porfavor, me deixem ser feliz de novo! Não quero voltar!"
Doía demais tirá-la de seu sonho. Foxy quase não aguentou ter que carregá-la, seu coração apertado pela aparente maldade do que estavam fazendo. Mas fora Mellock quem o dissera, quando eles mesmos haviam sofrido antes, com certeza e convicção, a frase que lera em um livro:
"Tudo, menos esquecer"
Por isso eles continuaram a correr pela névoa. Para que Mellock não se esquecesse de quem era, e quais eram seus pensamentos e memórias verdadeiras. O mundo real era seu lugar; ninguém deve viver entre os sonhos.
Correram, apesar das lágrimas e protestos da escolhida e da vozinha cruel (seria impressão ou uma realidade dentro daquela dimensão de sonhos?) que sussurrava sempre em seus ouvidos:
"Vocês não sabem o caminho, estão se perdendo cada vez mais em Mnéias. Desistam!"
A praia deu lugar a uma longa floresta, onde reinavam pessoas bem pequeninas e com o corpo coberto de pelos e folhas. Elas só falavam quando alguém segurava suas mãos, o que fazia com que a comunidade dos homenzinhos estivesse sempre de mãos dadas, conversando sobre a vida na floresta fria.
Tudo o que eles conversavam eram através de frases que Mellock dissera em sua vida.
- Você acha mesmo que eu devo pedir?
- Não. O dia está tão bonito, não acho que vai chover.
- Obrigada. Não preciso mesmo. É muita gentileza sua.
- Amanhã Thomas? É tão cedo, fique mais um pouco!
- Oh Deus!... Eu enrubesci feita uma adolescente tola, não achei que ele fosse fechar os olhos e me beijar do jeito que ele fez. Estou tão apavorada. Nem sei o que fazer agora!
- Se o mundo tivesse mais pássaros, teríamos menos joaninhas, o que seria uma pena.
- Não, agora não. Estou cansada.
Os três ainda corriam, carregando a escolhida nos ombros, procurando algum lugar para ir.
-Droga! Maldição! - resmungou Foxy - É como um maldito labirinto, a gente nunca sabe para onde ir e o que é uma armadilha. Tenho a impressão de que mesmo se chegarmos a um beco sem saída não iríamos perceber e ficaríamos insistindo eternamente no mesmo maldito caminho!
"Uma ponte" balbulciou Mellock, em meio às lágrimas "Eu ia fazer uma ponte, feita de luz, para poder sair daqui. Ah Thomas..." ela soluçou. "Como posso querer sair e ao mesmo tempo ficar? O que é que eu realmente sinto?"
-O que é que eu realmente sinto? - ecoou um dos homenzinhos, de mãos dadas a outro.
Um pássaro gigante piou.
Eles correram através de uma gigantesca porta de madeira.
Um salão cheio de quadros e livros flutuantes se abriu.
"Eu estudo aqui, nessa biblioteca." sussurrou Mellcok, de olhos arregalados "Ou devo dizer estudava? Me lembro de tudo. Parece que está acontecendo agora... Tudo de novo. Eu sinto tudo de novo."
- Alguém se esqueceu de arrumar isto daqui. - riu Haccu, desviando de um dos livros voadores. - Mas não imagino que alguém vá arrumar uma lembrança. Essa é sua mente, não é Mellock? É um lugar esquisito, sem dúvidas.
Eles continuaram em frente. Subiram pelas escadas e caminharam por um corredor comprido, cheio de portas. Toda vez que passavam por uma, ela se abria. Da primeira vez levaram um susto ao verem uma senhora, uma freira, do outro lado.
- Já fez seu dever Clara? - ela rugiu, de voz rígida, sem emoção alguma - Você sabe que está de castigo e que deveria estar lá embaixo esfregando o chão! Sinceramente, como uma menina assim pode ser tão relapsa?!
- Vamos sair daqui - disse Myshba, afastando-os dos dedos da freira que continuou gesticulando e vociferando no umbral.
Na próxima porta um senhor vestindo a estranha combinação de chinelos e terno de tweed, segurando um papel na mão.
- Expulsa Clara? Como assim expulsa, minha filha? Achei que as freiras tivessem apreciado o seu talento. Você lê o tempo todo e é esperta! Como pode ter sido expulsa?! O que você aprontou? O que isso quer dizer? Isso é simplesmente inadmissível! Não irei tolerar minha única filha expulsa da melhor escola que pudemos pagar!
"Por que o senhor sempre acha que fui eu quem errei papai?" sussurrou Mellock meio desmaiada nos ombros de Foxy. "Eu não fiz nada de errado! Eu juro."
- Estou desapontada, minha filha - gritou a mãe da próxima porta - Lutamos tão duro para garantir um bom colégio para você e o que nos traz de volta? Uma expulsão! Dá para acreditar? As freiras nos contaram sobre as suas molecagens. Você só machuca os que se importam contigo. Você não se importa conosco, com o nosso enorme esforço para te dar uma vida digna? Sinceramente Clara, você está ao menos nos escutando?!
- Não escute - disse Myshba, acariciando a mão da moça - Não dê ouvidos às más lembranças. Elas já passaram. Nós somos o seu presente, e vamos te proteger. Vamos seguir agora, não importa o que saia dessas portas.
- Podem protegê-la dela mesma? - Soou a voz da porta seguinte. Era Thomas, o homem da praia, o marido falecido, a chance perdida de esperança - Mellock querida, volte para casa. Eu estou te esperando. Volte.
"Oh sim, eu quero voltar!" ela respondeu, tentando descer "Mas você não existe mais. Nem sei o que pensar. Foxy, pode me soltar agora, eu quero conversar com meu marido. Me largue, por favor. Não me leve daqui, eu realmente preciso falar com ele!"
De coração partido Foxy seguiu firme pelo corredor.
- Isso não tem fim! - assustou-se Haccu - Andamos um bocado, mas não chegamos a lugar algum. E o que são essas malditas portas?
