Karyn estava tão furiosa andando de um lado para o outro e desenhando estranhos símbolos no chão que achei melhor sair de seu caminho e deixá-la falar sozinha.
- Eles acham que podem me dar um castelo qualquer, na ponta do reino, e se esquecerem de mim? Mas eles vão ver só! Tenho algo que fará com que nunca mais pensem pouco de mim.
Era óbvio que preparava algum feitiço, apesar do Arquimago tê-la proibido. Sua fúria parecia inconsolável, nada a deteria.
- Porque temos que provocar o Arquimago e a bruxa Labwa? - perguntou Fren, tentando remetê-la à razão - Não é sensato conseguirmos mais inimigos agora. Lembre-se de sua missão pacificadora.
Karyn virou-se e encarou-o com olhos duros e frios.
- Eles têm Foxy - ela disse - E eu o quero de volta.
Um pássaro grande e preto pousou de súbito no centro do pátio do castelo. Trazia uma mensagem presa ao pescoço.
Hoshy apanhou-a com cuidado e leu em voz alta:
"Se faz notícia de que a maga Karyn Rackeloque experimentou magia proibida neste local. Este é um aviso para que pare, ou sofrerá as conseqüências da Academia."
Karyn pegou o papel e olhou para as letras desenhadas em tinta roxa. Aos poucos, o papel foi se dissolvendo sozinho em suas mãos até sumir em uma fagulha.
O pássaro preto ainda ficou por um momento, como se precisasse bisbilhotar, mas, em vista da resposta, achou muito sensatamente que seria melhor dar as costas e sair voando rapidinho.
Karyn escolheu uma porta do castelo, de tamanho médio e madeira firme. Começou a inscrever runas em sua lateral e a espalhar pela superfície um estranho pó vermelho.
- Você acha que é mesmo seguro desafiarmos a Academia? - perguntou Hoshy, tentando abordar o assunto delicadamente.
- Eu sou mais forte que todos aqueles velhotes da Academia, posso tomar minhas próprias decisões - e, como se enxotasse os outros para fora de sua área de trabalho, pediu - Vigiem o castelo. Acho que alguma ofensiva pode chegar a qualquer momento.
Nós subimos até a torre alta e ficamos olhando os campos perfumados que não pareciam acabar.
- Precisamos fazer alguma coisa - disse Fren, olhando com cuidado para mim - Eu sei que ela é sua irmã, mas está descontrolada.
- Ao mesmo tempo é porque ela está apaixonada - eu disse - Temos que pensar que para ela os pensamentos mais racionais não tem valor. Ela está seguindo seu coração, talvez ele a leve por um bom caminho.
- Acho que podemos pedir à ela que descanse um pouco - disse Neyleen, apoiando-se na pedra escura do castelo - Talvez se a convencermos de que Foxy ficará bem.
- Foxy está com Labwa - disse Hoshy em um sussurro - Pelo que sabemos dela isso significa apuros. Labwa vai dar um jeito de fazê-lo se apaixonar por ela, e com isso eu até entendo a pressa de Karyn em voltar à Cidade Estrela.
Nós quatro permanecemos parados no alto da torre, pensativos. Estávamos preocupados, mas sem conseguir uma solução. Se ela agia por amor... como faríamos para negar-lhe a fúria e a paixão?
Então, aos poucos, bem longe, uma linha brilhante apareceu no horizonte.
Descemos correndo para avisá-la. Karyn ainda desenhava na porta, que agora estava vermelha do pó misterioso.
- Um exército vem vindo! - gritei - Enorme, centenas de homens, todos de armaduras cintilantes!
- Não podemos enfrentar todos! - disse Fren - Eles têm armas, cavalos e máquinas de sítio. Seria melhor se nos entregássemos e deixássemos de lado o confronto inútil. Obviamente estão nos perseguido por causa de sua insistência em continuar a praticar magias proibidas.
- Então a Academia resolveu me enfrentar por meios não-mágicos. Isso mostra que estão com medo de mim. Além do mais - disse Karyn, olhando carinhosamente para Fren - Elas são proibidos apenas pelos níveis tradicionais dos magos, os quais eu já ultrapassei faz um bom tempo. Então, tecnicamente, não há nada mais proibido para mim. Isso não significa que eu acabarei machucando alguém, ou usando a magia para meus próprios interesses, sou esperta o suficiente para evitar as armadilhas fáceis.
- Isto não é por interesse próprio? - perguntou Fren, exasperado, de braços abertos.
- Não - disse Karyn bem séria - eu estou fazendo meu trabalho como Escolhida.
Ouvimos de dentro da praça do castelo o barulho do marchar dos soldados, e nos encolhemos assustados.
- Devem ter usado um encanto de sete-léguas para chegarem aqui tão rápido - suspirou Karyn - Não tive tempo de terminar meu feitiço na porta vermelha.
- Como vamos enfrentar um exército inteiro de armas e armaduras? - disse Hoshy.
- Nosso poder não é suficiente - disse Neyleen, enquanto pensava que suas adoráveis árvores não podiam crescer ao redor do castelo inteiro a tempo de nos protejer, muito menos oferecer resistência séria à machados e espadas.
- Não se preocupem, - disse Karyn, com um sorriso faceiro no rosto - Eu posso dar contar deles.
