sábado, março 17, 2007

Imagine uma Biblioteca



Fren e Mellock sentaram-se juntos, lado a lado, de frente para uma das janelas fechadas. Por todos os lados só se via comoção, agitamento, conversas e aparências preocupadas.
Todo o Relógio se mexia. Mas sera? Por outro lado? E se? O tempo parecia ter voltado, concentrado em seus trâmites piramidais complicadíssimos.
Enquanto isso, desinteressados de todo, em um canto qualquer - voltados para uma janela fechada, como se disse - sentaram-se calmas duas pessoas. Um senhora e uma senhora, respeitáveis. Um cientista por excelênica e uma leitora por amor.
Gostariam de estar em outro lugar? Sim. Agora mesmo já usavam a sua imaginação para criarem uma - ou melhor, várias, uma série de - bibliotecas.
- Imagine uma biblioteca que flutua por sobre o mar - disse Fren - Que se move ao sabor das águas.
- Mas os livros não vão molhar? - perguntou Mellock.
- Não, pois cada um deles é protegido por uma redoma de vidro. Assim, mesmo se durante uma tempestade acontecer de um dos livros cair na água ele será levado, intacto, até alguma praia distante pelo mar.
- Acho que é assim que funciona a biblioteca flutuante - descobriu Mellock - Seus livros são levados às pessoas pelo mar. Tem algo de predestinação nisso: nunca somos nós que escolhemos os livros; são eles que chegam até nós, protegidos pelo vidro da redoma. Um vidro feito na cidade de Veneza - ela sonhou - Porque é daí que vem a biblioteca: originalmente ela era uma parte do Palácio dos Doges, mas, com medo que o mar subisse e molhasse seus livros, um do doges tomou a única saída sensata...
- ... criou uma bilbioteca que flutuasse. Assim, - continuou Fren - mesmo que o mar subisse, seus livros estariam protegidos, pois iriam acompanhar as ondas. O único problema para o tal doge era que o mar acabou levando sua bilbioteca embora, e hoje ela percorre o mundo com seus livros em redomas.
- Hoje em dia, o bisneto do bisneto do bisneto daquele doge, passa os dias nas praias, pescando livros que foram levados por tempestades. Quando uma pessoa encontra um livro assim na praia, sabe imediatamente a sua precedência: a Biblioteca Flutuante. O problema é encontrar algum modo de devolver!
Os dois se olharam, com um certo brilho divertido nos olhos cansados. Estavam ainda escutando a balbúrdia a sua volta?
- Imagine uma biblioteca em um vulcão - disse Fren - O seu encarregado, um rapaz valente, tem que resfriá-la o tempo todo para que os livros não se desmanchem. Para isso ele usa seu amigo, um hipopótamo-da-neve que pode soprar neve e proteger os volumes do fogo.
- E durante as erupções?
- Eles escondem todos os livros em uma câmara anti-erupção, feita de um metal resistente à lava, assim que o vulcão começa a chacoalhar.
- Parece trabalhoso. Por que teriam uma biblioteca em um vulcão?
- Porque... - hesitou Fren - lá fora existem corvos devoradores de papel. E existem livros que só podem ser lidos próximos ao calor do magma, por causa das suas letras mágicas.
- Então que tal uma biblioteca que fica no céu, sem nunca descer? Lá em cima o inventor da máquina de vôo joga seus livros para o chão, usando pequenos pára-quedas, é claro.
- Mas ele estaria perdendo seus livros!
- Sim, mas isso não importa. Ele tinha livros demais em sua casa. Tantos que os usava no lugar de móveis: tinha uma cama-de-livros, uma mesa-de-livros ao lado de cadeiras-de-livros e armários-de-livros. O que o inventor quer é espalhá-los.
- Que tal... - Fren sugeriu - Uma biblioteca de um sábio chinês?
- Ou uma em que os livros são borboletas.
- Exatamente. O sábio chinês construiu um canteiro de flores gigantesco! É essa a sua biblioteca: com as flores ele atrai milhares e milhares de borboletas, que são os livros. Imagine elas voando por todo canto.
- Cada asa é uma página - Imaginou Mellock - Assim, o sábio espera as borboletas pousarem em seu braço para lê-las. Na cidade vizinha, todos fazem o mesmo: colocam muitas flores em todo lugar, para sempre poder ler o que as borboletas tem nas asas quando elas pousam para beber néctar. É a cidade mais florida do mundo! Sem falar na biblioteca mais colorida de todas.
- Se você quiser ler um livro de aventura, basta pôr uma flor vermelha na poltrona que uma borboleta escarlate pousará ao seu lado; um livro de mistério é uma borboleta preta, atraída por uma flor escura - e assim por diante.
- Seria uma cidade animada. Todos procurariam páginas de histórias que sairam voando por aí.
- E uma biblioteca zen, como seria? - perguntou Fren.
- Seria apenas um monge silencioso contra uma parede branca de frente para um único livro...
- ... cujas páginas seriam sempre levadas pelo vento...
- ... e todos os dias, pacientemente, o monge as recolhe e coloca no chão, folha a folha, página ao lado de página, só para o vento espalhar tudo de novo!
