A despeito de sua aparência, Lucas era na verdade muito velho. Velho porque lera demais quando era criança, e todos sabem que a Literatura serve para nos envelhecer. Por isso, quando se viu sozinho no mundo, tendo perdido seu melhor amigo nos turbulentos eventos narrados anteriormente, ele escolheu a solução que mais se adequava aos romances que lera.
Como um Dom Quixote moderno, saiu de sua casa para perseguir um antigo sonho. No caso, um sonho de infância que tinha a forma de um quadrinho pequeno onde se viam retratados um palacete e seu jardim, e em cima, escrito em letras vermelhas e rebuscadas, as palavras "Continua Sem Acabar". Era um quadro tão pequeno que caberia em seu bolso, pintado por não se sabe quem, que havia pertencido ao seu pai. Quando criança, Lucas se acostumou a dormir ouvindo histórias que seu pai narrava sobre este palacete, como se o quadro fosse uma janela para um lugar no mundo em que todas as histórias, com todos os personagens, poderiam acontecer. Lá, onde a vida estava sem freios. E mesmo com a presença de ogros, bruxas e grão-vizires ciumentos, Lucas nunca desejou outra coisa que não encontrar o palacete e seu jardim, para viver uma aventura, para sorrir do fundo da alma, para errar e aprender, enfim, para ser.
Agora, desolado e sozinho, Lucas tinha nas mãos o quadro. Sabia que fora pintado nos arredores de Florença, então sabia por onde começar a procurar. Porque Lucas nunca duvidou que tal lugar existisse, e que todas as histórias que ouvira foram as pontes que o permitissem vislumbrar sua existência. Em sua longa vida adulta - e precoce maturidade devido aos livros - escondeu muito bem sua vontade de encontrar o lugar. Tão bem que nem ele próprio percebeu que o desejava, até perder seu melhor amigo e sua vida antiga e tudo acabar como se um terremoto devastador houvesse passado por si. Agora percebia que queria procurar o tal palacete, e caminhava tranqüilamente por uma das oito estradas que levava à Florença. Nem que seja para ver como está o lugar, pensava. E aspirar um pouco de sua atmosfera mágica, criada por anos e anos de sonhos com ele.
Caminhava apoiado em sua bengala, devagar e pensativo, embora estivesse triste demais para pensar em algo que o agradasse. Olhava para tudo o que via na estrada, buscando uma distração. Tendo uma educação rígida ao costume do norte, surpreendia-se com o descontrole que as plantas atingiam no calor do verão. Mesmo as flores mais educadas, ele percebia, vazavam para fora de seus vasos e desciam pelas colunas. O mato subia pelas calçadas e invadia a estradinha pitoresca, as moites proliferavam abundantemente.
Algo acontece com as plantas no verão, ele pensou, algo enlouquecedor para qualquer um acostumado aos movimentos humanos. Depois de toda a morte do inverno elas se reerguem com uma luxúria fascinante. Morriam para renascerem, diferentes e verdes, em todo o seu novo esplendor. As pessoas não conseguiam se acostumar a esse abandonar de si que tinha lugar todo inverno, para que, de um modo tortuoso e indireto, nascessem novamente no verão. Todo ano é a mesma coisa, observava Lucas. As plantas tão grandes e vivas! Elas sabem o que as espera no inverno? Ou sabem que há o verão seguinte?
Logo após a curva da estrada via-se uma estalagem de madeira, elegante e confortável, onde alguns cavalos já estavam alojados e o som de riso e conversas saía do interior. Já que não estava apressado ou tinha um itinerário certo, Lucas abandonou suas conjecturas sobre a dificuldade dos homens em abandonar e entrou no estabelecimento.
Lá dentro era fresco e agradável. Lucas rapidamente escolheu uma mesa e dedicou-se a uma de suas atividades favoritas, observar pessoas. Esquecido momentaneamente de suas tristezas, ele olhava em volta com curiosidade.
Um senhor idoso, magro e amargo, gritava com seu mordomo. Na mesa ao lado, duas damas italianas à passeio eram atendidas pessoalmente pelo estalajadeiro. No balcão, sentavam-se alguns homens, provavelmente florentinos, descansando e conversando. Viu de relance também um espanhol vestido belamente com um colete verde, que saiu para um dos quartos logo que Lucas começou a prestar atenção.
Então ouviu-se um ruído de fora e um grupo de cinco rapazes entrou na estalagem. Eram jovens e conversavam, animados por alguma disputa intelectual. Lucas observou-os com interesse de sua mesa no canto. O estalajadeiro logo atendeu o grupo e deixou-os sentados em uma mesa próxima, da qual Lucas poderia ouvir claramente sua conversa.
Quatro dos jovens estavam muito empenhados em preparativos, arrumando o almoço, examinando os quartos, vendo se os cavalos estavam em ordem. Já o quinto era silencioso e sentou-se logo, como se esperasse que os outros terminassem as tarefas. De algum modo, Lucas pensou, este quinto jovem parecia ser o centro gravitacional ao redor do qual o grupo girava. Estavam ali por sua causa.
Então começaram a conversar, discutindo questões que para Lucas não despertavam o menor interesse, mas sim diziam respeito ao amor e a um reino distante, do qual ele meramente ouvira falar.
O quinto jovem estava em silêncio. Comeu devagar, ouvindo os seus companheiros sem falar uma palavra. Terminada a refeição ele se levantou e disse devagar, sob o olhar dos outros:
- Então tenho uma história para contar.