Com ruídos sonoros e estrépitos agudos as várias portas do corredor começaram a se abrir e os personagens de uma vida inteira de angústias e esperanças andaram livres pelo caminho, gritando e suspirando, uma sinfonia desesperada e assustadora. Quando os garotos tentaram correr seus pés ficaram pesados e pouco se locomoviam. Quando tentavam andar o corredor se esticava e se alongava até o infinito, tornando impossível de se chegar à qualquer lugar que fosse. E as vozes continuavam, gritando, protestando, assustando.
- Desempenho abaixo da expectativa. Para onde você está direcionando essa sua inteligência srta.Mellock? Onde está seu interesse nas aulas?
- Jamais! Você sabe que não é permitido. Se eu abrir uma excessão para você terei que deixar todos passarem. Isso está absolutamente fora de questão.
- E Deus castigou aqueles que desejaram! - gritou um padre furioso - Porque o desejo é o pecado! Viver simplesmente é o que aspiram os bons. Os objetos materiais, o luxo e o prazer carnal são simplesmente iscas do inferno para atrair-vos para o pecado! Quem deseja é capaz de qualquer coisa, qualquer maldade para conseguir o que quer, por isso você nunca deve aspirar a mais do que o que já tem.
- Um bocado de pessoas vai estar lá. Não vou deixar você usar a velha desculpa de novo. Você não está tão cansada assim e pode muito bem ir à festa comigo. Minha amiga Patrícia disse que quer te conhecer, e irão também aquela Maria de quem eu te falei e uma tal de Clarice. Soube que alguns meninos estarão lá tambem. Não é ótimo? Terão garotos. Um chamado Filipe, outro Diogo e um terceiro. Acho que seu nome era Thomas...
- Não acredito! É mesmo você Clara? À quanto tempo... Ah, como faz tempo desde a última vez que nos vimos. E você continua a ser um "rato de biblioteca"? Brincadeira, brincadeira.. Apelidos de infância nunca somem, não é mesmo? Mas me diga, eu soube que você está noiva! Meus cumprimentos! Parabéns Clara, felicidades! Quem é o grande sortudo?
- Sinto muito senhora... Me dói tanto dizer isto.. - comoveu-se o policial gorducho, de lenço na mão.
"Por que ele não disse logo?" gemeu Mellock "A expectativa é o que mata!"
-... Nem sei por onde começar. Eu sinto muito, sinto mesmo. Eles estavam a bordo do trem para Lonfito e algo terrível aconteceu......
"Já chega. Me diga. Eu preciso saber o que aconteceu!"
- O trem se acidentou.. Sinto muito. O seu marido estava a bordo. Me desculpe senhora, eu te ofereço minhas maiores condolências... Thomas... Ele. . . Ele faleceu está manhã. Eu sinto muito...
"Eu estava na porta de casa. Eu me lembro bem. O batente parecia desaparecer sob a minha mão. Não havia lugar no mundo em que eu pudesse me segurar."
Mellock chorou intensamente. Cobriu o rosto com as mãos e se deixou levar pela infelicidade.
- Porque aquele que deseja será castigado!!
- O mundo não é do jeito que você quer ou gostaria. Afundar em livros e fantasias é simplesmente estupidez. A gente tem que fazer muitas coisas de que não gostamos ao longo da vida. Resigne-se.
- Estou desapontado, Clara...
"Eu só queria que ele não tivesse ido... Como eu posso viver sem Thomas? Como eu posso fazer qualquer coisa sem meu marido?? Nós tínhamos tudo planejado. Construímos tantos sonhos juntos... Eu estava... "
- Sinto muito senhora Mellock - murmurou o homem de branco impecável, saindo da próxima porta, enquanto examinava a prancheta em suas mãos - ... A doença avançou muito com a morte de seu marido... Agora será impossível tentar qualquer coisa, o risco é muito grande... Me desculpe. É duro dizer isso, mas... A senhora perdeu o bebê.
"Eu quero apenas sair daqui.." chorou Mellck. Os três garotos choraram juntos, totalmente desamparados. Nenhuma saída existia agora. Se lembrar era sofrer. Eles não queriam mais estar ali, onde tudo era tenebroso e agressivo. Se abraçaram juntos na dor.
Uma última porta se abriu. O corredor se iluminou. A pequena figura de Myshba apareceu diante deles.
- Não escute - ele disse, abafando os gritos das outras vozes - Não dê ouvidos às más lembranças. Elas já passaram. Nós somos o seu presente, nós vamos te proteger.
O verdadeiro Myshba sorriu para o Myshba da lembrança de Mellock - Obrigado por nos lembrar disso - ele disse alegre. Uma réstia de névoa começou a rodopiar ao redor dos cinco, enquanto os soluços e as lágrimas iam aos poucos se acalmando - Acho que agora entendi como vamos sair daqui. É como você disse Mellock, construiremos uma ponte de luz. A luz são as boas memórias por aqui, então basta que você se lembre de quando foi feliz de verdade.
"Eu não acho que tenha sido feliz de verdade" sussurrou Mellock, enxugando as lágrimas. "Poderia tentar me lembrar de Thomas, de quando fomos mesmo felizes, mas acho que seria perigoso demais. Se ele voltar eu ficarei novamente presa."
- Você deve ter alguma outra lembrança feliz - disse Haccu com calma - Ninguém é totalmente infeliz. Nós te ajudaremos, quando você se lembrar poderemos sair daqui.
"Vocês acham que podemos sair? Então existe esperança? Acho que..." ela sorriu tristemente. "Acho que tenho sim lembranças felizes. São aquelas da nossa aventura, quando eu estava ao lado de vocês. Sabe... Eu sinto que quando estamos juntos, ao contrário do resto da minha vida, algo de bom pode acontecer. Que podemos desejar. Prometo que ouvirei então tudo o que vocês disserem, confiarei de agora em diante em vocês apenas."
- Sim. Pode confiar - falou Haccu, sorrindo gentilmente - Assim que encontarmos Karyn e os outros nós sairemos daqui. Basta desejar.
"Eu tinha tanto medo de não poder fazer tantas coisas que eu quis..." ela sorriu timidamente.
- A gente pode tudo.
