quarta-feira, agosto 15, 2007

Rumo à Esperança III


Há um forte em Johnston. Está lá desde o início do domínio austrímano sobre Kerala, a província mais úmida, quente e tropical do subcontinente. Hoje os austrímanos já foram embora, e seu forte está vazio, exceto por um grupo muito preguiçoso de crocodilos do rio, que ocupa as antigas salas de reunião, os baluartes e fossos em Johnston. Deitam de barriga para cima o dia todo e tentam - sem sucesso - apanhar um dos macacos que entram pelas janelas altas.
Conta-se na cidade de Sikh que um padre vindo da capital (meio surdo e ocupado em orações) refugiou-se do calor da estrada no forte de Johnston. Passou um dia inteiro lá, entre os crocodilos, sem perceber nada e achando que os austrímanos passaram a falar uma língua idólatra e selvagem de Kerala. Quando o encontraram, o padre passava sermões aos animais, aos berros!, impressionado com a falta de disciplina militar do forte. Testemunhas concordam fascinadas que em momento algum os crocodilos do rio tentaram devorar o pobre padre, meio velho, meio surdo, e que pareciam inclusive escutar interessados a palavra do homem de Deus.
Esta história circula ainda hoje pelá província de Kerala, onde o calor faz as mangas apodrecerem sozinhas. As que são colhidas a tempo vão parar em caixas junto a outros mil temperos e verduras suculentas, empacotados pela Kerala Trading Company, e enviadas em caravelas inseguras para cruzarem os mares austrais cheios de perigos na forma de piratas, corsários, tubarões, calmarias, fiscais inescrupulosos, trombas d'água e índios canibais. Ao final de tão estafante jornada, o selo da Kerala Trading Company é tido como prova de segurança e compremetimento, e seus presidentes são homenageados em salões e chancelarias do mundo todo, enquanto os marinheiros - estes sim os verdadeiros heróis - deitam-se no chão do porto, como mortos, a suspirar de cansaço e das lembranças das sereias que viram na Costa Verde.
Porém, esses homens valentes são reconhecidos na cidade de Bastók, cujo porto está sempre repleto de marinheiros caídos, vindos de mundos de sonho e trazendo mercadorias igualmente fantásticas. Pois Bastók, ou Lonfito, ou Azamar, é mais uma dessas cidades incríveis que descem como contas de um colar, cujo bazar tem a qualidade de transitar entre países enquanto se muda de barraca: o rapé de Salem ao lado dos doces coloridos de Rushi, junto às botas e sapatos (alguns encantados) da terra onde é sempre inverno e neva; lá se vêem talismãs de bons auspícios dividirem espaço com longas cadeiras dos campos de Voai, aqueles pontilhados por castelos e catedrais, e com livros que contam a verdade do mundo escondida em símbolos indecifráveis. Mercadores aos berros, mercadores obscuros, danças folclóricas, feijões encantados, mapas do tesouro, punhais envenenados, peixes coloridos, ladrões e músicos, criadores de conselhos, cristais da mais alta montanha do mundo, na mais alta cordilheira do mais alto continente: quase tudo do mundo pode ser encontrado nas ruas de Bastók.
Só não se vêem mercadorias de uma cidadezinha no extremo mais ao leste do mundo, ao final de uma estrada pontilhada de diamantes por onde ninguém passa. Essa é a cidade conhecida por jovens aventureiros e sonhadores como Esperança, a terra feliz onde não se chega nunca.
Esperança é uma cidade linda. Toda quarta-feira há uma missa na igrejinha de barro na praça do meio. O burgomestre, todo vestido de amarelo, recebe as pessoas na porta, com um abraço sincero e uma barrinha de chocolate. Todos os idosos de Esperança se reúnem na igrejinha, mesmo os que perderam a fé. Para lá vão as velhas costureiras, os antigos soldados reformados, os padres caducos e os avós sorridentes. Todos se sentam em silêncio, bem comportados, como se fossem mesmo para mais uma missa comum.
Porém, quando o burgomestre distribui a todos a pequena hóstia encantada, uma mudança incrível entra em ação: todos os gentis idosos e senhores começam a perder as dores e cansaços e se transformam em crianças novamente! Sapecas, começam a pular os bancos da igreja e a brincar gritando, tirando qualquer dúvida de que Esperança é uma cidade encantada, onde o milagre do rejuvenescimento é possível.
Na quinta-feira, que dia trabalhoso, crianças correm pelas pedras, sobem em todas árvores e puxam os rabos dos gatos e cachorros que encontram nas casas. O burgomestre, em seu pomposo uniforme roxo, recolhe os antigos senhores e senhoras e os leva para a aula, sob a árvore principal. E toda semana repete os mesmos ensinamentos tradicionais.
Mas nem tudo é um milagre de camaleões festivos. Esperança é uma cidade triste também. Porque toda sexta-feira, às quatro horas da tarde, em ponto, ao fim do quarto repicar do sino da igrja, morre alguém em Esperança. Cai silencioso, no meio da rua, com um sorriso no rosto, parecendo ter sido arrebatado com infinita gentileza por um anjo da morte luminoso e feliz. O final da tarde de sexta-feira é dedicado ao simples funeral, onde todos os habitantes da cidade cavam a terra macia enquanto as donzelas, caladas e puras, velam pelo corpo, que pode ser tanto jovem quanto velho, moço ou moça, realizado ou desejoso. O burgomestre, vestido de marrom, cor da própria terra, cava com as mãos, e não é raro rolarem lágrimas por seu rosto redondo.
Ao final da tarde o falecido já está enterrado e começando a brotar. Porque em Esperança todos se transformam em árvores, coelhos, idéias, flores. Quando sábado chega já há um novo habitante na cidade e tudo volta a acontecer, mesmo que de um modo diferente, pois lá tudo sempre retorna e muda o que aconteceu e o que foi.
Por isso tantas histórias diferentes e impossíveis de Esperança, a cidade que conhece todos os caminhos do mundo.

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