Percival e Pigmaleão corriam pelas ruas de Florença. Era tudo escuridão, por isso podiam se movimentar à vontade. Reviravam latas de lixo, olhavam pelas janelas, subiam em prédios para tentarem avistar alguma coisa do topo.
Nada na cidade adormecida lhes fornecia uma pista. Um calendário precisava ser encontrado. Mas aonde? E para que? Dificilmente seria para saber os dias, ou senão qualquer outro calendário serviria. E como diferenciar este de qualquer outro?
Para os dois, estava sendo muito difícil brincar de espião.
Um pouco cansados, caminhando em um beco escuro, se depararam com a maior das descobertas. Percival foi o primeiro a ver. Algo que nunca imaginariam ver ali. No fundo do beco, um gato caminhava escondido. Porém, caminhava em duas patas!
- Não acredito! - disse Pigmaleão - É um de nós.
Os dois correram para onde a figura bípede se dirigia e encontraram uma portinhola pequena no meio do entulho, onde se lia, em letras do alfabeto felino, indistinguíveis para humanos:
"Bar da Garça"
- Você acha que... - continuou o porco - Haveria algum tipo de clube ou local de reuniões para animais como nós?
- Só pode ser isso - sorriu Percival, muito animado, já abrindo a portinhola.
Lá dentro, atravessando um longo corredor, encontraram um charmoso bar. No balcão se viam duas zebras conversando, um cão de ar enfezado, dois gatos já ébrios de tanto beberem e um colibri muito ocupado servindo a todos.
- Olhe só o que encontramos! - disse Percival - É aqui que teremos pistas para achar o que estamos procurando!
- Calma lá - bufou Pigmaleão, estufando a barriga - Achei que fosse uma missão secreta, então tome mais do que cuidado com o que você for perguntar.
- Certo, certo... - disse o gato branco, sentindo-se perdido demais - Mas podemos perguntar de Lancelot livremente por aqui, não é mesmo?
Pigmaleão ergueu os braços, fechou os olhos, acenou devagar com a cabeça. Parece que sim, ele dizia.
Os dois se aproximaram do cão, que tinha a cara de ser o cliente mais antigo do lugar. Depois, diante das negativas, tentaram com os outros animais e por fim, estavam quase desistindo, quando um emplumado peru entrou no lugar. Esperaram que ele e sua entourage, composta por cinco galinhas muito apaixonadas, se sentassem e se servissem e, por fim, Percival tomou coragem de se aproximar todo galante, perguntando sobre o gato preto.
- Boa noite senhor!
- Boa noite coisa nenhuma! - rebateu o peru - Pois saiba que cada vez que o natal se aproxima as noites vão ficando cada vez piores! Ah, mas a agonia, a espera, o medo, tudo isso é demais para mim... - Pigmaleão e Percival trocaram olhares confusos - Por isso - continuou a ave - É preciso aproveitar! É preciso festejar, é preciso sair toda noite, cantar o mais alto possível, cuidar de tudo. Porque a qualquer momento... é o fim!
E bateu na mesa com as asas, provocando um alto barulho. Quando o silêncio que se seguiu começou a morrer, o peru continuou, atropelando uma pergunta do gato:
- E o pior de tudo é que, se eu morrer, uma parte desta cidade morre comigo! Como vão viver todos os animais sem mim? Pois saiba que eu sou o maior dos banqueiros que vivem aqui - ele arrulhou, abraçando as galinhas sorridentes que o seguiam.
- Um banqueiro para animais? - estranhou Pigmaleão - Mas não usamos nenhum tipo de dinheiro.
- Ora, mas sempre existem coisas importantes para serem guardadas. Eu sou aquele que tem os melhores esconderijos por aqui. Podem escolher o melhor time de tatus escavadores e revirarem esta cidade por sete anos que não vão encontrar o que eu escondi. Sou tão confiável que todos os animais da região me pedem para guardar coisas deles.
- Ah sim, ele é o melhor - confirmou uma galinha - Ele está sempre recebendo pedidos e os mais estranhos objetos para esconder. E até hoje nenhum foi encontrado por ladrões. Só ele sabe onde estão as coisas. E todo mundo vêm trazer o que lhes é importante para guardar.
- Por isso vocês devem entender como é preocupante esta época do ano para mim. Como meus clientes podem contar comigo, se à qualquer momento eu posso... eu posso... Vocês sabem. Como podemos continuar assim?! A tensão é enorme!
Percival se agitou com uma idéia:
- O senhor alguma vez teve que esconder um calendário?
- Um calendário. Ora, tenho certeza de que não. Recebo muitos objetos estranhos, mas estranhos como este nunca.
- Que pena - disse o gato - Estávamos procurando por isso há um certo tempo. É o tipo de objeto extremamente necessário para nós. E como é também um objeto importante, creio que... bem, se fosse alguém da cidade ele teria escondido com o senhor.
- Ora, são tão poucos os prazeres nesta época do ano que seria meu prazer inesperado ajudá-lo a encontrar um objeto - disse o peru, o peito inchado e gogó balançante - Alguns clientes meus trazem coisas dentro de caixas, por isso não seria inteiramente impossível que eu já tenha alguma vez na vida escondido um calendário. Ora, porém, você deve entender que eu nunca trairia a confiança de um cliente meu.
- Entendo... Pelo visto o homem do navio branco ainda está na nossa frente nesta busca...
- Homem do navio branco? - piou o peru - Ora, você não está falando de Ibsen Stark, o rapaz, o sobrevivente do massacre dos Stark?
- Não creio que eu saiba seu nome - respondeu Percival.
- Ele usava um longo casaco de pena de ganso - acrescentou Pigmaleão.
- Isso, ele mesmo! - animou-se a ave - Eu mesmo escondi aquele casaco há alguns anos atrás e providenciei-lhe esconderijos durante os massacres. Pelo visto ele tinha algum animal de estimação quando era criança, um cão se não me engano, que o introduziu nos mistérios do nosso mundo. Por isso ele sabe tudo sobre nós, animais falantes, mas é muito sensato e não conta a ninguém.
- E ele tem alguma coisa com o senhor atualmente? - Percival perguntou.
- Tem sim, mas não posso dizer quantas ou o que são estas coisas. Ora, é meu trabalho manter escondido, vocês entendem. Mesmo nesta época do ano... Tão tensa, tão tensa... Mas - e o peru piscou um dos olhos - Só pelo prazer que esta conversa me proporcionou, vou te dizer que não se trata de um calendário. Nada deste tipo está com ele.
- Ele pode saber mais, mas não tem o objeto - disse Pigmaleão, tentando animar o gato branco.
- E quanto a um gato preto, muito parecido comigo... o senhor não viu nada?
O peru balançou a cabeça desconsolado e seu gogó a seguiu.
Então, do outro lado do bar, alguém se levanta.
- Um gato branco, acompanhado de um porco, procurando um gato preto? Só pode ser ele!
Era um cavalo alto, de peito estufado e armadura reluzente. Era também o mercenário impiedoso contratado por Stark para lidar com sua concorrência.
- É o mercenário! - piou o peru - E ele parece estar atrás de vocês! Ouçam o que digo e corram, corram! Tantas calamidades nesta época do ano!
- Correr jamais! - gritou Percival, sacando seu florete - Pode vir, quem quer que seja você.
Porém, assim que o cavalo sacou sua maça, ainda mais pesada do que podem imaginar, com todos aqueles espinhos à mostra, Pigmaleão segurou os braços de seu companheiro e gritou:
- É melhor darmos o fora daqui!
E saíram os dois fugindo do bar, com o enorme cavalo marrom os perseguindo e gritos de corram, corram do peru. Abriram a portinhola de supetão e estavam na rua fresca.
- Para que lado?
- Não vamos levá-lo à estalagem - disse Pigmaleão, pensando em seu homens dormindo tranqüilos - Temos que despistá-lo primeiro.
- Excelente - disse o gato branco, pulando para cima de uma calha. Pigmaleão, um pouco mais lento nas escaladas, naturalmente, viu o cavalo se aproximando furioso.
- Não há como fugir, estão perdidos! - ele grunhia.
E os dois animais correram pelos tetos das casas, ouvindo o galopar do mercenário nas ruas de paralelepípedos.
- Por ali! - anunciou Percival, descendo por uma série de escadas até a praça da fonte. Pigmaleão, ofegante, seguia logo atrás.
Eles pularam por cima das esculturas de onde a água jorrava e tentaram escapar para o outro lado do muro. O cavalo foi igualmente rápido e, em um salto, já estava lá. Percival fez menção de empunhar seu florete, mas o porco já entrava por uma das ruas laterais. O mercenário lançou sua maça, que por pouco não acerta o rabo felpudo e branco que escapava.
Eles correram durante muito tempo, mas o cavalo não os perdia de vista. Parecia um minotauro, enfurecido, espumando pela boca, incansável.
- Não há jeito - disse Pigmaleão, ofegando alto demais - Ele vai nos pegar, não jeito de escaparmos deste imbecil.
- Não desanime - disse Percival, percebendo que o amigo logo logo cairia exausto no meio da rua e que ele mesmo já estava cansado o suficiente para desistir - Sempre há um caminho! - ele gritou à título de encorajamento, puxando o porco para uma viela - Nós podemos escapar por aqui!
- Mas isto é um beco sem saída!
- Exatamente. Se conseguirmos pular o muro e chegar ao outro lado ele não conseguirá nos seguir.
O mercenário já estava na boca da rua, sorrindo com sua boca enorme e seus olhos injetados ao ver que se tratava de um beco sem saída. Caminhou devagar, tomando seu tempo, enquanto observava os esforços inúteis do porco e do gato de escalarem o muro liso.
- Não sei qual foi o trabalho que meu chefe teve. Vocês dois são alvos fáceis.
E Percival, que segurava Pigmaleão para tentar fazê-lo subir a parede, sentiu-se investido de fúria e raiva. Se o equilíbrio de seu companheiro não dependesse dele, já teria sacado o florete e partido para cima do cavalo como uma explosão branca.
- Chega de enrolação! Se você quiser nos pegar, eu te ofereço um duelo. Eu contra você, aqui e agora!
De peito inflado, o cavalo aceitou desdenhosamente. Bufou superior, rindo de seu adversário.
- Você não vai fazer esta imbecilidade - gritou Pigmaleão, que já estava furioso com a idéia de terem entrado em um beco sem saída - Volte aqui seu gato imbecil, devolva este florete à bainha! Não chegue perto deste monstro pterodáctilo anfisbena!
O pequeno gato branco não se sentia intimidado. Sorria como se estivesse diante de sua própria morte - e provavelmente estava. Mas ele nunca saberia, pois no exato momento que o cavalo avançou para atacá-lo com sua maça espinhosa, um grupo de cinco coelhos pulou por sobre o seu rosto.
- O que é isto?! - gritou Percival confuso.
domingo, dezembro 14, 2008
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