Diante da neblina branca senti um pouco de medo. O que estaria escondido além, que tipo de gigante teria uivado na noite escuro?
O barquinho virou para leste, tentando escapar da tempestade.
- Aproveitem bem este vento! - gritou o capitão Pigmaleão - Vamos sair logo daqui e quem sabe escapar com vida desse maldito mar.
O uivo se repetiu, ainda mais intenso e desta vez à nossa frente. Os marinheiros que estavam debaixo das cobertas subiram para o convés, e com eles veio Percival, que mesmo assustado já tinha a intenção de sacar sua espada.
Algumas sombras - do que podiam ser rochedos - surgiram na nossa frente. A tripulação entrou em um transe e passou a agir como se fosse um organismo só, pensando em conjunto e agindo em união. Mal o capitão dava a ordem ela já se via cumprida. As cordas, as velas, tudo agia organicamente: todo esse tempo em mar dera aos marinheiros um senso de equipe inigualável, e foi este sexto sentido que nos salvou de nos espatifarmos de encontro às rochas.
Já para mim e Percival não restava nada a não ser sair do caminho e torcer para que tudo desse certo. Desviávamos dos rochedos marinhos com perigosa proximidade. Mal os víamos surgir de dentro da neblina e já era preciso sair da frente ou os ventos fortes nos mandariam para o fundo, como destroços e corpos afogados.
Todos os marinheiros rugiam de fúria e puxavam as cordas, pois as nossas vidas realmente dependiam disso!
Ficamos nesta corrida por quanto tempo? Horas ou minutos, não consigo dizer. Todos estavam aterrorizados pelos uivos que o vento produzia; cada sombra, cada parte escura do mar era mais um motivo para nos assustarmos. Tudo era um torvelinho que girava veloz e nos tirava qualquer noção da cabeça. Onde estávamos indo? Onde era a frente, onde era atrás? Neblina e tempestade. Espuma e mêdo.
E por fim, o navio parou.
Tão súbito quanto havia começado estávamos de novo parados, no centro de uma densa massa branca. O vento havia-se ido.
- O que houve? - perguntou Percival, e pelo seu tom de voz, percebi que intuía o mesmo que eu: não havia terminado, mas talvez alguma coisa estivesse apenas começando.
- Que diabos está havendo com o mar esta noite? - berrou o capitão Pigmaleão, só para se arrepender depois quando sua voz resoou alta demais no recém-instalado silêncio.
Olhamos para cima ainda um pouco assustados. Lá, em um rasgo de céu que aparecia, podíamos ver a lua. Redonda e brilhante, a lua cheia sorria para nós.
- Definitivamente algo de macabro está acontecendo esta noite - disse o capitão - Primeiro a tempestade e agora a calmaria. O mar está um espelho de uma hora para outra! E sem vento algum! Estamos tão perdidos que eu poderia até sugerir que entramos em alguma parte do Oceano controlada por uma feiticeira poderosa e que somos, com todo o respeito, apenas ratinhos em sua armadilha.
A neblina começou a se abrir e pudemos ver o mar de novo. Tudo estava calmo, exatamente como Pigmaleão dissera. O próprio ar era parado e frio.
De súbito, do alto da gávea, a cegonha cinzenta gritou aquelas três palavras:
- Barco à vista!
Todos corremos para bombordo e olhamos o horizonte escuro. Lá, onde a fina e fria linha do mar encontrava o céu, uma embarcação muito branca e muito distante aparecia parada.
- Quem pode ser? - Percival perguntou.
- Não há de ser boa companhia - retrucou Pigmaleão mau-humorado - E eu não pretendo esperar para ver quem possa ser. Vamos homens, para longe desta droga de mar encantado!
Todos se retiraram rápidos para suas posições enquanto eu fiquei olhando o navio branco. Apesar de parecer parado, pude perceber... seria um certo movimento?
- Capitão Pigmaleão! - gritei - Acredito que a embarcação esteja vindo em nossa direção, e em alta velocidade. Basta olhar de novo e perceber que ela já avançou boas posições.
Todos se inclinaram novamente à bombordo para olhar.
- Mas será possível! - gritou o capitão - Como andam sem vento?
- Não importa o que seja o navio branco: vamos recebê-los! - bradou Percival, pulando sobre a amurada - Amigos ou inimigos, que venham! - e apontou seu florete para o barco que se aproximava.
- Eu considero que o melhor seja escaparmos - falei, cobrindo-me com minha capa escura.
Os marinheiros olharam para as velas e o cordame, desejando escaparem também. Porém, nenhuma brisa batia no pano, nenhum movimento era detectado nos cabos. Desesperançados, baixaram seus olhares para o chão.