A névoa cresceu e subiu em espirais. Dançou alegre à volta deles, sumiu com o corredir e se abriu em um enorme mar. Ondas gigantescas subindo e descendo, crescendo e caindo à volta.
De pé, sobre a água, Foxy gritou:
- Minha nossa! Onde é que viemos parar? - ele riu - Olhem só, estamos de pé na água! E eu posso até andar!! Que sonho magnífico, eu adorei isso! E o que é aquilo?
- Acho que é um barco - disse Myshba, de olhos arregalados.
- Que tipo de barco pode navegar aqui, com essas ondas enormes?
"Eu reconheço este mar!" gritou Mellock por sobre a maresia "Sei que já o vi antes... Oh, é claro! Estava em uma foto que eu vi quando criança... Ah, como eu quis viajar pelo mundo depois de ver a tal foto! Queria ver tudo, ver este mar."
- Você viu - disse Haccu - Nós vimos este mar juntos. Fomos até Maréa e as Ilhas do Sul,não se lembram?
Mellock riu, como uma criança. "Sim! Eu me lembro de tudo agora. Nós viajávamos, não é mesmo? Você era Haccu, e éramos todos companheiros de jornada."
- Não éramos, ainda somos. Isso é parte da jornada.
"Que parte esquisita então! Que nos levou até dentro dos pensamentos..."
Um barquinho se aproximou deles, como uma pintura que ganhara vida. Os viajantes exclamaram alto quando repararam atentamente nos borrões que o compunham. Ele era feito de livros! Tudo, desde o convés, o casco, o teto, a cabine, as cordas penduradas, os coletes salva-vidas, as velas brancas, o leme e o timão, tudo era feito de capas, páginas, couro, papel, letras, tinta! Eram os livros que Clara Mellock lera em sua vida, um enorme mar literário, na forma de barquinho.
Um velhinho surgiu de dentro da cabine e os convidou a subir à bordo. - Entrem, venham! Que surpresa agradável. Vamos, meu nome é Livreiro, e cuido de tudo isso que os senhores estão vendo! Nunca recebi visitas antes e.. oh! Se não me engano... - ele disse, apontando para a escolhida - Você é a tal que esteve lendo estes livros! Quem diria, quem diria! Entrem logo ou vão se molhar. Nunca esperava que você fosse nos visitar. Cuidado ali, pisem devagar, os livros são frágeis.
-Obrigado - disse Myshba para o velhote animado. Sem ter onde ficar ele se sentou sobre uma edição recente de Tempos Difíceis, feito de amurada, intrigado com a embarcação que cruzava o grande oceano lembrado através daquelas ondas gigantes.
- Nunca tive visitas antes! Até hoje, é claro, por isso não sei se é normal a Leitora visitar o Livreiro. Digam-me, é normal?
"Não" riu Mellock, que se sentara em um monte de livros de filosofia "Na verdade eu imagino que visitar as mentes não seja normal. É perigoso andar pelos sonhos.."
- Hum... - intrigou-se o velhote, coçando a barbicha. Os quatro perceberam que a sua roupa era também feita de livros, mas de livros infantis, coloridos, ilustrados, com animais falantes, fábulas de princesas e reinos mágicos. - O que eu ouvi dizer do Comedor foi algo diferente.. - ele comentou.
- Quem é o Comedor? - perguntou Haccu.
- Ah, é um monstro enorme, que engole todas as memórias ruins e o que deve ser esquecido com sua boca sem tamanho. Um sujeito simpático também. Quando fico cansado de navegar pelo Mar da Mente eu passo no Comedor para conversar... Grande sujeito..
Os viajantes se olharam com medo e estranheza.
- Bom, enfim, o que ele me disse foi que existiu esse cara (acho que era um homem que morava na Terra dos Sonhos. Mas isso foi o Mantícora quem falou. Sinceramente, eu não consigo diferenciar os humanos; são todos iguais para mim! (Exceto você minha senhorita. Conseguiria reconhecer minha Leitora até de olhos fechados, não, até sem olhos!!)) Bem, de qualquer modo, havia esse sujeito. Dizem que ele nos visitava de vez em quando. Ia e vinha por entre as Mentes. Eu nunca o vi, mas também pudera, esse lugar é enorme! A floresta de Mnéias não tem fim.
"Espere!" gritou Mellcok "Você disse que ele era da Terra dos Sonhos? Quem era esse sujeito?! Qual era o nome dele?"
- Não sei senhorita. Me desculpe, mas não faço idéia. Margareth talvez?
"Só pode ser o Velho Tom! O homem assassinado que estávamos procurando."
- Pode ser...Não saberia dizer. O Comedor nunca pronuncia bem as palavras... Sabem como é, a boca sempre cheia.
"Ele era o único habitante da Terra dos Sonhos que podia sonhar. Não duvido que ele tenha entrado aqui. No fundo, nós também entramos aqui para encontrá-lo... Na verdade para descobrir alguma pista de sua morte e do meu caminho como escolhida. Quem sabe ele não tenha morrido e está só preso aqui também."
- Não! - Disse Foxy se apoiando em um exemplar de O Nome da Rosa, na verdade uma parte do mastro - Já chega de mortos que não estão mortos. Procuramos pistas sobre o assassinato de Tom, apenas isso.
- Rastros de sua passagem... - disse Haccu - Quem sabe ele tenha deixado alguma coisa em Mnéias. Ao menos ele sabia sair daqui, já que visitava de vez em quando.
- Podem procurar por este sujeito à bordo de meu Põemaisum, meus amigos - disse Livreiro - Aqui nós podemos navegar para onde quisermos. Bem, no momento podemos apenas navegar por onde quisermos dentro da mente da senhorita Leitora. Se quiserem
procurar em outras mentes terão que sair daqui e voltar ao Bosque.
"Bosque?"
- O lugar onde as mentes se encontram. Não vejo nada de interessante no mundo real, mas se vocês quiserem mesmo sair daqui, este é o caminho.
