domingo, maio 31, 2009

Rastros Sobre Salaricäa

"O príncipe exilado Salaricäa soube que o homem que procurava estava no topo do monte. Ele estava com pressa para terminar logo sua busca. Assim que ouviu as palavras da boca de um velho camponês, as palavras que continham o paradeiro do homem que procurava!, esporeou seu cavalo e galopou na direção do monte escuro que deixava toda a paisagem sinistra.
- Estou chegando, estou chegando! ele gritava e balançava em frêmito. Atravessava a terra desolada com suas casas abandonadas de telhas destruídas e aranhas onde as janelas perderam os vidros.
Difícil de acreditar no que o velho dissera. Que aquele homem - aquele homem! - estava lá em cima, no topo da rocha nua do monte.
Mas tinha de ser verdade, como era verdade tudo o que se dizia a respeito dele e todos os sinais que o indicavam. Salaricäa buscava-o a tempo suficiente para saber disso. Sabia que "um homem que viera do mar e era diferente de todos os outros" era ele, e que se via na porta da alguma taberna suja o símbolo de uma estrela, aquilo se tratava sem dúvida de uma pista ou de um sinal, que o príncipe deveria imediatamente decifrar e seguir.
E agora, o monte sinistro, onde o fim se daria. Ou assim ele esperava."



A história de Salaricäa é a história de um jovem príncipe. Seu reino abole a monarquia e ele é exilado. Passa a vagar pelas terras desoladas que não pertencem a país nenhum e assume uma estranha mania: perseguir o homem. Tudo são evidências de sua passagem, tudo são sinais de sua direção. Salaricäa persegue-o sem cansar-se. Talvez porque já intua que sua salvação depende disso.
Um velho ministro que, apesar do fim da monarquia ainda insiste no antigo cargo de aconselhar o jovem príncipe, avisa-o da verdadeira natureza de sua jornada. Salaricäa está mais interessado no relato de um velho camponês que diz ter visto o homem no alto de um rochedo sinistro e já esporeia o cavalo enquanto o ministro grita ao longe:
O homem que ele busca é um espelho. É um homem que ele gostaria de ser mas ainda não é.



"Vi a casa da minha infância transformada em terra de fantasmas. Eu mesmo era um lobo perdido, transformado inevitavelmente em estrangeiro diante da casa vazia.
Corri para longe, para fugir da terra desolada.
Eu era um lobo negro, fugindo.
Depois de um tempo cheguei à terra dos pássaros. Eles me acolheram bem, apesar de não me reconhecerem. Trataram-me o tempo todo como se eu fosse um lobo. Voamos, e eles me ensinaram a ler o vento.
Agradeci aos pássaros e continuei pelo vale dos fantasmas, desviando dos espíritos que me espreitavam. Atravessei a terra dos seres sem alma até chegar no Portão Escuro.
E corri, corri pela escuridão, corri no meio do vazio negro, corri sem ver por onde corria. No final da sombra, estava uma floresta de vaga-lumes e o Homem das Calças Brilhantes.
Olhei no espelho e tinha a imagem de uma criança. Trabalhei para o Homem de Calças Brilhantes, que tocava seu violino e me fazia lavar pratos. Eu era uma criança sem ser um infante."



Eu preciso encontrar Salaricäa!
Preciso achar o príncipe que persegue o homem que queremos ser.
Somos três em perseguição - será possível nos encontrarmos?

Preciso encontrar Salaricäa e com isso encontrar a pista do homem que ele busca e chegar a este homem primeiro. Preciso encontrá-lo, devorá-lo e tornar-me ele, para com isso dar a volta e encontrar Salaricäa.



"O homem era medonho. Parecia a Salaricäa que via algo de outro universo. Algo que estava proibido de ver. Contorceu-se no chão e pressentiu outra das metamorfoses chegando. Desta vez teve medo porque pensou que seria esta a transformação final que o deixaria igual ao homem.
Contorceu-se mais de frustração do que de raiva ou pavor. Como as outras, não podia evitar esta.
Ainda olhava o rosto do homem.
Ainda olhava para o terrível futuro do que seria ele mesmo."

quinta-feira, maio 28, 2009

Uma Característica Minha

Lá em cima. Sob o título "Aqui em Hinée" há um escritinho.

"Um espaço no meio do mundo para escrever o que me vem à cabeça. Enquanto espero posso registrar minha existência e eventuais aventuras/desventuras."


Enquanto espero, posso registrar...
Enquanto espero...

domingo, maio 24, 2009

Espada Afiada

Mustasím conseguiu tudo destruíndo todos.
Disse que iria embora e se tornaria um almirante turco. Seus amigos não acreditaram, nem mesmo depois que ele fugiu de casa e desapareceu sem noticias. Quando voltou, dez anos depois, tinha a pele morena, três esposas, cinqüenta navios sob seu comando e uma vingança ainda insaciada.
Para satisfazer sua vontade, quis destruir todos que o conheceram
No desfile de vitória, exigiu que determinados prisioneiros especialmente escolhidos tivessem uma visão privilegiada. Queria ver em seus rostos o terror quando percebessem que era Mustasím que voltara. Queria vê-los se contorcerem quando exibisse as relíquias e tesouros que recolhera em suas conquistas. Queria vê-los vexados de humilhação quando recitasse os maiores tratados filosóficos de seu tempo. Queria que sofressem por nunca terem acreditado em sua grandeza, por terem sempre chamado-o de imbecil.
Crucificados no final da grande avenida, os prisioneiros choraram de dor durante todo o desfile de Mustasím, que lentamente se aproximava deles. O vitorioso almirante turco sorriu e levantou um mapa astral de modo que os seus antigos amigos pudessem ver os desenhos das estrelas.
- Esta é a prova de minha grandeza. Este é o sinal que o universo pôs em mim, tornando-me único. Eu não sou como vocês, eu sou grande!
Ao final do desfile, todas as conquistas de Mustasím se alinharam às suas costas, todos de frente ao triste grupo de crucificados, muitos dos quais já pediam perdão e se humilhavam de forma terrível.
Ninguém podia suportar a visão do que Mustasím era agora, que comportava muito mais que um simples homem. Mustasím parecia gigantesco em seu desfile!
As três belas esposas, todas tão bonitas que um olhar seria capaz de levar o mais calmo dos homens à loucura. Os marinheiros, infinitos como as gotas do oceano onde lutavam todos os dias, que obedeciam cada comando de seu almirante. No final da avenida, era possível enxergar também os cinquenta navios da armada invencível que aliava a mais moderna tecnologia ao espírito de destruição. As bibliotecas, as jóias, as armas afiadas, os carros de batalha, os cavalos orientais, as fênixes fulgurosas, os pomes de ouro, as gemas oceânicas, o cálamo infinito, o cadinho da transmutação, a capa da invisibilidade, os infinitos mapas, os sábios, os escravos, os astrônomos, os mitologistas, os espiões, os pintores.
Viam porque não podiam desviar o olhar do magnífico. Viam tudo, sem desviar os olhos. Pareciam enlouquecidos.
Mustasím sorria diante do estado destroçado de seus antigos amigos e parentes. Porque não puderam se compadecer dele antes?
No centro estava seu antigo companheiro, seu melhor amigo. Ele não parecia sofrer, pelo contrário, estava se divertindo com o espetáculo.
Mustasím ordenou que firmassem as cordas, que elas ferissem mais sua carne. Foi atendido prontamente, como sempre.
Seu antigo amigo cuspiu sangue e sorriu. Olhou para Mustasím e falou:
- Muito impressionantes todos os seus brinquedos. Pena que você continua a ser um imbecil.

sexta-feira, maio 15, 2009

Espada No Coração

Marúwiere passeava pela floresta quando caiu no rio e foi levada para longe do palácio onde morava. A princesa foi salva por elfos, que a levaram para outro palácio onde as paredes tinham a aparencia de véus.
Maríwiere foi trancada em um quarto na torre alta, onde sonhou durante tres dias que seus irmaos e seu pai a resgatavam. No quarto dia conheceu o rei elfo, e parou de sonhar.

* * *

Cinco anos depois, enquanto Maruwiere corria descalca pela floresta um cavaleiro a alcancou. Os bracos fortes a pararam e o irmao reconheceu a irma. Ele levou-a de volta para o palácio onde as paredes eram de pedra e lá todos estavam surpresos com a aparencia envelhecida que a princesa tinha. Seus olhos marcados mais fundos, seu semblante mais triste, sua disposicao minguada.
Ela nunca contaria a nunguem que fora esposa do rei dos elfos por cinco anos; assim como nunca contaria da lei que comandava que o rei só poderia amar uma mulher por cinco anos. Disse que tinha vivido na floresta esse tempo todo, se alimentando do que podia pegar com seus bracos fracos. Disse que era por isso que envelhecera tanto em tao pouco tempo. Que foi a natureza que a deixou tao solitária e selvagem.
Quando ficou sozinha, a princesa se lembrou, com um fremito de desgosto, de como escapara da execucao e do palácio em que as paredes pareciam véus. De como fugira e acabara por encontrar o irmao na floresta. O irmao que a trouxe de volta para casa. O irmao que nunca saberia o que aconteceu a ela. O irmao que nunca se perguntou por que ela agora usava uma coroa de plantas silvestres na cabeca.
Por todo o reino ecoavam rumores. Diziam que o rei elfo havia perdido seu poder mágico. Que agora quem comandava a floresta eram os homens. Que nao haviam mais o que temer, porque o antigo rei havia perdido a fonte de sua magia.
O rei elfo roubou o coracao de Marúwiere. Mas ela levou sua coroa...

Sem Espada

General Abbas olhou todos os 25 homens e mulheres dos quais conhecia o passado e o futuro perfilados no topo do pequeno muro da cidade.
Via seus olhos brilharem na escuridão. Via seus corpos tesos, bem firmes em pé, os espíritos resolutos em enfrentarem face a face a morte final. E, como a história conta, naquele momento, algo dentro do General Abbas se rompeu.

quarta-feira, maio 13, 2009

Ugo, este post é para você

Isso aconteceu faz um tempo e eu não te contei nada. Em parte por esquecimento, em parte porque o incidente, odeio admití-lo, me causou contentamento. Um post recente teu tocava no assunto, então resolvi que era hora de te contar o que aconteceu:
Foi no verão. Desci de um barco e escutei imediatamente o barulho plim, pluft. Plim era um objeto pingando na madeira do cais. Pluft era a moeda que você me deu caindo na água. Irrecuperavelmente.
Na hora eu nem soube o que fazer. Nem pensei em te dizer nada, ou como te explicar o que aconteceu. Meu estojo devia estar fechado, não havia motivo nenhum para ela ter escapado.
Para tentar de consolar, eu pensei em fazer a única coisa que eu sei fazer: inventar uma história. E é a seguinte:
Ela queria, na verdade, voltar ao mar.

terça-feira, maio 05, 2009

Eu leio o mapa da Irlanda cantando

Acho que estou ouvindo muita música irlandesa quando os nomes das cidades eu reconheço de trechos de músicas.

domingo, maio 03, 2009

Eles

Era final de tarde quando o homem abriu a janela.
Ele observava preguiçosamente a rua quando gritou para a esposa:
- Leve as crianças para dentro! Eles estão aqui.
Um faixa dourada de sol iluminava uma parede do outro lado da rua. Este era o sinal. Era assim que ele sabia.
O homem fechou a janela e correu para dentro. Trancou as portas enquanto sua esposa levava os filhos para o quarto.
Lá fora o dia já não era claro. Tantas casas e prédios faziam com que o sol descesse depressa. Porém haviam vãos, passagens, buracos por onde a luz dourada podia passar. Naquele entardecer a luz parecia estar fazendo um percurso: de vão em vão o feixe dourado ia se aproximando da casa do homem.
Ele segue pela superfície das paredes, pelos telhados das casas, pelas folhas em uma árvore, até que chega na casa escolhida:
Uma das paredes do quarto se iluminou! Laranja, dourado. A última luz do crepúsculo entrou por uma das janelas e começa a correr pela parede.
O homem tirou as crianças do quarto, mandou que corressem para fora dali. Correu ele também para a sala, onde outro feixe de luz já se aproximava da porta de entrada.
Correram para o segundo quarto, o homem atrás, vendo avançar a luz pelas paredes do corredor.
- Eles estão aqui! pensava a esposa aterrorizada. Ela cobria as crianças em um canto com seu próprio corpo. O marido puxou a cortina do segundo quarto. Agora a luz entrava por milhares de rachaduras no teto. Eram tantas que ela se enfraquecia de tão dividida!
Aos poucos o feixe de luz dourada foi se unindo aos feixes que vinham das janelinhas do corredor e do resto da casa. Escorregando pela parede eles se dirigem devagar para a porta da varanda, que o homem tentava inutilmente manter coberta pela cortina. Quando a luz a atinge, a porta se abre com um estrondo.
A luz dourada e laranja invade o quarto. No centro da luz está uma sombra. Ele é apenas uma sombra. Ele é um dos seres do crepúsculo.
O homem se lança na frente dos filhos.
- Por favor, ele não têm nada a ver com a dívida. Eu prometo que vou lhes pagar, mas não façam nada com minha família. Dêem-me mais tempo!
A sombra responde:
- Hoje viemos cobrar sua dívida. Mas não queremos mais seu dinheiro. Você não precisa mais nos pagar se nos fizer apenas um favor; se pensar bem verá que é um acordo aceitável. Queremos apenas que nos esconda por esta noite em sua casa.
O homem assentiu, incrédulo de ver sua dívida finalmente sendo perdoada. Talvez ele não acreditasse totalmente na bondade destes seres.
Outros homens de sombra entraram na casa e começaram a fechar as janelas e portas pelas quais tinham entrado com largas cortinas e trancas pesadas.
A sombra que falara primeiro, a sombra que tinha ascendência sobre as demais, garantiu ao homem que sua família não seria prejudicada.
Bastava que esperassem uma noite.
O crepúsculo termina e a luz dourada se vai. Dentro da casa é escuro e começa a escurecer ainda mais. As frestas do teto desaparecem. Chega a noite e com ela a luz da lua.
Naquela noite, a luz prateada parecia estar fazendo um caminho. Aproveitava-se de cada vão da cidade para avançar de parede em parede, de rua em rua, subindo em postes e em árvores. Porém, seu avançar é inquieto e desigual: ela não sabe onde vai, ela procura algo que não está por ali. Experimenta cada vão em cada casa, entra pelas janelas para espiar as famílias jantando, mas por enquanto ainda não entrou na casa coberta por cortinas. Não se sabe quanto tempo levará para investigá-la. Não se sabe se seus moradores aguentarão uma noite inteira desapercebidos...