E Lucas prestou enorme atenção, pois adorava mais do que tudo ouvir histórias. Seu antigo amigo, fora um excelente narrador, e haviam passado várias noites juntos, inventando histórias agradáveis de se ouvir e de se contar. O que não era fácil, pois como foi dito, Lucas havia lido demais quando era jovem e tinha a alma envelhecida por tudo o que passara através dos livros. O que significava que era um crítico severo e que não suportava histórias mal contadas ou mal estruturadas. Por isso prestou muita atenção quando o jovem levantou-se da cadeira e anunciou uma história. Lucas não tinha idéia se ele se revelaria um bom contador de histórias ou não, mas ao menos o jovem tinha uma noção do ritual necessário. Havia ficado em silêncio o jantar inteiro e só agora falava. Ainda por cima estava de pé.
Os outros rapazes ofereceram-no uma cadeira solicitamente, mas ele recusou.
- Será curta, acrescentou.
Os rapazes olhavam-no sorridentes. Lucas acreditou cada vez mais que eles eram apenas servidores e que o jovem de pé era o verdadeiro protagonista daquela viagem.
-
Terminada a história, Lucas sorriu e voltou os olhos para seu prato, para que não percebessem que se apaixonara pela história contada. O protagonista parecia-se muito com seu antigo amigo, agora perdido, que pensou que desmoronaria de tristeza ali mesmo. O jovem contara-a com delicadeza, evitando as expressões chulas e comuns que poderiam estragar a narrativa sublime, escondida no meio da sordidez como uma flor que nasce em meio ao estábulo.
Sentindo cada vez mais aumentar o vazio em seu peito, Lucas foi deitar-se. Alugou um quarto e passou o resto da tarde ora olhando pela janela, ora deitado na cama. Lá fora o dia esquentara tanto que era impossível permanecer no sol. As plantas quase se faziam ouvir crescendo.
Quando enfim a noite caiu, resolveu que não podia mais ficar ali dentro e desceu para o salão central. Encontrou ali o mesmo grupo de cinco jovens rapazes, sentados em um banco no jardim da estalagem, em silêncio. Aquele que contara a história estava apoiado contra o tronco de uma árvore e descascava uma laranja. Definitivamente havia algo nele que o diferenciava dos outros quatro, como se fosse um espírito da natureza apenas disfarçado de homem. Houvera uma força na história que contara à tarde - a mesma força que fez Lucas se entristecer ao obrigá-lo a se lembrar do passado - que sugeria que este mesmo jovem poderia ter protagonizado o conto, ou vivido algo parecido.
Isso despertou em Lucas o desejo de saber seu segredo, desvendar seu enigma. Compreender o que fazia dele uma pessoa diferente. Pois ele não parecia caber no grupo de jovens viajantes. Andava entre eles mas não era um deles.
Com o cair da noite e pôr-se da ceia, os quatro acompanhantes saíram de perto do jovem e deixaram-no sozinho. Lucas, que lera tantos romances de aventuras, sabia que este seria o melhor momento em que o protagonista poderia abordar aquele que mudaria seu futuro, ou pelo contrário, o momento no qual o estranho o interpelaria e pediria ajuda com seu destino. Lucas era normalmente um homem de fácil conversação. Sabia discorrer facilmente com desconhecidos e não tinha nenhum problema em ser simpático e despertar interesse. Porém, desta vez, a intensidade da solidão do jovem o fez recuar. Não conseguiu pensar em um motivo sequer de conversa, nem articular um simples olá. Envergonhado, permaneceu sentado em um banco do jardim, não muito próximo e nem muito distante.
Duas vezes se convenceu a levantar e parou no meio do movimento. Na terceira, tendo se levantado devagar e desistido no meio da tentativa, desequilibrou-se e acabou por deixar o quadro com o palacete pintado cair de seu bolso no chão. Enquanto se reerguia e reabaixava para pega-lo, sentiu um movimento no ar e percebeu que o jovem adiantara-se rapidamente.
- Bonito quadro, ele disse, levantando-o do chão. Se não me engano já vi este palacete antes. E curiosas as palavras, Continua Sem Acabar.
Lucas olhou de perto o viajante. Tinham quase a mesma idade. Mas que diferença fazia ter a alma jovem! Lucas pensou com inveja. Mesmo triste, o rapaz tinha os sentimentos de seu mundo, de seus amigos e não os sentimentos de um falso velho.
Lucas respira fundo. Não queria conversar com este jovem? Não estivera a tarde inteira pensando em modos de parabenizá-lo pela bela história? Não queria saber seu segredo? Por fim ele percebe a atenção que o rapaz dedica ao quadro e consegue falar, em um tom que parecia o de um homem que houvesse descoberto uma coisa fantástica.
- Já viu este lugar? Conhece este jardim, este palacete?, ele pergunta entusiasmado. Será que era isso que fazia dele uma pessoa diferente? ter encontrado a fonte das histórias? - Já os viu antes?
- Não, devo ter me enganado. Conheci um lugar muito parecido, mas olhando atentamente são muito diferentes. Estive em um palacete a um certo tempo atrás, lembro-me muito bem de seu jardim. Foi lá que ouvi a dura história de um rapaz que não queria nunca crescer. Mas isso já passou e foi em um lugar longe daqui. Agora nada disso importa para o senhor, porque não se trata do mesmo lugar.
- Andei procurando esse palacete minha vida toda, sem saber, disse Lucas, segurando o quadrinho nas mãos. Somente agora arrumei coragem para me aventurar fora de meu país. Larguei minha casa e minhas possessões no norte e estou aqui, a caminho de Florença, percorrendo suas oito estradas para ver se em alguma delas... Em alguma delas... - ficou em silêncio, sem saber como continuar. Nunca havia dito nada disso à ninguém, nunca havia pensado isso claramente também. Logo, acrescentou envergonhado pelo seu próprio entusiasmo:
- Sinto muito por isso, não deve ser da sua conta senhor.
O jovem sorriu um tanto amargamente.
- As pessoas se enganam fácil. - e, mudando de expressão - O senhor não gostaria de me contar sua história?
- É uma história triste demais. Ainda não terminei de sentí-la, dificilmente poderia contá-la bem.
- Você sente como um homem velho, que já conheceu o mundo e precisa descansar. Mas não parece ter a idade muito diferente da minha. Porque você pensa assim? Não tem vontade de experimentar? Eu mesma, quando era ainda mais jovem, costumava pensar que tudo valia a pena, mesmo os erros. Quem sabe eu não deveria ter escutado os conselhos dos mais velhos, já que agora sou somente uma viajante solitária que errou demais.
Então Lucas percebeu que estivera conversando este tempo todo com uma mulher. Então era isso, ele pensou. Por isso ela não se parecia com nenhum homem! Uma mulher que usava roupas de homens e podia caminhar entre eles com total desenvoltura. Envergonhado, ele percebeu que havia chamado-a de senhor.
Vexado, pediu desculpas pela confusão, chamando-se de estúpido. Ela respondeu que não fora culpa dele. Se andava assim era em parte para disfarçar, então seu erro seria desculpável e em parte para libertar-se, e neste caso ela teria preferido que ele nunca percebesse, pois temia que ele a tratasse como uma dama comum, entediante e frívola.
- Sinto muito, pediu Lucas. Mesmo tendo observado-a contar a história durante o almoço não me dei conta de que se tratava de uma moça. E eu que me pensava um homem atento aos detalhes!
Ela riu.
- Eu mesma já fui enganada várias vezes e por muito tempo. Minha educação me ensinou a desconfiar dos homens perfeitos, que não temem nada e que juram a eternidade. Mas nem mesmo eu fui capaz de resistir por muito tempo. Logo a mentira me alcançou e me pregou uma peça amarga.
Lucas baixou os olhos. Olhou para o quadro em suas mãos e para a moça de roupas escuras, agora enxergando-a completamente diferente, como se uma chave houvesse sido virada no mundo, modificando sua visão.
- Você esteve me ouvindo, durante o almoço, enquanto contava a minha história?
- Sim. E devo dizer que me entristeci muito. Sua história me fez lembrar de uma importante pessoa que perdi não faz muito tempo. Ele sempre dizia que uma boa história deve provocar os melhores sentimentos, pois para ele haviam diferenças fundamentais entre os sentimentos. Havia a boa felicidade e a estúpida. A deliciosa tristeza e a tristeza devastadora. O cansaço de um dia bem vivido e o cansaço de um dia derrotado. As histórias, quaisquer que fossem os temas, deveriam sempre nos inspirar os melhores lados de todos os sentimentos, mesmo o terror e a raiva que, de vez em quanto, é bom sentir.
- Ele está muito certo, a viajante disse sorrindo. Concordo plenamente com a pessoa que lhe disse isso. Estou certa que se tratava de um excelente contador de histórias. E o senhor? Não gosta de contar?
- Não, sinto muito. Prefiro muito mais ouví-las, disse Lucas. Mas em compensação, me tornei, por assim dizer, um especialista em ouvir histórias.
A jovem olhou-o com os olhos bem abertos e sérios.
- O senhor então me faria um favor?
Lucas acenou com a cabeça. Sentia-se encurralado por um grande felino, e que não teria nenhuma saída senão obedecer. Porém, obedeceria com a mais alegre e contente servidão.
- Eu mesma sou uma contadora de histórias experimental, a moça disse devagar, olhando para as exuberantes plantas do jardim. Estou ainda aprendendo a fazê-lo, por isso preciso de sua opinião como ouvidor profissional para saber como estou me saindo. Queria que ouvisse a história de minha vida e depois me dissesse o que você pensa dela. Geralmente os bons ouvidores sabem como uma história irá terminar pelo modo como ela começa, e sabem o que o herói deve fazer antes mesmo do mago ensinar.
Lucas concordou com a cabeça. Talvez por isso se sentisse tão velho, tão experimentado. Parecia que ele conhecia todas as histórias do mundo, e eram poucas as que lhe davam genuíno prazer.
- Eu precisava de sua ajuda para saber como minha história irá terminar, a jovem disse. Por favor, se você pudesse, se ao menos tentasse, talvez poderia adivinhar qual caminho eu devo seguir agora. Pois tem algo muito importante que eu procuro, e não sei onde está.
Lucas sabia. Inconscientemente percebera durante a história que ela contara no almoço que havia algo faltando à esta jovem. Agora tudo ficara um pouco mais claro.
Sentaram-se juntos em um dos bancos do jardim enquanto o anoitecer trazia um vento fresco e agradável. Estavam escondidos pelas plantas e pareciam velhos amigos trocando confidências antigas. Ela respirou muito e profundamente antes de começar. Lucas desejava ajudá-la do fundo de seu ser.
- Sou uma viajante solitária agora. Tenho vários companheiros de viagem que me alegram e falam do mundo com embriaguez. Estamos nesta estrada porque procuro algo... bem, não o procuramos todos?
- Mas talvez este não seja o melhor modo de começar. Não vou falar disso agora, prefiro falar de como começou. De quem eu era antes de me transformar sucessivamente em diversas coisas diferentes. Antes eu não era assim. Eu era...
Lucas apurou seu ouvido e ouviu com todo o interesse a história da jovem:
- Muito tempo atrás, num reino muito, muito distante, vivia uma linda princesa, tão bela quanto os raios dourados do sol nascente, ou quanto as flores noturnas, ou quanto as rosas recém desabrochadas cobertas de orvalho no início da primavera...
domingo, novembro 23, 2008
terça-feira, novembro 18, 2008
Excertos
Cymbeline
William Shakespeare
Fear no more the lightning flash,
Nor th' all-dreaded thunder-stone;
Fear not slander, censure rash;
Thou hast finished joy and moan.
All lovers young, all lovers must
Consign to thee and come to dust.
Kubla Khan
S.T. Coleridge
A damsel with a dulcimer
In a vision once I saw:
It was an Abyssinian maid,
And on her dulcimet she played,
Singing of Mount Abora.
Could I revive within me
Her symphony and song,
To such a deep delight 'twould win me,
That with music loud and long,
I would built that dome in air,
That sunny dome! Those caves of ice!
And all who heard should see them there,
And all should cry, Beware! Beware!
His flashing eyes, his floating hair!
Weave a circle round him thrice,
And close your eyes with holy dread,
For he on honey-dew hath fed,
And drunk the milk of Paradise.
Tyger Tyger (first version)
William Blake
Burnt in distant deeps or skies
The cruel fire of thine eyes
Could heart descend or wings aspire
What the hand dare seize the fire
And what shoulder & what art
Could twist the sinews of thy heart
And when thy heart began to beat
What dread hand & what dread feet
Could fetch it from the furnace deep
And thy horrid ribs dare steep
In the well of sanguine woe
In what clay & in what mould
Were thy eyes of fury roll'd
Tyger Tyger burning bright
In the forests of the night
What imortal hand or eye
Dare frame thy fearfull symmetry
William Shakespeare
Fear no more the lightning flash,
Nor th' all-dreaded thunder-stone;
Fear not slander, censure rash;
Thou hast finished joy and moan.
All lovers young, all lovers must
Consign to thee and come to dust.
Kubla Khan
S.T. Coleridge
A damsel with a dulcimer
In a vision once I saw:
It was an Abyssinian maid,
And on her dulcimet she played,
Singing of Mount Abora.
Could I revive within me
Her symphony and song,
To such a deep delight 'twould win me,
That with music loud and long,
I would built that dome in air,
That sunny dome! Those caves of ice!
And all who heard should see them there,
And all should cry, Beware! Beware!
His flashing eyes, his floating hair!
Weave a circle round him thrice,
And close your eyes with holy dread,
For he on honey-dew hath fed,
And drunk the milk of Paradise.
Tyger Tyger (first version)
William Blake
Burnt in distant deeps or skies
The cruel fire of thine eyes
Could heart descend or wings aspire
What the hand dare seize the fire
And what shoulder & what art
Could twist the sinews of thy heart
And when thy heart began to beat
What dread hand & what dread feet
Could fetch it from the furnace deep
And thy horrid ribs dare steep
In the well of sanguine woe
In what clay & in what mould
Were thy eyes of fury roll'd
Tyger Tyger burning bright
In the forests of the night
What imortal hand or eye
Dare frame thy fearfull symmetry
sábado, novembro 15, 2008
Diário
Um dia bonito, como se vê raramente em São Paulo. Nuvens enormes flutuam no céu e o ar é quente e agradável.
Uma visita ao museu, com a família. Um encontro com um tia - palavra vaga que serve para explicar uma relação familiar indistinta - que diz uma coisa muito gostosa:
- Queria que seu avô estivesse aqui, tinha muita estima por ele, era um homem fantástico. Gostaria mesmo que ele tivesse vindo ver a exposição.
- Sim, eu entendo...
- Ah, mas você veio! Então está tudo certo.
Nuvens tão grandes e macias, como nenhum artista conseguiria pintar. Um dia quente e feliz, desses que a cidade oferece muito pouco.
Uma visita ao museu, com a família. Um encontro com um tia - palavra vaga que serve para explicar uma relação familiar indistinta - que diz uma coisa muito gostosa:
- Queria que seu avô estivesse aqui, tinha muita estima por ele, era um homem fantástico. Gostaria mesmo que ele tivesse vindo ver a exposição.
- Sim, eu entendo...
- Ah, mas você veio! Então está tudo certo.
Nuvens tão grandes e macias, como nenhum artista conseguiria pintar. Um dia quente e feliz, desses que a cidade oferece muito pouco.
terça-feira, novembro 11, 2008
Chegou a Hora de Explicar
Está terminado um ciclo de contos. Vou explicar seus nomes.
Um dia o Artur me deu um CD chamado Voices of Forgotten Worlds. São músicas tadicionais e nativas do mundo todo. Desde uma canção de festa náhuatl, uma música ritual ainu ou ainda vozes da polinésia cantando para se entreterem. O título dos últimos contos são na verdades nomes de músicas destes CD. Não sei em que língua estão; são de qualquer lugar no mundo. Escolhi aquelas que tem nomes em inglês entre parêntesis, para servirem como tema e inspiração para histórias. Então vão em frente! Eu coloquei um marcador, basta ler as histórias, brincar de imaginar, ter vontade de conhecer canções que são cantadas por pessoas tão diferentes.
São músicas boas, se bem que às vezes escapam de nossa concepção musical. Afinal, nem todas as canções serviam para entreter; algumas tinham significados muito sérios. Outras, claro, parecem só um cara desafinado batendo em duas madeiras.
Para terminar (leiam, tem um mistério resolvido aqui também) a letra de uma música escocêsa, que não tem nada a ver com as anteriores.
Fisherman´s Song - silly wizard
By the storm-torn shoreline a woman is standing
The spray strung like jewels in her hair
And the sea tore the rocks near the desolate landing
as though it had known she stood there.
For she had come down to condemn that wild ocean
for the murderous loss of her man,
His boat sailed out on Wednesday morning
And it's feared it's gone down with all hands.
Oh and white were the wave-caps
And wild was their parting
So fierce is the warring of love,
But she prayed to the gods
Both of men and of sailors
Not to cast their cruel nets o'er her love.
There's a school on the hill
Where the songs of dead fathers
Are led toward tempests and gales,
Where their God-given wings
Are clipped close to their bodies,
And their eyes are bound-'round with ships' sails.
What force leads a man
To a life filled with danger
High on seas or a mile underground?
It's when need is his master
And poverty's no stranger,
And there's no other work to be found.
Um dia o Artur me deu um CD chamado Voices of Forgotten Worlds. São músicas tadicionais e nativas do mundo todo. Desde uma canção de festa náhuatl, uma música ritual ainu ou ainda vozes da polinésia cantando para se entreterem. O título dos últimos contos são na verdades nomes de músicas destes CD. Não sei em que língua estão; são de qualquer lugar no mundo. Escolhi aquelas que tem nomes em inglês entre parêntesis, para servirem como tema e inspiração para histórias. Então vão em frente! Eu coloquei um marcador, basta ler as histórias, brincar de imaginar, ter vontade de conhecer canções que são cantadas por pessoas tão diferentes.
São músicas boas, se bem que às vezes escapam de nossa concepção musical. Afinal, nem todas as canções serviam para entreter; algumas tinham significados muito sérios. Outras, claro, parecem só um cara desafinado batendo em duas madeiras.
Para terminar (leiam, tem um mistério resolvido aqui também) a letra de uma música escocêsa, que não tem nada a ver com as anteriores.
Fisherman´s Song - silly wizard
By the storm-torn shoreline a woman is standing
The spray strung like jewels in her hair
And the sea tore the rocks near the desolate landing
as though it had known she stood there.
For she had come down to condemn that wild ocean
for the murderous loss of her man,
His boat sailed out on Wednesday morning
And it's feared it's gone down with all hands.
Oh and white were the wave-caps
And wild was their parting
So fierce is the warring of love,
But she prayed to the gods
Both of men and of sailors
Not to cast their cruel nets o'er her love.
There's a school on the hill
Where the songs of dead fathers
Are led toward tempests and gales,
Where their God-given wings
Are clipped close to their bodies,
And their eyes are bound-'round with ships' sails.
What force leads a man
To a life filled with danger
High on seas or a mile underground?
It's when need is his master
And poverty's no stranger,
And there's no other work to be found.
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Voices of Forgotten Worlds
Sote Tulifurahia (?)
Mentira sempre chorava quando era hora de partir.
E ai-ai-ai! - Como chorava esta menina!
- Está triste por que? Perguntávamos. Por que esse choro?
- Não é choro, ela respondia. É chuva!
Então é chuva! E ríamos, prontos para tocar o violão. Quando nos distraíamos, ela saía para falar de mim para suas amigas:
- Meu tio não passa de um mentiroso, ela dizia.
Mas será???
Puxa, mas eu diria de outro modo:
- Meu tio é um grande mentiroso!
- Meu tio tem treinado à perfeição a excelsa arte de falar o que a verdade esqueceu.
- Meu tio sabe tudo! Até aquilo que não aconteceu!
- Meu tio... ora, nem me faça começar! Senão são histórias que não acabam mais. Sabia que ele já foi pra China? Até pra lá sim! E no caminho ele passou pelo Pólo Sul, para dar carona para um cientista perdido. E porque não? Muito longe? Mas ele estava à bordo do navio mais rápido do mundo! Nunca ouviu falar no Azul? Tão bonito, tão bonito... Mas o tio saberá descrevê-lo melhor; peça que ele te conta sobre o mastro, tão firme e tão alto quanto uma sequóia, ou sobre as velas, cheias de furos porque os pássaros passavam reto, achando que era só mais uma parte do céu, de tão grandes que eram. E lá na China o que ele fez? Ora, ele pegou uma estrada para a Índia! Claro que seria mais fácil ir direto para lá, mas que graça teria? E na Índia o que ele fez? Foi ouvir um homem cantar na Caxemira para chamar os anjos. Claro que isso existe! Meu tio viu pessoalmente, de primeira mão, esse acontecimento fantástico, ficou fascinado, fala sobre isso até hoje. Se ele chegou a ver um anjo? Pergunte a ele, é uma de suas histórias favoritas. O que ele fez no caminho? Ora no caminho ele descobriu e perseguiu um grupo de mascarados que raptavam crianças nas aldeias. Ou será que isso foi no Peru? Pouco importa mesmo, como todas as histórias do tio, essa também aconteceu em todo lugar. O que importa é que ele encontrou-as todas, as crianças raptadas. Sabe onde estavam? Atrás das máscaras! Eram os mascarados as próprias crianças, treinadas e crescidas do outro lado que raptavam seus antigos parentes. Terrível, eu sei, mas quer saber mais? Ele encontrou um homem ainda mais perverso nas suas viagens. Um homem que botava fogo nas aldeias por onde passava. Dormia por um dia e no dia seguinte, quando acordava, deitava fogo em tudo e chegava a matar algumas pessoas que tentavam apagar as chamas. Quando conheceu esse homem detestável meu tio resolveu ir embora o mais rápido possível e pegar a estrada no sentido contrário ao que ele seguiria, só para ter certeza de que não se cruzariam mais. E sabe o que ele encontrou? Dois caçadores, um adulto e um garoto, no rastro daquele homem havia dias! Estavam determinados, porcurando o que puseram na cabeça de encontrar. Sim, existem homens que não desistem, que são tenazes em procurar as coisas mais difíceis possíveis. Se meu tio procurava alguma coisa também? Bom, pudera, com tantas andanças pelo mundo ele devia estar mesmo a procurar alguma coisa. E, se não me engano, eu sei o que é. A única história que o deixava triste é falar do dia em que ele foi àquela ilha cujo nome eu esqueci, no arquipélago tal. Ele falou de uma viagem de canoa e de uma cabana que conheceu, mas nunca entendemos porque ele foi tão distante para conhecer apenas uma cabana. Seria um interesse pela arquitetura nativa? Seria alguma vaidade passageira? Seria o que ele tanto procurava com todas as andanças? Sim, acho curioso como uma pessoa como o tio não consiga ficar quieta, está sempre viajando, arrumando confusão, parece que tem uma mala de motivos à mão! Não pára nunca. Mas isto é de agora também... Minha mãe conta como antes era difícil tirá-lo da cama para fazer alguma coisa. Doente? Que nada, preguiça mesmo! Eu ouvi minha mãe dizer que chegou um momento em que tiveram que ir todos os parentes para convencê-lo a sair da cama. Mas ó, cá entre nós... acho que era uma garota, isso sim. Não diga que fui eu quem falei, o tio pode ser um pouco sensível às vezes, não quer espalhar para todo mundo que uma bela espanhola partiu seu coração quando era muito jovem. Acho que era por isso que ele nunca saia da cama. E agora, olhe só! Não fica mais quieto. Se é verdade tudo isso? Ah, não sei; se você pensar bem meu tio não passa de um mentiroso, um gato ladrão, uma raposa, um disfarçado, um sem vergonha de um fingido. Sabia mentir mesmo quando falava a verdade. E até sabia usar a verdade para mentir para ele! Por isso aqui em casa a gente não dá muita fé não. Ouve as histórias sempre com um sorrisinho, sabe? acreditando e não acreditando, ouvindo e não ouvindo. Mas no fundo, e se contar isso eu estou acabada, segredo total!, é o seu fim se espalhar isso: No fundo, estou feliz demais de ouví-lo mentir! Estou chovendo pelos olhos de alegria por saber que ainda se contam histórias no mundo.
E ai-ai-ai! - Como chorava esta menina!
- Está triste por que? Perguntávamos. Por que esse choro?
- Não é choro, ela respondia. É chuva!
Então é chuva! E ríamos, prontos para tocar o violão. Quando nos distraíamos, ela saía para falar de mim para suas amigas:
- Meu tio não passa de um mentiroso, ela dizia.
Mas será???
Puxa, mas eu diria de outro modo:
- Meu tio é um grande mentiroso!
- Meu tio tem treinado à perfeição a excelsa arte de falar o que a verdade esqueceu.
- Meu tio sabe tudo! Até aquilo que não aconteceu!
- Meu tio... ora, nem me faça começar! Senão são histórias que não acabam mais. Sabia que ele já foi pra China? Até pra lá sim! E no caminho ele passou pelo Pólo Sul, para dar carona para um cientista perdido. E porque não? Muito longe? Mas ele estava à bordo do navio mais rápido do mundo! Nunca ouviu falar no Azul? Tão bonito, tão bonito... Mas o tio saberá descrevê-lo melhor; peça que ele te conta sobre o mastro, tão firme e tão alto quanto uma sequóia, ou sobre as velas, cheias de furos porque os pássaros passavam reto, achando que era só mais uma parte do céu, de tão grandes que eram. E lá na China o que ele fez? Ora, ele pegou uma estrada para a Índia! Claro que seria mais fácil ir direto para lá, mas que graça teria? E na Índia o que ele fez? Foi ouvir um homem cantar na Caxemira para chamar os anjos. Claro que isso existe! Meu tio viu pessoalmente, de primeira mão, esse acontecimento fantástico, ficou fascinado, fala sobre isso até hoje. Se ele chegou a ver um anjo? Pergunte a ele, é uma de suas histórias favoritas. O que ele fez no caminho? Ora no caminho ele descobriu e perseguiu um grupo de mascarados que raptavam crianças nas aldeias. Ou será que isso foi no Peru? Pouco importa mesmo, como todas as histórias do tio, essa também aconteceu em todo lugar. O que importa é que ele encontrou-as todas, as crianças raptadas. Sabe onde estavam? Atrás das máscaras! Eram os mascarados as próprias crianças, treinadas e crescidas do outro lado que raptavam seus antigos parentes. Terrível, eu sei, mas quer saber mais? Ele encontrou um homem ainda mais perverso nas suas viagens. Um homem que botava fogo nas aldeias por onde passava. Dormia por um dia e no dia seguinte, quando acordava, deitava fogo em tudo e chegava a matar algumas pessoas que tentavam apagar as chamas. Quando conheceu esse homem detestável meu tio resolveu ir embora o mais rápido possível e pegar a estrada no sentido contrário ao que ele seguiria, só para ter certeza de que não se cruzariam mais. E sabe o que ele encontrou? Dois caçadores, um adulto e um garoto, no rastro daquele homem havia dias! Estavam determinados, porcurando o que puseram na cabeça de encontrar. Sim, existem homens que não desistem, que são tenazes em procurar as coisas mais difíceis possíveis. Se meu tio procurava alguma coisa também? Bom, pudera, com tantas andanças pelo mundo ele devia estar mesmo a procurar alguma coisa. E, se não me engano, eu sei o que é. A única história que o deixava triste é falar do dia em que ele foi àquela ilha cujo nome eu esqueci, no arquipélago tal. Ele falou de uma viagem de canoa e de uma cabana que conheceu, mas nunca entendemos porque ele foi tão distante para conhecer apenas uma cabana. Seria um interesse pela arquitetura nativa? Seria alguma vaidade passageira? Seria o que ele tanto procurava com todas as andanças? Sim, acho curioso como uma pessoa como o tio não consiga ficar quieta, está sempre viajando, arrumando confusão, parece que tem uma mala de motivos à mão! Não pára nunca. Mas isto é de agora também... Minha mãe conta como antes era difícil tirá-lo da cama para fazer alguma coisa. Doente? Que nada, preguiça mesmo! Eu ouvi minha mãe dizer que chegou um momento em que tiveram que ir todos os parentes para convencê-lo a sair da cama. Mas ó, cá entre nós... acho que era uma garota, isso sim. Não diga que fui eu quem falei, o tio pode ser um pouco sensível às vezes, não quer espalhar para todo mundo que uma bela espanhola partiu seu coração quando era muito jovem. Acho que era por isso que ele nunca saia da cama. E agora, olhe só! Não fica mais quieto. Se é verdade tudo isso? Ah, não sei; se você pensar bem meu tio não passa de um mentiroso, um gato ladrão, uma raposa, um disfarçado, um sem vergonha de um fingido. Sabia mentir mesmo quando falava a verdade. E até sabia usar a verdade para mentir para ele! Por isso aqui em casa a gente não dá muita fé não. Ouve as histórias sempre com um sorrisinho, sabe? acreditando e não acreditando, ouvindo e não ouvindo. Mas no fundo, e se contar isso eu estou acabada, segredo total!, é o seu fim se espalhar isso: No fundo, estou feliz demais de ouví-lo mentir! Estou chovendo pelos olhos de alegria por saber que ainda se contam histórias no mundo.
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Ghungsgot Thonpo (the high sky)
Na Caxemira, é assim que chamam os anjos.
Um violão e um pouco de mingau, é tudo o que basta. Os anjos não resistem e descem à terra para cantar um pouco, e se se tem sorte e paciência pode-se ouví-los cantar nas manhãs claras em que tudo parece flutuar.
E algum som mais alto do que um sussurro, têm-se esta impressão, irá desfazer tudo. Por isso as notas do violão têm de ser humildes e plácidas, mas não lentas.
Alguns homens sabem chamar os anjos e à eles dá-se o nome de dançarinos. Dizem que os dançarinos são essas pessoas especiais que nunca mentiram na vida. Só assim podem chamar uma criatura tão pura com música.
Da última vez em que estive na Caxemira, muitos anos depois da guerra e da fúria, vi um dos últimos dançarinos chamar um anjo. Era uma manhã clara, em que a chuva tinha limpado a atmosfera e tudo parecia brilhar de novo. As núvens escuras, o céu azul o quase arco-íris aparecendo. Ele tocava o violão, o prato de mingau raso no chão.
Ela usava branco. Cantava e isso bastava.
Ouvíamos seu vestido bem branco - como era branco aquele som! Seus dedos finos se desfaziam como água de um riacho, seu cabelo era a luz do rouxinol; e seu rosto era esguio, a boca bem aberta, a voz celeste.
Não podíamos parar de tocar de modo algum, a música a mantinha aqui, o violão era o fino fio dourado que nos prendia juntos. Um anjo na terra e dois homens encantados.
A Arte do contato entre essas duas esferas vem de muito tempo atrás. E começa com o rei de Chu, um dos únicos reis do mundo que nunca mentiu. Tão bom ele era que teve que enfrentar sozinho o próprio exército.
E derrotou-os. Derrotou todos os soldados naquele dia, pois conhecia cada homem, cada armadura e cada corredor ou passagem secreta de sua fortaleza.
Nunca um homem sentira tanta solidão quanto o rei de Chu naquele dia.
No ápice de seu desespero, quando o pobre rei perdera qualquer esperança e já era tentado pelo rio caudaloso e branco que rugia ali perto, as nuvens se abriram no céu. Só o suficiente para passar uma brecha de luz.
Ali, ao lado do rio que mais parecia feito de leite do que de água, o rei de Chu se tornou o primeiro dançarino, ao ouvir a voz de um anjo cantar a canção capaz de unir os dois mundos. O dos homens, imperfeito; e o dos anjos.
Por que os céus o escolheram para ouvir aquela canção naquele dia ele nunca soube. Abandonou o que sobrara de suas posses, o que não era muito. Ali, nas margens do rio de leite e da fortaleza destruída, uma mensagem lhe foi transmitida. E ele sentia que era seu dever transmití-la aos que pudessem aprender.
O dançarino de Chu construiu um violão de madeira e crina e tocou a canção que ouvira. Ao seu lado, um prato de mingau como oferenda; a única comida que encontraria em um raio de quilômetros. O anjo que apareceu para ele naquele dia foi o primeiro a responder ao chamado de um dançarino, e tinha pés de dois, flutuava como sal e também cantava iluminadamente. Seu rosto era desejo, sua boca era redenção. Começava a tradição dos dançarinos com a fluidez de um corpo de luz e a certeza de uma andorinha voando.
Perguntei ao anjo que vímos naquele dia, no vale da Caxemira:
- O que é Verdade?
E ela continuou a cantar. De algum modo, aquela resposta tinha toda razão.
Um violão e um pouco de mingau, é tudo o que basta. Os anjos não resistem e descem à terra para cantar um pouco, e se se tem sorte e paciência pode-se ouví-los cantar nas manhãs claras em que tudo parece flutuar.
E algum som mais alto do que um sussurro, têm-se esta impressão, irá desfazer tudo. Por isso as notas do violão têm de ser humildes e plácidas, mas não lentas.
Alguns homens sabem chamar os anjos e à eles dá-se o nome de dançarinos. Dizem que os dançarinos são essas pessoas especiais que nunca mentiram na vida. Só assim podem chamar uma criatura tão pura com música.
Da última vez em que estive na Caxemira, muitos anos depois da guerra e da fúria, vi um dos últimos dançarinos chamar um anjo. Era uma manhã clara, em que a chuva tinha limpado a atmosfera e tudo parecia brilhar de novo. As núvens escuras, o céu azul o quase arco-íris aparecendo. Ele tocava o violão, o prato de mingau raso no chão.
Ela usava branco. Cantava e isso bastava.
Ouvíamos seu vestido bem branco - como era branco aquele som! Seus dedos finos se desfaziam como água de um riacho, seu cabelo era a luz do rouxinol; e seu rosto era esguio, a boca bem aberta, a voz celeste.
Não podíamos parar de tocar de modo algum, a música a mantinha aqui, o violão era o fino fio dourado que nos prendia juntos. Um anjo na terra e dois homens encantados.