"Não acho que alguma pista sobre Tom esteja aqui dentro da minha cabeça" disse Mellock, encantada com o absurdo de tudo isso. "Digo, eu imagino que eu saberia se eu soubesse algo sobre isso tudo. Então teremos que sair daqui, pelo Bosque, para procurar alguma mente que saiba algo sobre o que não sabemos."
- Agora, você está brincando conosco, Mellock! - disse Foxy - Está tentando nos confundir, não é mesmo? Não tem a menor graça.
- Chegando ao Bosque, encontraremos Karyn e os outros - disse Haccu, se lembrando que não eram os únicos que entraram em Mnéias - E de lá para o mundo real.
Mellock olhou para o oceano. Teve medo, mas sabia que tudo isso era um produto de sua mente. O que poderia acontecer de ruim e o que poderia acontecer de bom vinha exclusivamente dela. E tinha Myshba, Haccu e Foxy ao seu lado. À bordo do Põemaisum, navegado pelo Livreiro, eles seguiriam.
- Ali à esquerda é onde mora o Comedor - apontou Livreiro para um ponto do oceano. Os garotos não viram nada além de ondas, nenhum monstro devorador de lembranças. - Agora estamos quase chegando na Torre, segurem firme, pois essa parte do Mar da Mente é um tanto quanto habitada....
"O que você quer dizer com isso?" perguntou Mellock assustada. "Achei que estávamos indo para o Bosque. E que tipo de criaturas moram na minha Mente?"
- Não se preocupe, devem ser apenas Polvos que moram aqui. E se algo maior vier não há com que se preocupar: Contem comigo! Eu nunca deixaria a minha Leitora se perder e morrer aqui dentro. Afinal, eu adoraria que ela continuasse a ler mais! - disse o barqueiro, batento em seu peito, no exemplar velho e desgastado de Dom Quixote para as Crianças.
- Quer dizer que tudo o que vimos aqui é da Mellock? - gritou Haccu por sobre o som da água salgada sendo fendida pelo casco determinado do Põemaisum - Aquela floresta dos homenzinhos peludos, o corredor das portas, esse mar, o tal do Comedor e da Torre... Tudo isso é a mente dela? Quero dizer, se entrarmos na minha mente, teria tambem um corredor, um mar, um Comedor? Isso é exclusivo dela ou existe em todas as mentes?
O Livreiro deu um sorriso:
- Não sei. Rapaz, não faço idéia. Nunca saí daqui do meu mar. Acho que não, se bem que o Comedor uma vez comentou que haviam outros como ele... Mas o Mantícora vive se gabando de ser único, e olha que ele é quem viaja por outras mentes, então se alguém sabe disso esse alguém é o Mantícora.
- O que faz o Mantícora? - perguntou Myshba curioso - Se ele viaja pelas mentes ele é um tipo de pensamento telepático?
- Pensamento oquê? Acho que vou decepcioná-los de novo, também não sei a resposta para isso. Sei todas as palavras de todos os livros lidos deste barco, mas não entendo algumas coisas que funcionam aqui em Mnéias.
- Você tem uma memória impressionante - suspirou Foxy - e pelo tamanho do barco posso dizer que Mellock é uma leitora um tanto quanto insaciável. Você nunca quis saber o que existe além deste mar?
- Mas eu sei o que há. Eu já li todos esses livros. Não entendo nada, mas conheço muito do mundo de vocês. Não preciso entender, basta a mim falar, repetir e continuar a navegar. Navegar é preciso, viver não é preciso.
O Põemaisum chacoalhava enquanto borrifos de água salgada imaginada batiam no rosto dos passageiros.
"Quando eu morrer" indagou Mellock pensativa "O que será de tudo isso daqui?"
- Morrer? O que é isso?
"Você não sabe o que é morrer? Mas eu tenho certeza que já li diversos livros sobre o assunto, achei que você soubesse."
- Eu me lembro dessa palavra, mas não entendo o que significa. Acho que é algo que só existe lá no Mundo Real.
"Impossível! Morrer é como... Ser apagado, deixar de existir. Estar em um lugar e depois nunca mais estar. Vocês têm que ter isso aqui."
- Acho que isso é o que chamamos de Esquecer. Estou certo? Quando o Comedor come uma lembrança ela some. Ela estava lá mas depois não estará nunca mais. Só que isso não acontece conosco, personagens. Isto é, o Mantícora ou a Torre vão existir para sempre.
- Talvez quando alguma coisa "morre" por aqui - começou Haccu - ninguém mais se lembra que ela existiu. Então não existe a morte, só o Esquecimento. O Livreiro não pode dizer o que é morte porque quando ele a sentiu ele a esqueceu.
- Alxander Pope, meu caro - gesticulou o Livreiro - Tudo, menos esquecer. Acho que o nosso Esquecimento é pior do que a Morte de vocês.
"Mas e se eu morrer?" perguntou Mellock, por cima das risadas alegres dos garotos "E se eu sumir, e se eu for esquecida? O que acontece com vocês, todos vocês?"
O velho riu, virou o leme devagar e respondeu:
- Mas você nunca vai morrer.
- E agora chega de perguntas, - ele pediu - porque eu não sei resposta alguma e porque chegamos.
Ela suspirou.
A Torre apareceu sobre o Mar.
Era alta como uma montanha, feita também de rocha cinzenta. Havia absurdamente dois olhos azuis de cílios longos se destacando no alto, uma boca vermelha em sua metade e uma escada em espiral subindo pelo seu interior.
- Bom dia - ela disse, com sua voz feminina - Sejam, bem vindos. Eu sou a Torre. Em que posso ajudá-los?
- Queremos chegar até o Bosque, por favor. - disse Haccu, só então percebendo quem era seu interlocutor,
- Subam. - ela convidou - A escada vai levá-los para onde desejam ir.
- Adeus Livreiro - disse Myshba, pulando para a plataforma de pedra - Muito obrigado pela ajuda. Nunca esqueceremos de como foi navegar pelas lembranças à bordo do Põemaisum.
