terça-feira, novembro 11, 2008

Ghungsgot Thonpo (the high sky)

Na Caxemira, é assim que chamam os anjos.
Um violão e um pouco de mingau, é tudo o que basta. Os anjos não resistem e descem à terra para cantar um pouco, e se se tem sorte e paciência pode-se ouví-los cantar nas manhãs claras em que tudo parece flutuar.
E algum som mais alto do que um sussurro, têm-se esta impressão, irá desfazer tudo. Por isso as notas do violão têm de ser humildes e plácidas, mas não lentas.
Alguns homens sabem chamar os anjos e à eles dá-se o nome de dançarinos. Dizem que os dançarinos são essas pessoas especiais que nunca mentiram na vida. Só assim podem chamar uma criatura tão pura com música.
Da última vez em que estive na Caxemira, muitos anos depois da guerra e da fúria, vi um dos últimos dançarinos chamar um anjo. Era uma manhã clara, em que a chuva tinha limpado a atmosfera e tudo parecia brilhar de novo. As núvens escuras, o céu azul o quase arco-íris aparecendo. Ele tocava o violão, o prato de mingau raso no chão.
Ela usava branco. Cantava e isso bastava.
Ouvíamos seu vestido bem branco - como era branco aquele som! Seus dedos finos se desfaziam como água de um riacho, seu cabelo era a luz do rouxinol; e seu rosto era esguio, a boca bem aberta, a voz celeste.
Não podíamos parar de tocar de modo algum, a música a mantinha aqui, o violão era o fino fio dourado que nos prendia juntos. Um anjo na terra e dois homens encantados.
A Arte do contato entre essas duas esferas vem de muito tempo atrás. E começa com o rei de Chu, um dos únicos reis do mundo que nunca mentiu. Tão bom ele era que teve que enfrentar sozinho o próprio exército.
E derrotou-os. Derrotou todos os soldados naquele dia, pois conhecia cada homem, cada armadura e cada corredor ou passagem secreta de sua fortaleza.
Nunca um homem sentira tanta solidão quanto o rei de Chu naquele dia.
No ápice de seu desespero, quando o pobre rei perdera qualquer esperança e já era tentado pelo rio caudaloso e branco que rugia ali perto, as nuvens se abriram no céu. Só o suficiente para passar uma brecha de luz.
Ali, ao lado do rio que mais parecia feito de leite do que de água, o rei de Chu se tornou o primeiro dançarino, ao ouvir a voz de um anjo cantar a canção capaz de unir os dois mundos. O dos homens, imperfeito; e o dos anjos.
Por que os céus o escolheram para ouvir aquela canção naquele dia ele nunca soube. Abandonou o que sobrara de suas posses, o que não era muito. Ali, nas margens do rio de leite e da fortaleza destruída, uma mensagem lhe foi transmitida. E ele sentia que era seu dever transmití-la aos que pudessem aprender.
O dançarino de Chu construiu um violão de madeira e crina e tocou a canção que ouvira. Ao seu lado, um prato de mingau como oferenda; a única comida que encontraria em um raio de quilômetros. O anjo que apareceu para ele naquele dia foi o primeiro a responder ao chamado de um dançarino, e tinha pés de dois, flutuava como sal e também cantava iluminadamente. Seu rosto era desejo, sua boca era redenção. Começava a tradição dos dançarinos com a fluidez de um corpo de luz e a certeza de uma andorinha voando.
Perguntei ao anjo que vímos naquele dia, no vale da Caxemira:
- O que é Verdade?
E ela continuou a cantar. De algum modo, aquela resposta tinha toda razão.

Nenhum comentário: