domingo, dezembro 21, 2008

E os dias conjugados da mesa e da cadeira

No dia seguinte, ao acordar, Rufus se dirigiu à pequena taberna gerenciada pelo marido de Florentina e sentou-se em uma mesa de onde podia observar o salão e ao mesmo tempo ficar de fora dos acontecimentos. Estava cansado pela noite mal dormida. Seus olhos grudavam em seu rosto, se recusando a abrir, mesmo quando o taberneiro trouxe seu café-da-manhã.
Lancelot devia estar ainda mais preocupado. Afinal, tinha visto o vizir do Reino dos Gatos, possívelmente o felino no qual mais confiava, andar escondido pelas sombras próximas à estalagem.
O que poderiam pensar disso? Certamente o vizir Chacaunac não seria o... Não, não tinha mais o que pensar! Este pensamento torturara os dois viajantes durante todo o final de noite que passaram na estalagem, impedindo-os de dormirem, obrigando-os a se revirarem de novo e de novo nas colchas macias.
Cansado de pensar seguidamente o mesmo pensamento, Rufus havia se levantado e ido até a taberna para comer alguma coisa.
Então um rapaz de cabelos compridos e pretos sentou-se ao seu lado. Ele parecia ainda mais cansado do que Rufus, com uma palidez anormal iluminando seu rosto fino.
- Também teve uma noite difícil? - Rufus perguntou, recebendo de volta apenas um olhar de desprezo.
Concentrando-se em sua comida, o filho do moleiro não percebeu dois homens de olhar vago se posicionando atrás do rapaz. Um deles se abaixou e disse algo. Imediatamente o rapaz de cabelos pretos se levantou - um olhar triunfante e louco em seu rosto! - e disse em voz alta:
- O gato preto está aqui!
Um dos homens apontou para a parte de trás da estalagem e Rufus sentiu um frio na barriga. Mesmo sem o casaco de pena de ganso ele teve certeza: aquele rapaz era o homem do navio branco, o espião que queria capturar Lancelot e o calendário!
Os três se levantaram da mesa e caminharam para fora da taberna. Atrás foi o marido de Florentina, perguntando se precisavam de algum quarto e por que iam para a estalagem?
Imediatamente Rufus também se levantou. Para onde ia agora? Lancelot estava dormindo ainda? Será que seria pego em uma armadilha? Consciente de que nunca seria capaz de enfrentar os homens de Stark, Rufus se sentiu impotente demais. Tinha que dar um jeito de dete-los, mas como?
Teve uma idéia que soube ser incipiente. Mas, sem pensar em nada melhor, correu para fora da taberna pela porta da frente, deu a volta na casa e pôs-se de frente para o muro que circundava uma dos lados do quintal. O homem chamado Stark teria que estar passando por ali para ver o que iria fazer, mas valia a pena tentar.
Rufus tirou de dentro de sua mochila (que agora carregava sempre consigo) o boneco de Lancelot que havia feito e fez com que ele caminhasse por sobre o muro. Suas mãos escorregavam o tempo todo, na tentativa de controlar um boneco acima de si e de fazer com que os movimentos parecessem reais.
No quintal, Ibsen Stark parou.
- Ali está o gato! - ele disse - Ladrão, patife. Enganador! Devolva meu casaco.
Rufus moveu a cabeça do boneco para o lado, simulando uma risada.
- Você pensa que estamos brincando? - e em seguida sussurrou algo inaudível, provavelmente para um dos homens ao seu lado - Acabo de mandar que meu exército cerque esta estalagem. Assim tenho certeza que você não vai escapar.
O boneco caminhou displiscente pelo muro, sem medo algum.
- Devolva meu casaco, devolva minha honra! Eu serei o único a capturar o calendário perdido e a desmascarar o Vaticano!
E, perdendo a paciência, o homem chamado Stark mandou que seus homens pulassem por sobre o muro e pegassem o gato preto. Infelizmente para Rufus este era o limite de seu plano. Não havia como fugir, não havia como evitar ser descoberto agora!
Os homens saltaram e escalaram o muro. O filho do moleiro ainda tentou levar o boneco para longe, mas mãos velozes já vinham em sua direção. Então, os dois homens caíram e Rufus, olhando para cima, pôde ver contra a luz do sol um pequeno gato branco de florete em punho!
- Ninguém ataca meu companheiro! - bradou Percival orgulhoso - Mostrem-se vilões! Revelem-se aqueles que cairão pela minha espada!
E, virando-se para o boneco:
- Não se preocupe Lancelot. Você nem parece você mesmo, todo cansado e lento, nem sei como conseguiu se meter nessa enrascada. Mas fique tranquilo que vou te tirar desta situação!
Rufus arregalou os olhos. Sim, aquele só poderia ser o companheiro de Lancelot, o gato branco. Mesmo que ele tivesse confundido seu amigo com um boneco, ele parecia ser a única salvação para o filho do moleiro agora. Teria tempo de explicar tudo?
Stark grunhiu em desprezo.
- Você por aqui também. Será mais fácil pegar os dois então. Mas já vou avisando: meus homens cercaram esta estalagem e sugiro que se entreguem de boa vontade, pois esta não é uma luta que poderão vencer.
- Jamais! - gritou Percival, saltando na direção de um dos homens de olhar vago - Quem quer que seja você, eu não me renderei!
- Então não se lembra de mim? Só podia ser um péssimo espião mesmo. Que tipo de atrapalhados o Reino dos Gatos anda empregando? - disse Stark sorrindo e pulando para o lado. Imediatamente seu rosto se fez em uma careta, pois sua velocidade era muito inferior do que a que estava acostumado, tendo usado o casaco por tantos anos.
Rufus subiu no muro e jogou um fantoche de galinha na direção do segundo guarda, enrolando-o nos fios.
- Percival! - ele gritou - Nós temos que fugir, estes homens são fortes demais para nós, precisamos da ajuda de Lancelot!
O gato branco olhou para trás muito confuso.
- É o segundo hoje que me conhece sem que eu o conheça! - falou - Estou ficando louco? E o que é isso? Por que... o que Lancelote está fazendo nas suas mãos?
- É só um boneco - disse Rufus - Não há tempo para explicar, mas estou do seu lado.
Percival olhou ainda mais confusamente para os dois rapazes.
- Não sei o que está acontecendo, mas meu florete vai saber reconhecer a diferença. Saquem a espada e preparem as explicações! Estou furioso por terem usado o nome de meu companheiro em vão, pois então: Em guarda!