- Vamos fazer o que pudermos - resmungou o capitão Pigma.
Esperamos, segurando nossa ansiedade enquanto o navio avançava cada vez mais e em uma velocidade muito superior à de um navio normal. Todos os marinheiros estavam à postos, esperando a menor das brisas para nos tirarem dali. Mas e se viesse um vento? Seria ele superior ao vento encantado que movia o barco branco?
Eu e meu companheiro estávamos com os olhos atentos para a escuridão noturna.
- Veja como se move veloz. Chegará à qualquer momento.
As espadas pularam das bainhas mas permaneceram escondidas, por trás de nossas costas arqueadas.
- Chegou a hora da nossa brigada provar seu valor - sorriu Percival.
- Olhos atentos para qualquer detalhe! - eu sorri.
O navio branco se movia claramente em nossa direção. Agora, um leve vento soprava, mas não o suficiente para escaparmos de sua aproximação. Porém, Pigmaleão e os outros marinheiros já tentavam fazer o barco se mover.
- Faremos o que pudermos, vocês aí fiquem de prontidão!
Como um fantasma, o navio emparelhou com o nosso e parou. Que brisa, que vendaval movia aquilo? Podia se mover à vontade pelo mar encantado.
No alto tombadilho, um pouco acima de nossas cabeças, víamos sua tripulação andar de um lado ao outro, vestidos da mesma cor clara e gelada da embarcação. Na proa, parado de pé sobre a madeira em uma impressionante demonstração de equilíbrio, estava o homem mais estranho que já conheci. Tudo ao seu redor tinha a cor do gelo e da neve, inclusive o longo casaco que vestia e o cobria por inteiro, feito de penas de ganso. O homem se aconchegou no casaco macio e sorriu para nós.
- Será que encontramos dois gatinhos perdidos aqui no meio do mar? - ele perguntou, tão baixinho mas ao mesmo tempo perfeitamente audível de onde estávamos.
- E quem teria a honra de nos visitar? - perguntei, levantando de leve o chapéu emplumado.
- Ora, se não me conhecem, porque não deixarmos as coisas assim? Que graça teria o mistério se ele fosse revelado? Que curioso ainda amaria o universo se soubesse tudo sobre ele? Vou deixar os dois gatinhos se perguntando por enquanto.
- Venha aqui então, falar isso de perto! - gritou Percival, deixando-se irritar facilmente - Quero ver que nome minha espada vai dar para você!
O homem no casaco de penas inclinou a cabeça e pareceu entediado.
- Eles são encrenca, de fato são! - murmurou o capitão Pigmaleão se aproximando de nós - Mas parece que tem algum truque na manga, porque não estamos avançando um centímetro com essa brisa fraca e eles não parecem se esforçar nem um pouco para nos acompanhar. Estou com uma louca vontade de sair daqui, por isso vamos tomar cuidado e agir direitinho.
- Antes que vocês continuem a cochichar para sempre - disse o estranho de branco - Eu tenho uma pergunta.
- Faça-a, meu caro - respondi - É costume dos viajantes que se encontram em alto mar uma certa camaradagem e que se auxiliem no que podem.
- Minha nossa, - ele sorriu - Temos um gentil aqui.
Percival e Pigmaleão me encararam devagar, como se suspeitassem de mim agora.
- Minha pergunta seria a seguinte, e é na verdade muito simples: Vocês têm alguma idéia de onde encontrar o calendário perdido ou estão seguindo sem pistas?
Segurei toda a minha surpresa, como um bem espião profissional.
- Não tenho idéia do que está dizendo - repliquei.
- Então porque seu amigo parece tão assustado? Ah sim, vejo que não são os dois que conseguem disfarçar as emoções. Isso me diverte muito, me diverte sim. Mas onde estávamos? Ah sim, pelo visto vocês não tem nenhuma pista, não é mesmo?
- Não, não sabemos por onde começar - admiti, olhando furioso para Percival - Mas espero que você nos esclareça mais sobre o assunto.
- Oh sim, sim, vocês adorariam que eu o fizesse, não é mesmo? - o estranho no navio branco respondeu, ainda equilibrado na ponta da proa, ainda vestindo o grande casaco cor de gelo feito de penas de ganso.
- Porém - ele continuou - Não o farei. E não o farei simplesmente porque me considero seu rival em tal empreitada. Se vocês quiserem alguma pista, aí está: eu também estou atrás do calendário onde o segredo está escondido.
Percival chacoalhou a cabeça.
- Que raios de pista é essa! Não nos ajuda em nada.
Calma Percival, eu disse pondo a mão sobre a sua. Vamos com calma.