Desenhou no chão um enorme círculo com símbolos interligados. Em tempo, pois os sitiantes já pisavam duro na trilha que subia a colina
- Entrem todos no círculo.
Não foi preciso repetir a ordem. Entramos assutados para dentro do círculo de giz e vimos um evento surpreendente ocorrer.
Karyn ergueu os braços e moveu-os para a frente. Pediu a Neyleen que cantasse e uma canção começou a sair de seus lábios. Como se a acompanhasse, disse palavras de um feitiço. E sorriu, de um modo que eu nunca havia visto Karyn fazer.
Tudo no castelo tremeu. Cada objeto chacoalhou com um súbito pressentir de magia. O exército enviado pela Academia estava quase alcançando o fosso quando um jarro, que até então estivera próximo à minha cama, saiu pulando pela praça, sem quebrar. Seguiu-o uma mesa quadrada que estava na cozinha e três baldes dos estábulos. Aos poucos, mais objetos foram se movendo, como se por conta própria, e saindo à luz do dia para se enfileirarem diante do portão. Um armário inteiro se despreendeu da parede, todas as vinte vassouras que tínhamos. As camas começaram a se desmontar em várias partes que podiam passar pelas portas e se reuiniram também no pátio. Então, o grande portão que nos separava dos soldados lá fora se desprendeu e num ronco se libertou dos trincos, avançando contra o exército invasor, seguida de todos os objetos soltos que puderam avançar. Os soldados se viam às voltas com potes e cadeiras que os atacavam sem parar, caindo em suas cabeças e encontrando pontos vulneráveis em suas armaduras. A massa invasora foi empurrada para trás e teve um instante de susto em que não pôde agir.
Ao nosso lado, mais partes do castelo se desmontavam e começavam a andar sozinhas para a arena de batalha. Vi as cinco portas do pátio se desprenderem das paredes, exceto a que estava coberta de runas e pó vermelho, e voarem no ar. Vi as janelas desencaixando e seu vidro perigoso brilhar na luz.
- Você vai matá-los se continuar com isso! - gritei - Pare Karyn, pare agora!
Mas ela não me ouvia. Virei-me para Neyleen que continuava a cantar a canção que dava força ao feitiço.
- Pare de cantar ou aqueles soldados vão morrer! Não pode deixar que os objetos continuem a atacar.
Em seu rosto, pude ver que Neyleen não tinha mais controle da própria voz e que, mais do que eu, desejava parar de cantar e não podia.
- Por favor Karyn, não faça isso.
- A Academia me desafiou. Eles precisam saber do que sou capaz.
As vigas do teto se desprenderam com um rugido e avançaram, potentes como aríetes.
Ao redor do círculo tudo se destruía e o castelo se desmontava em uma velocidade assustadora. Pior era ver os escombros organizados e competentes atacarem os soldados, que agora abandonaram qualquer honra e fugiam desesperados.
- Me deram este castelo para que se livrassem de mim. Vou mostrar o que uma bruxa poderosa pode fazer por amor, vou usá-lo como um instrumento de minha vingança.
- Karyn, por favor, escute à si mesma. - implorou Fren, enxugando o suor de sua testa em um lenço claro - Isto não pode ser justo, não pode ser certo. E a sua missão?
Karyn olhou-o de soslaio.
- Tenho perfeito controle de mim mesma. Posso provar. Não vou matar aqueles soldados.
Mesmo assim os blocos da parede se soltaram; gigantescos quadrados de pedra maciça animados. Organizaram-se em grupos de três, como um corpo, pé e cabeça. As armas e os emblemas do salão central do palácio servindo-lhes de espada e escudo.
Andavam para a frente com leveza e força, destruíndo as armas de sítio que o exército trouxera em um movimento único.
O castelo se desmontava. Víamos cair as paredes e avançarem em campo aberto as pedras e vigas de madeira. O estábulo, completamente desmontado, persguia os soldados que haviam conseguido se livrar dos outros objetos e chegado à pequena trilha da colina.
O topo triangular e púrpora da torre alta caiu quando sua parede se levantou para a guerra. Não chegou a tocar no chão, pois em um movimento único voou para onde a cavalaria tentava escapar.
Tudo rugia, era uma enorme tempestade! Com facilidade todas as partes que compunham o castelo ganharam vida e saíram para o campo. Nós, dentro do círculo de giz, só podíamos olhar atônitos, secretamente assustados e fascinados.
Aos poucos a tempestade subsistiu e voltamos a escutar somente um silêncio desolador.
O castelo desapareceu. Avançara todo em batalha e não podíamos acreditar em nossos olhos. Nós e uma porta vermelha, era tudo o que sobrara.
- Vou voltar para a Cidade Estrela, não podem me impedir - disse Karyn, e sem mostras de querer que a seguíssemos, abriu a atravessou a porta com as misteriosas runas e pós. Pela minha experiência com magia nestes últimos meses, não fiquei surpreso que ela não tenha saído do outro lado. A porta levava a algum outro lugar. À Cidade Estrela, talvez.
quarta-feira, abril 23, 2008
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2 comentários:
Ah sim, Haccu é o narrador. Achei que seria simpático comentar.
Acho que ficou claro, afinal, Karyn só tem um irmão.
Que mêdo dela! Mas, afinal, ela conseguiu derrotar o exército sem matar nenhum soldado? Eu queria saber.
Gosto de saber coisas pelos seus textos.
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