Enquanto isso, a cortina do quarto onde Lancelot ainda dormia moveu-se ligeiramente. O gato preto levantou-se e estava acordado em um átimo. Ali, no umbral da janela, estava o vizir do Reino dos Gatos, Chacaunac.
- Então você é realmente o Peregrino Noturno? - perguntou Lancelot.
- Sim - sorriu o vizir, por trás de seus óculos - Eu sabia que seria ruim mandar meus melhores homens para esta missão; vocês acabaram por descobrir tudo. Mas não faz mal, tinha de ser assim mesmo. Eu sinto muito.
- Então você roubou o calendário?
- Sim. Mas eu tenho minhas razões. Acredite, não foi por ganho pessoal ou por interesse próprio. Eu precisava daquele calendário.
- E você nos enganou a todos - disse Lancelot, colocando seu chapéu emplumado na cabeça.
- Por favor, peço que me perdoem - disse o vizir, fazendo uma reverência.
- O Rei, o Reino, nossa honra! Tudo foi perdido.
- Meu coração, mais do que minha honra, me impeliu a fazer isso. Eu sei que parece imperdoável e, de fato, não peço perdão. Peço apenas que espere este dia acabar. Logo mais, quando a noite chegar, eu irei me render e me entregarei para vocês. Mas ainda há uma tarefa que eu preciso realizar e, para isso, terei que ter certeza que os melhores gatos do reino não interfiram.
- Você vai entregar o calendário para o Vaticano?
- Não - disse Chacaunac, seu rosto resoluto e firme - Tentarei com todas as minhas forças evitar que isto aconteça. Porém, irei ao encontro, que se realizará aqui. Se sair vivo eu me entregarei e tentarei garantir que o calendário volte para o tesouro.
- O que há de tão importante nele?
- O dia 25 contém uma verdade perigosa. Preciso revelá-la.
Lancelot balançou a cabeça.
- Sinto muito vizir, mas meu coração me diz que devo capturá-lo.
Chacaunac sorriu.
- Eu sei que ensinei-os muito bem. Sejam sempre corretos e busquem a ação correta. Mas acredito que você tem assuntos mais urgentes para tratar agora... - e virou a cabeça para fora - Se eu não me engano, o seu amigo humano e Percival estão encurralados na taberna pelo homem do casaco de pena de ganso.
- Ele está aqui?? - disse Lancelot, sem saber se se referia à Stark ou à Percival.
- Sim, já te falei que este será o local da troca e Ibsen Stark é apenas outro tolo que tentará impedir que eu entre em contato com os agentes do Vaticano. Mas como eu disse, não temos muito tempo para conversar... Sendo mais preciso, seus amigos não têm muito tempo...
Lancelot pulou da cama e prendeu o florete à cintura.
- Vou ajudá-los e vou voltar aqui para te capturar. O que quer que esteja acontecendo, eu exijo que você nos conte a história!
Chacaunac baixou a cabeça.
- Eu sinto muito Lancelot...
E o gato preto já correu para fora da porta, para encontrar, do outro lado do quintal, a taberna cercada pelos homens de olhos vagos. Stark, em um dos cantos, comandava a derrubada de uma das portas, sob os gemidos do marido de Florentina:
- Minha mulher e um freguês estão lá dentro!
Stark resmungava:
- Abram esta porta e tirem-os de lá!
Lancelot se esgueirou para perto da confusão. Vários pedestres já pararam para olhar e pela única janela já se via que Rufus e Percival haviam usado as mesas e cadeiras como barricadas.
O gato não sabia como agir. Usar a seu favor o fato de Stark não ter percebido sua presença? Ou entrar com tudo como Percival faria, sem se importar com as consequências?
Olhou para o lado e encontrou Pigmaleão escondido atrás do arbusto, com um pequeno coelho ao seu lado.
Rapidamente um plano se formou em sua cabeça.

Lá dentro, Florentina gritava:
- O que está acontecendo?
E apertava seu bebê contra o peito, enquanto Percival e Rufus barricavam todas as portas e janelas com mesas e cadeiras que retiravam de dentro da taberna.
- Então me explique de novo... Este daí não é Lancelot?
- Não, é apenas um boneco! O verdadeiro Lancelot está dormindo em um dos quartos, por isso precisamos distrair a atenção dos homens que querem pegá-lo.
- Isso mesmo! - disse Percival - Vamos nos trancar aqui e fazer com que eles se ocupem de nós por um tempo. Tenho certeza de que Lancelot vai perceber e nos ajudar. Ou quem sabe o capitão Pigma que está lá fora possa pedir a Da Gama que chame mais coelhos!
- Coelhos? - perguntou Rufus. - Quer saber, não importa. Não temos tempo para isso.
As batidas na porta ficavam mais fortes. O homem chamado Stark ordenava que derrubassem a madeira, que destruíssem a taberna, que incendiassem tudo!
- Resistiremos! - respondia Percival e, virando-se para Florentina - Não se preocupe madame. Como um cavalheiro, nunca permitirei que você se machuque. Nada irá te fazer mal enquanto eu estiver aqui.
E Florentina, ainda assustada de ver um gato branco falar, apenas movia a cabeça.
Ao seu lado a lareira levantou pó. Rufus olhou assustado um gato emergir da chaminé: era castanho e listrado, com óculos grandes e um florete empunhado. Soube instintivamente que aquele gato estava ali para trazer-lhes problemas.
- Vizir Chacaunac! - gritou Percival - Que bom que está aqui! Como líder do Projeto nós realmente precisamos de sua ajuda.
- Eu não sei se... - começou a falar o filho do moleiro, no que o gato o interrompeu.
- Estou aqui para auxiliar meus dois bravos felinos - falou o vizir - Confie em mim e obedeça as minhas ordens: esta é nossa única chance de sobreviver.
Percival fez uma mesura delicada.
- Estou sob suas ordens! Estes humanos se arrependerão de terem enfrentado o Reino dos Gatos.

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