- Eu é que agradeço - Respondeu o barqueiro emocionado - Porque se você diz que não vai me esquecer, eu existirei para sempre! Vão, - ele riu - vocês têm ainda um longo caminho, não se ocupem comigo - Enxugou seus olhos úmidos com uma página de Fábulas de Esopo, feita de lenço de bolso e sorriu - Adeus Leitora! Obrigado pela visita, eu também prometo que nunca te esquecerei.
"Então eu também viverei para sempre." Mellock sorriu "Adeus meu querido Livreiro! De agora em diante sempre que eu ler um livro me lembrarei de ti."
Põemaisum se afastou devagar, esperando as velas paginais se inflarem com o vento imaginado, sumindo na bruma do Mar da Mente, entre as gigantescas ondas.
- Subam. - pediu a Torre - E conheçam os sonhos. Vocês vieram de fora? Devem estar perdidos então.
- Estamos um pouquinho perdidos sim - mentiu Foxy - Mas se você falou sério quando disse que o Bosque fica lá em cima então estamos no caminho certo.
Neste momento alguns tentáculos de Polvos saíram da água para espiar os viajantes e os garotos ouviram um belo canto, como o de uma sereia, vindo da neblina.
- É melhor andarmos logo - disse Haccu, vendo o Mar borbulhar e a cerração crescer. Os quatro subiram silenciosamente as escadas compridas, seguindo Torre acima.
Ficaram andando pelo que pareceram muitas horas, um degrau após o outro. Grifos começaram a voar ao redor da torre sem-fim. Mellock olhava para baixo e via sempre o Mar, os tentáculos e a plataforma, por mais que subissem.
- Onde estamos agora? - perguntou Haccu bem baixinho - Parece outro mundo. É tão silencioso. ...
Um dos grifos se aproximou deles, sem fazer ruído - O seu segredo é que vocês têm que avisar ao Habitante que vocês estão aqui. - ele revelou, ainda sem falar ou fazer som.
- Quem?
A bruma cresceu. Envolveu-os todos, engoliu o mundo, os degraus e ninguém via mais do que o branco.
- Eu sou o Habitante da Bruma, guardião deste lugar - veio a voz, poderosa, profunda, antiga.
"E eu sou Clara Mellock. Boa tarde. Precisamos passar e chegar até o Bosque, mas acho que estamos peridos."
Um elefante surgiu da névoa branca. Possante, gigante, envolvente. - Vamos com cuidado e em silêncio, - ele disse - pois este é o domínio dos Sonhos e dos Símbolos. Eu sou o Habitante da Bruma e serei seu guia. - E começou a andar devagar, subindo as escadas da Torre com paciência. Sem opção, Mellock seguiu o enorme elefante cinzento.
Os grifos haviam se multiplicado e um sem número de animais voadores os acompanhavam agora.
- São gatos com asas, cavalos voadores, serpentes aladas, licornes e grifos! - enumerou Myshba - Milhares de animais que só existiam em lendas e alguns inventados. Mais à frente eu imaginei ter visto um hipopótamo voador, e atrás de nós um condor real!
- Por que nós não voamos também? - perguntou Foxy - Seria muito mais fácil do que caminhar. Além do mais, se isto é um sonho nós podemos fazer o que quisermos. - dizendo isso duas asas brotaram de suas costas e Foxy começou a voar junto com os animais.
- Vamos - dizia o elefante, caminhando. Ao seu lado apareceram algumas raposas e chacais. As hienas e os lobos solitários seguiam atrás.
- Nunca chegaremos assim - disse Haccu - vamos por aqui - e dizendo isso subiu em uma banheira que flutuava ao lado - Para o topo por favor - ele pediu e a banheira passou a flutuar ao lado dos degraus.
- É melhor não nos separarmos - disse Myshba, mas enquanto falava um grifo o pegou nas costas e o levou voando também.
- O seu segredo é deixá-lo olhar-se no lago - o grifo disse bem baixinho.
- E o seu segredo - disse outro grifo para Haccu, na banheira flutuante - é que o sentido da sua vida é Não.
Um hipopótamo de asas enormes passou ao lado, concordando - Não - ecoou - Não.
"Isso não faz sentido" dizia Mellock "Devemos ficar juntos, mas nós estamos nos separando. Haccu deveria estar tirando a água da banheira, mas ele se limita a flutuar. Não, isto não está certo, sei que não está. A maldição vai cair sobre nós."
- Basta seguir o elefante - disse o próprio Habitante da Bruma lacônico.
Toda a grande manada de animais continuaou a subir pela escada da Torre, agora apenas uma série de degraus no meio da bruma branca. Um tabuleiro de xadrez passou voando no sentido inverso. Cinco homens carregando uma mortalha cruzaram seu caminho e um quadro roubado passou voando pelo céu, fazendo um lavrador imaginar que seu rosto estava fugindo de si.
- Mellock!- chamou Myshba, das costas do grifo - Nós não podemos nos perder de novo. É melhor tomar cuidado e nos concentrarmos em nossos objetivos.
"Sim, não posso esquecer." a escolhida repondeu hipnoticamente, sonhando "Porque eu sou Júlio César e preciso matar um homem."
- Mellock, vamos correr lá fora? - pediu a voz.
"Não, preciso seguir o Elefante."
O Habitante da Bruma seguia em seu curso, insondável, imutável, invencível.
Um homem agora caminhava ao lado deles. Thomas. Alegre, ele seguia carregando um carneiro, acompanhando a multidão de animais que subia as escadas. - Posso acompanhar-te? - ele perguntou. Mellock murmurou um sim e seguiram juntos.
"Achei que você estivesse morto. Me lembro de quando me avisaram... Foi terrível. Quando eu dormia, sonhava que eu havia mudado o curso do trem. Sim, eu sonhei que o descarrilhamento fora minha culpa e que você nunca mais voltaria porque eu lhe quis mal."
- Isso não deve ter sido bom para o bebê...
"Não, não foi, não foi... Ah Thomas, eu precisava te avisar que nossa filha morreu! Mas você não estava em lugar nenhum. Eu procurava por entre os seus ternos no armário, por entre teus papéis na escrivaninha, mas nada... Onde você estava?"