- O vento sempre carrega as folhas para longe, brinca com elas, as rodopia até o teto! E atrás vai o monge, em seu trabalho sem fim.
- E se a biblioteca fosse uma árvore? Ou uma floresta inteira. Cada árvore é um tema, uma história diferente.
- Cada galho é um capítulo.
- E cada folha é uma letra.
- Ou uma palavra.
- E quando chega o outono as palavras caem aleatóriamente, e um outro monge paciente as recolhe e tenta assim recriar em ordem a história da árvore.
- Imagine um biblioteca no fundo do mar, em que, ao invés de livros, temos conchas, com pequenas manchas formando notas musicais e partituras. Cada concha seria uma canção, e todas estariam guardadas no leito do mar.
- Como seria uma biblioteca de tigres?
- Teriam coelhos nas estantes, para eles comerem...
- Terrível. E se sempre que um tigre caçasse e apanhasse um coelho, este teria que contar uma história em troca da própria vida.
- Seria parte da evolução. O coelho que fosse o melhor contador sobreviveria.
- Como Sherazade: narrar para viver.
- Até hoje, toda vez que alguém captura um coelho ele conta uma história em troca da liberdade. Existe um homem que sai pelo mundo caçando coelhos, em busca da melhor história. Ele os ouve exercendo uma arte ancestral que tiveram que aprender para escapar dos tigres.
- Imagine o livro do Destino - disse Fren - escondido na Torre dos Anjos, no pátio central onde nenhum homem pode pisar, que conta o que aconteceu, o que está acontecendo e o que acontecerá!
- Não dá para escapar? - perguntou Mellcok.
- Você pode fazer o que quiser, pode mudar o seu futuro, mas o Livro mudará também. Dizem que você pode, inclusive, usar um lápis para alterar o que quiser: passado ou futuro.
- Seria o Livro mais cobiçado do mundo!
- É por isso que ele é guardado pelos Anjos, que não tem ambições como os homens.
- Imagine uma biblioteca feita de areia. cada grão é uma letra. Você pode pegá-los e escrever alguma coisa. Dizem que tudo o que for escrito neste local de areia mágica se torna real em alguma parte do deserto.
- Seria uma biblioteca tão cobiçada quanto o livro do Destino. A menos que as Leis da Areia dizem que você não pode criar algo que beneficiará a você mesmo, ou que, paralelamente, cause algo ruim para alguém se, com isto, você se beneficiar. Não funcionarão nem acordos como "eu escrevo para você e você escreve para mim".
- Assim você vai iniciar histórias que serão reais em alguma outra parte do deserto. Histórias que somente outros poderão terminar.
- Imagine uma biblioteca que fosse uma mina.
- Feita de pedra-papel? - disse Mellcok - Que você teria que extrair das paredes subterrâneas com muito cuidado; porque a pedra-papel tem várias camadas, várias páginas. O trabalho dos mineiros seria baseado na maior cautela, para separar as páginas direitinho e com isto obter um livro de pedra.
- Imagina uma biblioteca cujos livros só podem ser lidos à noite...
-... Porque as letras são vagalumes!
- Que pousam lá atraídos pela tinta invisível que permeia os livros de segredos. É uma biblioteca só de livros invisíveis...
- ...Que, portanto, só podem ser lidos quando os pequenos insetos pousam sobre a tinta e formam as letras. Mas teria que ser um livro grande...
- ... sim, eles têm grandes páginas e uma grande fonte, para podermos diferenciar as letras formadas de vagalumes.
- É um pouco como a biblioteca de borboletas, só que mais brilhante.
- E quem escreve nas borboletas? Elas nascem assim?
- É o velho. O velho sábio chinês plantou aquelas flores e passa o dia todo escrevendo nas borboletas que chegam até o seu campo. Assim ele pode espalhar as histórias por onde quer que existam flores.

Era uma vez Fren e Mellock. Era uma vez você e eu. Paramos um dia para inventar bibliotecas e sonhar. Agora eu percebo que não posso parar, as histórias são maiores do que nós. Vamos aproveitar essa estrada e sorrir juntos. Então, Imagine uma Biblitoeca...

4 comentários:

Ozzer Seimsisk disse...

Você esqueceu de mencionar a parte mais importante da história: a parte do aventureiro que percorre o mundo, ouvindo as histórias dos coelhos e dos sapos (como pode ter se esquecido dos sapos...?!) e anotando em diversas folhas de papéis, que às vezes escapam com o vento até a biblioteca do monge zen, e às vezes misturam-se às folhas da biblioteca de árvores. E, na verdade, esse aventureiro é o discípulo do sábio chinês, e sempre voa até ele, montado em uma borboleta gigante coberta de contos de fadas, para que juntos possam escrever nas asas das borboletas que acabaram de sair dos casulos...

Conte a história dos sapos, Cham, por favor!

Pioux's disse...

a dos sapos que contavam histórias?

Utak disse...

aposto que na biblioteca dos sapos você tinha que convencê-los de que eles tinham que contar as histórias pra você...

muriel disse...

como, como vc inventa tudo isso?