- Mas estou muito mais bem informado do que vocês, não estou? - disse o estranho sorrindo - Estou decepcionado, esperava mais do serviço de inteligência do Reino dos Gatos. Vocês não sabem nem quem o roubou do tesouro, não é mesmo?
- E você sabe quem foi? - perguntei sem esconder meu espanto.
- Claro - ele disse, como se não fosse nada, como se fosse algo ridículo - Como eu disse, estou decepcionado com a falta de informação de vocês.
- Senhores - sussurrou Pigmaleão, voltando ao nosso lado - O vento está voltando. Sinto que logo poderemos tentar uma fuga.
- Diga-nos quem foi o traidor! - exigiu Percival - Diga-nos tudo o que sabe!
- Já lhes falei o que penso sobre mistérios, não foi?
Eu saltei para dentro do navio branco e movi meu florete na direção do pescoço do estranho.
- Acho que chegou a hora de abrirmos o jogo.
- Concordo inteiramente - murmurou sorrindo o sinistro homem do casaco de ganso - Estamos os dois atrás do calendário e estamos os dois um tanto quanto perdidos, desejando mais pistas. Porém, - e ergueu seu dedo - eu estou um pouco mais à frente...
- Eu não consideraria assim - sorri, dando a entender que a espada apontada ao seu pescoço estava pronta para agir.
- Ora, ora... Tal violência não será necessária.
E então o vento voltou a soprar com força. A tempestade que havíamos experimentado com tanto terror parecia estar voltando.
- Ela está de volta - sorriu o estranho por detrás do meu florete - Eu aconselharia que o senhor voltasse ao seu navio, embora se realmente quiser sobreviver à esta tempestade em particular eu o aconselharia a abandonar esta casca de noz e ficar aqui mesmo. Que tal ser nosso prisioneiro então?
- Não vejo nenhum motivo para piadas - bradei avançando com a espada. O homem saltou e desapareceu no ar, reaparecendo atrás de mim, pisando em cima de uma corda como se não pesasse nada.
- Lancelot - gritou Percival e quando olhei para o navio este estava balançando e dançando nas ondas.
- A maldita tempestade está de volta rapazes! - gritou Pigmaleão, sinistramente sob a lua cheia - Façamos o que sabemos fazer melhor! Puxem e empurrem, que o inferno está com fome esta noite!
- Lancelot! - gritou Percival novamente. As duas embarcações se afastavam uma da outra - Pule de volta!
- É melhor você correr - sorriu o homem do casaco de ganso, equilibrando-se sobre a corda como se andasse em terra firme, mesmo com o navio branco balançando cada vez mais.
- Não sem antes conseguir uma informação! - gritei agitando minha espada - Fale: quem roubou o tesouro dos gatos?
- Acho que seu nome começava com A - o estranho fingiu pensar, um dedo sobre os lábios - Ou seria com B? Ele era um gato? Era um porco, uma lebre? Não consigo me lembrar.
Ataquei-o rapidamente, mas por mais que eu tentasse não podia atingí-lo. Não conseguia ser mais veloz que o homem no casaco macio e nem adivinhar qual seria seu próximo movimento.
Desequilibrei-me com um solavanco da embarcação. Olhei para Percival e vi o barquinho com seus marinheiros enlouquecidos afastar-se cada vez mais de nós. Haviam muitas ondas, muita tempestade entre os dois. Será que eu conseguiria nadar?
- Eu avisei. Você deveria ter ido antes.
Ignorei o estranho e me dependurei na amurada. O oceano estava escuro e revoltoso, parecia pronto para me engolir em poucos segundos. Ao longe, a figura branca de meu companheiro se destacava, acenando no meio do vendaval.
- La. ce.. ot! - ele gritava.
Os homens do navio branco corriam de um lado a outro, também preocupados com a tempestade.
- Com ela não se brinca - sentenciou o estranho - Esta é a pior das tempestades, no pior dos mares. Sinto que você não tem nenhuma alternativa a não ser nos fazer companhia neste navio. Senhor Lancelot, honrado felino à serviço de sua Majestade - ele pronunciou, em uma falsa reverência - O senhor terá o prazer de ser nosso prisioneiro.
Bem distante, a embarcação de Pigmaleão se afastava, lutando contra as ondas no que parecia ser uma batalha perdida. Cerrei os olhos, esperando que o pequeno barco não se rompesse destruído naquele instante. Dois braços me seguraram e me levaram para dentro. Enquanto me empurravam pela escada, ainda pude ver o homem de casaco de pena de ganso, tranqüilo no meio da tempestade, olhando alguma coisa no horizonte.
quinta-feira, dezembro 04, 2008
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