- Isso eu não sei, porque sou apenas lembrança.
"Claro, claro... Eu só estava tentando saber..."
Um sol surgiu no horizonte. Uma cascata de mel caía ao seu lado, brilhante e dourada no meio da névoa. O sonho continuou e continuou para sempre, com a benção do bispo do capuz.
Agora Myshba fora eleito rei e poderia decretar o fim da Torre, se não fosse a sua necessidade de fugir de uma topeira; Haccu estava tentando encontrar a topeira para salvar Myshba e fazer a Torre terminar, mas ele só achava uma pantera; Foxy sonhava com uma ponte que estava construíndo, para subirem mais rápido, só que faltavam pregos e os anões não entregavam os seus. Nada adiantava. Tudo era sempre o mesmo. O elefante na frente e a procissão atrás. Mellock conversava com Thomas, e uma vez sonhou que o beijava de novo. Mas se esquecera tanto do assunto da conversa quanto do gosto de sua boca.
Seguia-se a enorme procissão. Os gatos alados, os grifos, as panteras negras, a banheira flutuante, os quadros perdidos, o unicórnio belo, o cavalo mongol parecido com aquele que carregou Gêngis Khan, o bispo de capuz, as estátuas de faunos que ganharam vida e dançavam, as camponesas que buscavam suas ovelhas no deserto, os garotos que queriam jogar futebol, a criança que chorava, o hipopótamo, a coleção de meias, as palmeiras, as borboletas dardejantes que seguiam uma carroça com uma carcaça de porco e iluminavam o ambiente, todos eles seguindo escada acima, criações de uma mente sonhadora, triste e solitária que agora subia as próprias escadas de sua mente.
Mellock se tornara uma caixa de surpresas, uma boneca russa: ela estava sonhando que estava em seu sonho, dela em seu sonho, sonhando que sonhava que estava em um sonho de estar em seu sonho, dentro dos sonhos. Não sabia mais onde estava.
Os dias se passaram, os meses até. Mellock fora Júlio César, príncipe de Nárnia, espadachim samurai, Ulisses navegante, padre precavido, esquimó que espera os pinguins, corredora de maratona e filósofo chinês que sonha em ser uma borboleta ou pensa em ser uma borboleta que sonha em ser filósofo chinês (ou podia até ser um sonho que se transformava em borboleta ou filósofo chinês). Por três vezes jurou amor eterno ao seu marido.
As cores da escada eram sempre as mesmas. Cor de rocha.
O habitante da Bruma parou diante de uma porta.
- É aqui - ele disse. - Vocês chegaram até o Bosque.
- Não - disse Myshba - ainda não estamos prontos.
- Não - disse Haccu - ainda não achamos a topeira.
- Não - disse Foxy - É só um sonho, o Bosque é mais adiante.
"Eu ainda não entendi onde estamos." decretou Mellcok "Vamos ficar mais um pouco. Preciso perguntar muitas coisas para Thomas."
O elefante baixou a cabeça pensativo mas não se mexeu nem continuou a caminhada. Ficou ali, a espera de algo.
- O seu segredo - disse um grifo - É que você existe para sempre. E sofre com todos os destinos.
A bruma cresceu e se enrolou.
- Fiquem - pediu Thomas - Só até compreendermos os segredos das estrelas.
"Certo" propôs Mellock, para a tristeza do elefante "Vamos olhar para o céu e tentar descobrir. Ficaremos aqui."
Cão, gato, bruma.
As estrelas não apareceram, por isso eles esperaram.
E eles viveram felizes para sempre.
Viveram anos e anos lá dentro.
"É como se eu tivesse que me lembrar algo, mas não sei do quê..."
- Isso é um sonho? - perguntou Haccu - Estou preocupado e gostaria que fosse.
- Não - respondeu Thomas - Isso é verdade. É angustiante, mas real.
O elefante imóvel.
Todas as estrelas que existem no mundo.
"Você promete nunca mais me abandonar?"
De súbito algo aconteceu. Algo real aconteceu. Os animais tremeram e rebrilharam. Um movimento poderoso havia mexido com as estruturas daquele lugar. Alguém palpável e verdadeiro entrara ali.
- Mellock! - chamou uma voz bem clara e audível, diferente daquelas dos sonhos, que fez com que o resto tremesse, com que o despertar chegasse.
"Quem está aí? Quem me chama?" a escolhida perguntou, eanquanto acordava devagar e se lembrava.
- Karyn! - gritou Haccu.
- Olá Haccu - ela respondeu calma, saindo de dentro de uma fenda que abrira na própria matéria dos sonhos - Nós vamos sair daqui agora, o sonho acabou. - andou até onde os quatro ainda estavam caídos, pegou-os pelas mãos os levou até a porta onde o Habitante da Bruma estava parado - Muito obrigado senhor elefante, por guiá-los até aqui em cima. Agora nós vamos, sim?
- Adeus - respondeu o Habitante - E bons sonhos.
- O seu segredo... - ia dizendo um grifo para a feiticeira, mas um movimento comandatório desta o interrompeu.
- Obrigada, mas eu sei qual é o meu destino.
Os cinco cruzaram a porta, e estavam de volta.
Era o Bosque, onde eles podiam pensar com clareza!
"O que houve conosco este tempo todo?" perguntou Mellock preocupada "Estávamos presos em um sonho sem fim, era horrível! Andávamos sempre para cima, mas a Torre nçao acabava."
- Obrigado Karyn - disse Foxy - Mais uma vez você nos salvou, minha flor. - A garota moveu a cabeça afetuosamente.
- Não vão! - pediu Thomas, do outro lado da porta, ao lado de um unicórnio e de um corvo - Eu imploro Clara, não vá. Como eu posso viver sem você? o que é que eu posso fazer sem minha esposa?... Nós tínhamos tudo planejado. Construímos tantos sonhos juntos...
Mellcok fraquejou e caiu no chão. Ela não sabia o que responder.
- Não ceda Mellock! - pediram os garotos.
- Fique aqui comigo - pediu seu marido.
"Não... Eu não posso escolher!" ela chorou. "Isso é duro demais para mim, por favor não me façam escolher!"
