quarta-feira, novembro 29, 2006

Uma idéia de história

Assistindo um dia a um programa de Tv na rede Cultura, uma idéia me pegou. Foi assim, de jeito. Quero falar algo sobre o qual venho pensando faz alguns meses.
O programa era "O Poder do Mito", com Joseph Campbell sendo entrevistado por Bill Moyers. Sim, é o programa que originou o livro que estou lendo. Afinal, lendo, cheguei na parte interessante que ouvi na Tv faz um tempo. Transcrevo agora:

Moyers: Um dos meus mitos favoritos é uma história persa, que diz que Satã foi condenada ao Inferno porque amava demasiado a Deus.

Campbell: Sim, essa é uma idéia básica do islamismo, a de que Satã é o maior dos amantes de Deus. Há várias maneiras de pensar em Satã, mas esta se baseia na questão: Por que Satã foi lançado ao inferno? A históra convencial diz que, tendo criado os anjos, Deus disse-lhes que não se curvassem senão diante dele. E então criou o homem, que ele concebeu como uma forma mais elevada que os anjos, pedindo a estes que o servissem. E Satã não se curvaria diante do homem.
Pois bem, isso é interpretado na tradição cristã como sendo o orgulho de Satã. Ele não se curvaria diante do homem. Mas, na história persa, ele não se curvaria diante do homem por causa do seu amor a Deus; ele só se curvaria diante de Deus. Deus mudou os sinais, você percebe? mas Satã estava tão envolvido com o primeiro conjunto de sinais que não poderia transgredi-los, e em seu... não sei se Satã tem ou não um coração... mas em sua mente ele não podia curvar-se diante de ninguém, exceto Deus, a quem ele amava. Então Deus diz: "Saia da minha vista".
Bem, o pior dos padecimentos do Inferno, a julgar pelo que sabemos dele, é a ausência do Bem-amado, que é Deus. Então, como Satã se mantém no Inferno? Pela memória do eco da palavra de Deus, que lhe disse: "Vá para o inferno". Isso é um grande indício de amor.

Moyers: Bem, na vida, não há dúvida de que o pior dos infernos que alguém pode suportar é estar separado de quem ama. Por isso me tocou o mito persa. Satã é amante de Deus...

Campbell: ... e está separado de Deus; essa é a sua verdadeira dor.


O que eu imagino ser esta história é o seguinte: o inferno de Lúcifer é não ser amado. Aquém das noções de tempo e vida após a morte, vamos considerar que Paraíso e Inferno sejam aqui, neste momento.
Ser amado e amar nos leva ao Éden; ter cortados os elos que nos ligam aos outros é a condenação total. Falo em amor, e quero dizer o sentimento de um modo amplo:
Amor por um pai, por irmãos, por amigos, por namoradas, por desconhecidos, por um lugar etc.
Amar algo é abrir-se para algo. É perder os limites e as barreiras e ser um onde antes havia "dois", havia "bem e mal", havia separação.
(Isto seria pensar um pouco como Ipásia talvez?)
Shaitan (forma islâmica de Satã) ama sem limites, mas é um amor barrado, rompido, irrealizável (afinal, como ser amado pelo Criador total, o Uno supremo?). Isso cria o Inferno, onde, ao invés do fogo, nós temos a fria solidão, a desesperança total, a falta de tudo.
Curiosamente, outro dia encontrei um poema do William Blake que falava sobre o que, para mim, era a mesma coisa (desculpe por ele ser em inglês):

The Clod & the Pebble

Love seeketh not Itself to please,
Not for itself hath any care;
But for another gives its ease,
And builds a Heaven in Hells despair.

So sang a little Clod os Clay,
Trodden with the cattles feet;
But a Pebble of the brook,
Warbled out these metres met.

Love seeketh only Self to please,
To bind another to its delight:
Joys in anothers loss of ease,
And builds a Hell in Heavens despite.


William Blake

Tradução livre: O amor busca prazer não para Si / Nem a si mesmo tem cuidado / Para outro dá seu bem-estar / E cria um Paraíso no desespero do Inferno
Assim cantou um pedaço de terra (ou chão, ou lama) / Amassado pelos pés do gado / Mas um seixo do riacho / Cantou os seguintes versos bem certos.
O amor busca apenas a si felicitar / Prender o outro a seu deleite / Goza em ver o outro no mal-estar / Cria um Inferno do desprezo do Céu.

Falando rapidamente, o amor que o Clod of Clay (chão de lama) canta, é o amor realizado, ou o amor abnegado, que busca apenas amar e se felicita ao abrir-se para o mundo. É o amor que cria o Paraíso em nós, que nos enche de esperança e acaba com o desespero do Inferno.
Já o amor cantado pelo Pebble (o seixo) é o amor que busca possuir (não sei se está correto dizer assim, mas é o que pensei), que busca prender e firmar ao invés de libertar. O desprezo do Céu, a recusa de Deus em amar Shaitan de volta, o amor que não consegue existir, se torna então o Inferno.
Satã está preso porque ama demais algo que... não está ali. Algo que não pode ser preso em palavras ou ações. Lúcifer não pode amar Deus porque nada pode amar Deus. E isso o prendeu ao Inferno, onde é sempre desesperador e desolado, sem nada a iluminar a sua dor.
Um pouco paradoxalmente (mas é só impressão) o que pode salvar Lúcifer é justamente o Amor. O Amor que abre e liberta, que cria o Paraíso no meio do desespero.

Talvez, mais do que tudo, é disso que a gente precisa.

Moyers: Gosto do que você diz sobre o velho mito de Teseu e Ariadne. Teseu diz a Ariadne: "Eu a amarei para sempre, se você me mostrar como sair do labirinto". Ela lhe dá então um fio enrolado, que ele vai desenrolando à medida que penetra no labirinto, e depois o segue de volta, até encontrar a saída. "Tudo o que ele tinha era o fio. É tudo quanto você precisa".

Campbell: É tudo o que você precisa, um fio de Ariadne.

Termino com uma fala de uma personagem chamada Penélope do (eu sei, é esquisito) seriado Lost. (Por sinal, foi essa personagem que me deu vontade de criar a Penélope do Sark)...
"All we really need to survive is someone that trully loves us."

3 comentários:

Artur disse...

Já que falamos sobre fio de Ariadne, leiam Todos os nomes.

muriel disse...

Bonito. Nunca tinha pensado na história de Satã sob essa ótica.
Campbell é o máximo, não?

Charles Bosworth disse...

É sim, adoro ele!
Por sinal, eu achei no Poder do Mito aquela "sua" frase:
"Além disso, n
ão precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável encontramos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo."