domingo, dezembro 21, 2008

E um dia Para um Cão

- Eu não posso acreditar que você esteja vivo! Isto é bom demais, que notícia boa! - dizia Pigmaleão.
- Eu sei, eu sei - disse Lancelot, empurrando o focinho rechonchudo para o lado - É a quinta vez que você me diz isto. Mas me diga uma coisa: aquele coelho é mesmo confiável?
- É o mais rápido que temos - falou Da Gama, chefe do Esquadrão de coelhos - Ele vai voltar em um minutinho com aquilo que você precisa.
O gato tamborilava impaciente. Era óbvio que os dois não durariam muito dentro da taberna. Stark conseguiu afastar todos os pedestres curiosos do entorno e mandara o taberneiro para fora, apesar de sua mulher ainda estar presa na casa que tentava destruir.
- Abram esta porta! - ele gritava - É apenas um gato que nos impede, não deveria ser difícil empurrar tudo para dentro.
Lancelot olhou para trás. Os marinheiros de Pigmaleão, que também observavam tudo escondidos em uma moita, abriram espaço para que um coelho pequenino passasse.
- Muito bem Nino! - Da Gama falou - Eu disse que ele era veloz.
Atrás do coelhinho chegava um peru, segurando um longo objeto branco na mão.
- Está aqui senhor gato - sorriu o banqueiro dos animais - Você foi meu cliente mais rápido. Ora, mal pediu para guardar já está pedindo de volta. Aqui está, o casaco de pena de ganso.
Lancelot reitrou o casaco de suas asas com um olhar agradecido.
- Todos à postos? - ele perguntou e Pigmaleão, Da Gama e os outros animais responderam que sim, que fariam o que mandara.
Lancelot subiu no topo da árvore. Sorriu enquanto ajeitava seu chapéu emplumado e atirava uma pedra em Ibsen Stark.
O único descendente de uma tradicional família de espiões virou os olhos encolerizados, pulsando de tanta fúria. Sua raiva aumentou ao ver que o gato preto que tão desesperadamente perseguia estava em cima da árvore, e não dentro da taberna.
- O que você faz aí?
- Estava passeando. Decidi cumprimentar um velho conhecido. Olá Stark, como tem andado sem seu casaco de pena de ganso? Mais lento, eu presumo.
As imprecações que se seguiram foram acompanhadas de um movimento rápido dos soldados de olhar vazio na direção da árvore.
Do arbusto saltou uma mancha branca. Enrolados no casaco de ganso o porco e o coelho estavam indistingüíveis. Foi preciso apenas um segundo para que a espada do capitão estivesse apontada para o pescoço do homem chamado Stark.
- Este negócio é mesmo rápido!
- Ordene que parem - disse Lancelot - Seus soldados obedecem apenas à sua vontade, não é mesmo? Então você não tem chance de vencer: é nosso prisioneiro agora. Obedeça-nos, por favor.
- Por favor? - falou Ibsen Stark, sorrindo por trás da lâmina que lhe tocava a garganta.
- Rápido - vociferou o gato preto - Ainda tenho que capturar o Peregrino Noturno! Renda-se logo para que eu possa libertar meus amigos!
O sorriso de Stark rapidamente se desfez. Seu rosto demonstrou uma emoção que Lancelot não estava preparado para ver e que não teve tempo de decifrar.
- Ele está aqui?
Agora sua voz soou mais fraca, mais indecisa do que antes.
- Estava. Ele veio me ver em um dos quartos. Você se rende?
Stark abaixou a cabeça e todos os homens de olhar vazio que cercavam a estalagem desceram ao chão, como se dormissem.
- Esperem, estamos falando de um gato de óculos e listras? - perguntou Da Gama por detrás do tecido sobressalente do casaco - Este é o Peregrino Noturno, não é?
- Sim, este é o vizir. Este é o traidor que roubou nosso tesouro. - disse Lancelot, algo dentro de si dizendo que precisava se preocupar.
- Vizir! - ecoou Stark, os olhos assombrados.
- Mas ele acaba de entrar ali! - falou o coelho - Agora há pouco, pulou pela chaminé! Se ele é o ladrão...
... Então Percival e Rufus estão em apuros!
Lancelot pulou da árvore para o chão e desatou a correr para a estalagem.
Pigmaleão gritou-lhe "Espere, não é bem assim!" mas o gato não podia escutar. Diante da distração do porco, Stark escapou de sua espada e correu atrás do gato preto.
Os dois chegaram à porta da taberna e juntos começaram a bater na porta. Tentaram empurrar as cadeiras viradas mas não conseguiram em poucos segundos o que os homens de olhar vago estiveram tentando por muito tempo.
- Eles estão em perigo!
Nesta situação, Lancelot não podia deixar de expressar-se em voz alta.
- Dê-me o casaco - pediu Stark - Eu posso entrar usando o casaco.
Os dois se olharam.
Pigmaleão e Da Gama apareceram subitamente ao seu lado, depois de se desembaraçarem das penas de ganso.
Lancelot não pensou duas vezes. Retirou deles o casaco e deu a Stark.
- Você não vai fugir?
Stark encarou-o de olhos arregalados e o gato teve certeza que esta possibilidade nunca lhe passara pela cabeça.
O rapaz vestiu o casaco e em um segundo já estava no telhado. Veloz como sempre entrou pela chaminé e o silêncio tomou conta do quintal.
- Precisamos te explicar... - disse Pigmaleão, mas Lancelot não o deixou terminar. Toda sua atenção estava dentro da taberna - Nós
- Escute - disse Da Gama - Não é preciso tanta pressa, porque
E então a porta se abriu. Lancelot esperava encontrar qualquer coisa. O que podia esperar de um traidor? Ao invés disso, que surpresa, quem abriu a porta foi o próprio Percival.
Os dois amigos se encararam frente a frente. Deram sorrisinhos até que Percival se lembrou de gritar:
- Rápido, ele vai desamarrá-lo!
Lancelot entrou na taberna e viu que Rufus e o gato branco haviam desmontado a própria barricada e que o vizir Chacaunar estava preso e imobilizado pelas cordas de um dos fantoches. Ao seu lado, Stark tentava tirá-lo do nó.
- Nós sabemos de tudo - Da Gama falou lá atrás - Nós havíamos investigado e descoberto que o vizir era o ladrão.
- Ele entrou aqui e tentou nos enganar - Percival falou sorrindo de orelha a orelha - Mas nós o enganamos primeiro.
Lancelot encarou a situação novamente. Então estavam todos à salvo?
- Tão precipitado! - disse Rufus sorrindo, suas mãos ainda segurando um fantoche de galinha - Nem parece a ação do pensativo gato preto.
Ao seu lado, Stark ainda lutava contra os fios que prendiam o vizir, visivelmente emocionado.
- Não se preocupe Chamaleão. Eu vou te soltar daqui.
O traidor, por sua vez, encarava o chão, como um adversário que se sentia humilhado demais pela derrota.
Lancelot rapidamente dominou a situação:
- Se está tudo bem, vamos organizar tudo. Eu quero que você me explique o que está acontecendo aqui Chacauner. De onde este homem o conhece e por que ele te chama assim?
O vizir soltou-se das cordas e ajoelhou-se triste no chão.
Stark sorria por tê-lo livre, quase esquecido dos outros na sala.
- Este homem e eu éramos amigos - falou Chacauner - Mas isto foi há muito tempo atrás...
- Eu nunca te esqueci Chamaleão - falou Stark comovido - Eu sabia que te veria de novo.
Os dois se olharam e os gatos puderam respirar aliviados. Seus inimigos haviam perdido todo ar de hostilidade. Então Chacauner contou sua história:
- Eu era o gato da família Stark, muito antes de me mudar para o Reino. A famosa família de espiões me tratava bem, mas meu favorito era seu filho mais novo, o pequeno Ibsen Stark. Eu e ele éramos grandes amigos e tínhamos todo o tipo de aventura juntos. Fui eu quem o ensinei sobre o Reino dos Gatos e sobre os outros animais que falavam.
- Eu ouvi falar disso no Bar da Garça! - disse Pigmaleão, tirando seu chapéu em respeito - Disseram que ele foi iniciado nos mistérios de nosso mundo por seu querido animal de estimação, mas haviam dito que era um cão...
- Sim, porque eu fiz de tudo para encobrir meus rastros. Queria que meu plano fosse perfeito. Foi isso que me manteve vivo durante estes anos todos. E precisei deste plano porque um dia nossa felicidade acabou. Stark e eu estávamos juntos quando recebemos a notícia de que o Vaticano estava extinguindo as famílias espiãs. Os pais de Ibsen sucumbiram primeiro. Um a um seus parentes foram desaparecendo e foi graças aos meus contatos entre os animais que o mais jovem membro da última família de grandes espiões sobreviveu. Nos escondemos em Florença e depois no mar, à bordo do barco branco, uma das últimas possessões dos Stark. De um dia para o outro eu e ele estávamos sozinhos no mundo, sendo perseguidos por todos. Naquele dia eu jurei vingança. Eu prometi que faria de tudo para acabar com aqueles que destruíram a vida do meu querido Ibsen. Por isso, quando soube do calendário - em uma lenda entreouvida em uma taverna de além-mar - eu sabia o que precisava fazer.
- Em primeiro lugar, abandonei Ibsen. Eu não queria que ele fosse consumido pelo meu ódio.
- Você não devia ter feito isso - Stark falou - Eu teria te ajudado, eu teria feito tudo para destruir o Vaticano, como você.
- Você não entende... Eu estava cansado de tanto ódio. Eu queria que você crescesse com amor e gratidão e que a última coisa na qual pensasse fosse em vingança. Por isso entrei para a chancelaria do Reino dos Gatos, apaguei meu passado e passei a viver como Chacauner, o dedicado servidor. Logo me tornei vizir e tive nas mãos a chave do cofre que guardava o calendário e com ele o segredo capaz de destruir o Vaticano e terminar finalmente com esta história de sangue e morte. Tudo o que eu fiz foi para criar um futuro melhor para meu querido Ibsen. Por favor, eu lhes imploro, deixem que a reunião aconteça normalmente, deixem que eu me encontre com o enviado do Vaticano para acabar com isso.
- Infelizmente isto não será possível - disse Lancelot - O que quer que você tenha para enfrentar terá que fazer ao nosso lado.
- Sim! - gritou Stark - Eu estive procurando por você durante muitos anos! Me tornei um dos maiores espiões do mundo na esperança de achar alguma pista, algum gato que se parecesse com o Chamaleão que eu conhecia... E agora eu vejo que você mudou, que se tornou vizir e importante. Que tem nas mãos tanto poder. Por favor, eu te peço, não me deixe sozinho novamente.
Chacauner baixou os olhos.
Os animais e homens ali presentes não lhe tinham mais nenhum sentimento amargo. Apesar da confusão que causara, eles o perdoavam.
- Nós não queremos que tudo termine em destruição e morte novamente - disse Lancelot - diga-nos então: para quê serve o calendário?
- Antes disso... - falou o coelho Da Gama - Acho que temos um pequeno problema a enfrentar.
A taberna estava cercada por soldados. Padre Coro, o enviado do Vaticano, sorria através da janela.
- Entreguem o calendário. Não há chance de escaparem.

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