- Clara...
- Não Mellock, não!
...
- Por que você faz isso? - perguntou Karyn impetuosamente. - O que você quer com ela? Por que nos prende aqui?
Thomas a encarou com estranhamento - Eu quero viver com minha esposa para sempre - ele disse - Sinto tanta falta de...
- Silêncio! - ordenou Karyn - Não estava falando com você.
- Quero apenas me alimentar!- veia uma voz tenebrosa, de cima da porta onde Thomas ainda esticava seu braço para Mellock. Uma gigantesca borboleta colorida se empoleirava nos umbrais, brilhante e ameaçadora - Vocês têm muitos sonhos, muitas lembranças, muita vida. Eu me alimentarei de vocês quando tiver fome. Por isso os prenderei aqui.
"Mnéias!" gritou Clara Mellock "Então você é essa floresta que nos aprisionou, que me devolveu todas as lembranças dolorosas?"
-E você é quem? A escolhida? Patético. Foi tão fácil te controlar, como uma marionete tola a qual basta um puxão das cordas para dominar. Se você tivesse sozinha aqui não sairia jamais. Sorte sua que a feiticeirinha te salvou.
"É verdade. Eu sou fraca e tola. Ainda bem mesmo que eu não estou sozinha."
- Então você admite a sua fraqueza? Qhui qhui qhui! - o monstro riu de uma maneira assustadora, fazendo com que todos dessem um passo involuntário para trás.
"Não me envergonho disso. Na verdade, eu queria te fazer um pedido. Precisamos encontrar o velho Tom."
- Um pedido? - rugiu Mnéias, se levantanto e erguendo as asas brilhantes como lantejoulas - Você não tem este direito! Este é meu domínio, minha morada, minha fortaleza. Sou um dos Inomináveis antigos e nunca aceitaria ordens de uma humana ridícula, raça miserável que aprisionou-nos todos! No dia em que eu sair daqui o mundo todo será preenchido por sonhos e pesadelos, assim como era nos tempos primitivos, antes de vocês aparecerem! Eu dominarei invicta!
- E é por isso que você nunca vai sair daqui - disse Foxy, erguendo as mangas da camisa e fechando os punhos - Você fala muito para uma borboleta gigante..
- A nossa magia é a mesma dos Antigos que te prenderam aqui, neste mundo - disse Karyn, dando a mão para o garoto - O que quer dizer que iremos sair daqui de qualquer maneira. Você pode nos ajudar ou atrapalhar, essa é a hora da sua escolha.
-Vocês não tem nada a me oferecer, pois eu já comando o Inconsciente. Nenhum trato será feito com humanos patéticos.
"Por favor," pediu Mellock "nada de brigas. Podemos resolver isso."
- Nada de brigas, nada de brigas! Com quem vocês pensam que estão falando? Eu sou Mnéias, eu sou o absurdo e o sonho, eu sou aquilo que irá devorá-los! - e dizendo isso, a enorme borboleta monstro abriu sua boca asquerosa e tentou engolir a todos, sugando o mundo.
- A palavra de comando Mellock! - gritou Karyn, tentando se agarrar a algo - Havia uma palavra de comando no Livro dos Sonhos, que podia mudar Mnéias, tirar a sua máscara!
- Nenhuma palavra me atingirá, eu sou invencível! Estou cansada de vocês, bruxos, cheios de feitiços e palavras absurdas para nos aprisionar. Eu era uma das Inomináveis, até que fui aprisionada com este nome ridículo, que odeio tanto, por uma das suas rainhas feiticeiras dos tempos antigos! Me condenaram a servir aos sonhos e às lembranças, eu que antes era mestra! O dia de minha vingança será pavoroso. Será o dia do Juízo Final, quando os sonhos viverão entre os Homens.
"Os sonhos eu chamo!" gritou Mellcok sobre os urros "As lembranças, pesadelos, idéias, memórias, loucuras, saudades, conversas, pensamentos, e todos os habitantes deste mundo das mentes. Eu te comando Mnéias, através do seu nome e da palavra "Palavra", tua ordem de comando. Quero que percas a tua máscara de ódio e nos ajude!"
- Jamais! - guinchou o ser - Eu deveria ter enlouquecido o criador deste livro maldito, destruído sua mente, enviado tantos pesadelos que ele nunca mais poderia dormir! Como pude deixar esse livro terrível existir?! Como pude deixar os segredos se espalharem?!
Com um silvo agudo, Mnéias derreteu e brilhou, como piche ou lava escorregadia, que se dissolve no ar. Seus urros se silenciaram e tudo se acalmou. Em seu lugar uma minúscula e bonita mariposa flutuava.
- Eu tenho diversas caras. Muitos sonhos e loucuras habitam em mim. Coagida pela palavra "Palavra" que me domina, fui derrotada. Por uma humana. Pela escolhida, detentora dos poderes dos Antigos.
"Me leve até o velho Tom" Mellock ordenou "Nos leve de volta para casa"
- Vá na frente - disse Karyn - Nós vamos procurar por Neyleen e Teobolt. Pode deixar os garotos comigo, vá atrás do seu homem misterioso. Estaremos por aqui, no Bosque.
- Nós ficaremos bem - disse Myshba, indo atrás dos outros - Mas você tome cuidado.
"Podem deixar, encontrarei Tom. Vão na frente e não se preocupem. Até mais"
Mellock se viu sozinha de novo, diante de uma série de árvores verdes que filtravam a luz. Havia uma serena calma naquele lugar. Uma pequena mariposa pousada em seu ombro.
"Isso se parece um pouco com Neru" ela lembrou. "Só que um pouco mais soporífera e perigosa."
- Não durma aqui - sussurrou Mnéias - Ou ficará presa. Entre logo em uma das mentes. Vá até aquela da esquerda, perto do arbusto. Tenho certeza que uma lembrança ou um vestígio do Velho Tom habita lá.
"Não vejo nenhuma mente ou entrada para lá, só árvores."
- Siga em frente - a mariposa ordenou. A escolhida avançou titubeante. - Mais. Mais ainda. Vá em frente, não tenha medo.
"Não vejo nada aqui" disse Mellock, mas ao dar o próximo passo ela teve a súbita sensação de cair em um buraco. O mundo do Bosque sumiu, o chão desabou abruptamente aos seus pés e sem aviso ela caiu no meio de uma sala de aula. "O que é isso? Minha cabeça está girando, que lugar é esse?"
- Não era o que você queria? Você acabou de entrar em uma das mentes. - Mnéias disse. Mellock olhou em volta, para os outros alunos, o quadro-negro e o professor. - Mas Tom não está aqui. Isso é uma outra lembrança. Vamos logo - pediu a mariposa, voejando à frente - O que você procura fica em outro pensamento.
"De quem é essa mente?"
- Não há tempo para perguntas tolas. Você queria encontrar algo e eu estou te mostrando o caminho.
"Você..." disse Mellock para uma garota sentada ao seu lado. Ela era a única que não parecia interagir com o resto do sonho, sentada atrás pensativa. Era também a mais nítida, por assim dizer, a que se destacava por parecer mais lúcida e fixa dentro da sala. "Esse sonho é seu, não é? Quem é você, qual é o seu nome?"
A menina olhou para a escolhida de trás de seus compridos cabelos pretos. Encarou-a com suspeita e reserva.
- Meu nome é Marina. E eu não gosto desse sonho. Você é parte dele também? Que tipo de maldade você veio causar?
"Nenhum tipo, eu juro. Eu estava procurando por um homem e pensei que você pudesse me ajudar. O nome dele é Tom. Velho Tom, da Cidade dos Sonhos."
A garota tirou nervosamente o cabelo do rosto. - Eu sei quem ele é. Acho que sei. mas não me lembro com clareza... Eu estou mesmo sonhando?
"Está. Mas você vai despertar em breve, tenho certeza. Será que você poderia me levar até este Tom?" a escolhida perguntou, sentindo que sua busca finalmente chegava à algum lugar.
- Acho que posso fazer isso - Marina disse, enquanto a neblina entrava pelas janelas e pela porta aberta - É só eu me lembrar, não é? Se eu me concentrar nas minhas lembranças você vai poder cehgar lá...
"Tom era um homem da Cidade dos Sonhos" disse Mellock, pensativa, segurando as mãos da garota "Então para conhecêce-lo você devia ser de lá também. Mas eu me lembraria do seu rosto Marina, tenho certeza."
- Não se deixe enganar - sussurrou Mnéias - por uma simples aparência das memórias. Elas são enganadoras ao extremo.
A neblina branca cobriu tudo. Sumiu a sala, sumiram as pessoas. Aos poucos as sombras foram ganhando formas e viraram uma floresta.
Mellcok se assustou ao olhar para frente. Onde antes estavam as mãos de uma garota agora se encontrava as de uma mulher madura. Seu rosto era conhecido e trazia em si as marcas da desconfiança, que foram talhadas ao longo de uma vida inteira.
"Madalena!" gritou Mellock "Agora eu te reconheço, como não suspeitei antes?! É você então que se lembra de Tom?"
- Me desculpe por não contar nada quando estávamos lá fora... no mundo real. Daqui a pouco eu irei acordar e me amaldiçoarei por ter deixado alguém ver as minhas memórias mais bem guardadas. É melhor você ir então, enquanto eu estou certa do que faço.
Mellock assentiu séria. Soltou as mãos de Madalena, e entrou na floresta escura.
Por trás dos arbustos e das árvores a mulher desapareceu. Ela, que fugira de tantas coisas antes, que abandonara diversos nomes, que não conhecerá lar ou amigo, não conseguiu escapar ao próprio inconsciente. Uma dia seu sonho a traiu, e revelou à Clara Mellock seu segredo, escondido em uma profunda selva.
- Mais á frente! - gritou Mnéias - Pule os troncos e corra! Sem parar, ele está muito próximo, posso sentir! Que gosto delicioso tem uma memória antiga, que aroma, que perfume! É uma parte de Tom, é o próprio Tom, é uma lembrança! Não pare.
Mellock tropeçou e caiu uma série de vezes e pôs-se a correr mais determinada ainda. A mariposa em seu ombro ria de regorjizo enquanto ela tentava encontrar seu caminho afastando galhos espinhentos e gravetos tortuosos.
A mata se abriu subitamente em uma clareira verde. A escolhida parou em sua borda, arfando de cansaço. No meio das árvores estava sentado um homem alto, de bigodes brancos sob um nariz proeminente, com um livro duro nas mãos e um rosto sério e compenetrado.
Mellock sentiu vontade de rir assim que uma única frase pulou de sua boca; uma única identidade era possível para o estranho e no meio do absurdo e da ilusão ela encontrou uma voz calma e firme com a qual perguntou alegremente:
"Velho Tom da Cidade dos Sonhos, eu presumo?"
- Não - respondeu o homem, lendo seu livro - Sou a Lembrança de Tom, já que este está morto agora - e virou-se para ela, sorrindo sagaz - Mas algo me diz que você já sabia disso, e que foi essa a razão pela qual você entrou aqui em Mnéias, apesar de todos os perigos.
"Sim, o que fiz foi uma loucura." ela disse, ainda sem ousar se aproximar.
- Sem problemas. A bem da verdade, eu não gosto de pessoas que não se arriscam a fazerem coisas tolas e aventurescas. Você não quer se sentar? Aceita um chá?
"Sim, adoraria um chá."
- E sobre o que você quer conversar?
"Para ser sincera... sobre a sua morte."
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4 comentários:
Meu Deus, isso é gigantesco!!!
Eu sei.... Tenho complexos de gigante...snif *chorandonocantinho*
Sabe, você está se saindo um escritor bastante respeitável, senhor Charles.
Amei esta parte.
Um escritor bem respeitável eu diria!!
coisas a falar: UAU!
e.... Que medonha a torre! Vi algo muito macabro e suave ao mesmo tempo na minha cabeça....
*batendo palmas*
Parabéns chan!
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