A Arte do contato entre essas duas esferas vem de muito tempo atrás. E começa com o rei de Chu, um dos únicos reis do mundo que nunca mentiu. Tão bom ele era que teve que enfrentar sozinho o próprio exército.
E derrotou-os. Derrotou todos os soldados naquele dia, pois conhecia cada homem, cada armadura e cada corredor ou passagem secreta de sua fortaleza.
Nunca um homem sentira tanta solidão quanto o rei de Chu naquele dia.
No ápice de seu desespero, quando o pobre rei perdera qualquer esperança e já era tentado pelo rio caudaloso e branco que rugia ali perto, as nuvens se abriram no céu. Só o suficiente para passar uma brecha de luz.
Ali, ao lado do rio que mais parecia feito de leite do que de água, o rei de Chu se tornou o primeiro dançarino, ao ouvir a voz de um anjo cantar a canção capaz de unir os dois mundos. O dos homens, imperfeito; e o dos anjos.
Por que os céus o escolheram para ouvir aquela canção naquele dia ele nunca soube. Abandonou o que sobrara de suas posses, o que não era muito. Ali, nas margens do rio de leite e da fortaleza destruída, uma mensagem lhe foi transmitida. E ele sentia que era seu dever transmití-la aos que pudessem aprender.
O dançarino de Chu construiu um violão de madeira e crina e tocou a canção que ouvira. Ao seu lado, um prato de mingau como oferenda; a única comida que encontraria em um raio de quilômetros. O anjo que apareceu para ele naquele dia foi o primeiro a responder ao chamado de um dançarino, e tinha pés de dois, flutuava como sal e também cantava iluminadamente. Seu rosto era desejo, sua boca era redenção. Começava a tradição dos dançarinos com a fluidez de um corpo de luz e a certeza de uma andorinha voando.
Perguntei ao anjo que vímos naquele dia, no vale da Caxemira:
- O que é Verdade?
E ela continuou a cantar. De algum modo, aquela resposta tinha toda razão.
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domingo, novembro 09, 2008
Bisitaita (song of consolation)
Todos os parentes formam uma roda ao redor de sua cama. A tia fala:
- Mas você deve ir ao casamento.
E sim, ela canta ao falar.
- Sim, é seu dever, você precisa se lembrar do seu lugar nesta comunidade, falam os outros parentes. E eles falam tudo em coro.
- Ou senão ela ficará tão triste!, faz a tia
- Vai ficar arrasada, despedaçada, desgraçada!, faz o coro.
Tia. Coro. Tia. Coro. Ela passava a idéia geral e eles dramatizavam.
- Será ruim para a família!
- Vamos cair em desgraça, ninguém mais vai querer falar conosco!
- A noive pediu explicitamente sua presença.
- Ela considerá absolutamente necessário que você vá!
Agora eles olham para você. Todos os parentes enfileirados observam por sobre os ombros atarracados da tia. Qual será sua resposta?
"eu não posso ir" soava sua voz débil e infeliz.
- Como você não pode ir?
- Tem pernas, tem braços, tem cabeça! Não tem é razão de perder um evento destes!
- Acha que é tudo uma brincadeira?
- Acha que somos bobos, que somos enganados, que vamos deixar você estragar tudo sem motivo?
Ah não, você pensa. Tem motivo sim.
- Você deve ir. grita a tia, levantando os braços dramáticamente.
- Você deve ir. gritam os seus parentes, batendo contra o peito, o rosto, as pernas, fingindo que choram da desgraça, que tudo acabou.
Sua alma esmigalhada, sua vergonha exposta. Por que a noiva, de todas as pessoas, queria que você fosse ao casamento dela, ainda mais depois de você ter deixado bem claro que esse é o pior acontecimento, passado e futuro, de sua vida, que de agora em diante não tinha a menor pretensão de ser algo melhor do que meramente infeliz.
Ah, mas a tia...
- Só te fará bem se for.
- Não pode ao menos dar um motivo sequer para não ir, vejam que impertinência!
- Levante-se dessa cama.
- Saia daí que o quarto já está escuro, está fedido e bagunçado e não aguentamos mais ter um preguiçoso em casa, um belo dum faz-nada imbecil que só nos dá trabalho!
- Ouviu-nos, não ouviu? fala a tia.
- Ouviu muito bem, que estamos morrendo de preocupação e quase que temos um ataque de nervos pensando no seu bem e você que não sai daí só nos preocupa demais!
- Olhe que há coisas piores para se acontecer, diz a tia.
- Enchente, furacão, falta de colheita, incêndio, filho que não vai no casamento, guerra civil, assassinato, tanta coisa ruim, tanta tragédia da qual fomos salvos!
- Muito piores que um coração partido.
- Muito piores!
- Então se levante, diz a tia e os parentes começam a rodar ao redor de sua cama, falando todos juntos e sem pausas.
- O que você pensa, estamos preocupados, não importa a moça, você precisa ir, se ele ao menos fosse mais velho, tudo será resolvido, em poucos instantes tudo se acabará, construímos dedicadamente, virada, rompante, desastre, megera debilitada, começam as brigas, onde ele vai, será que ele escolhe, o que podemos fazer, vamos deixá-lo, não podemos deixá-lo, tudo o que acontece é.
Você está no meio do furacão familiar que não o deixa pensar. Todos os parentes olham para você e sem entenderem nada da situação podem falar os comentários mais destruídores possíveis.
- E na dor você levanta, fala a tia.
- E na dor você levanta.
Naquele dia você continuou e foi ao casamento.
- Mas você deve ir ao casamento.
E sim, ela canta ao falar.
- Sim, é seu dever, você precisa se lembrar do seu lugar nesta comunidade, falam os outros parentes. E eles falam tudo em coro.
- Ou senão ela ficará tão triste!, faz a tia
- Vai ficar arrasada, despedaçada, desgraçada!, faz o coro.
Tia. Coro. Tia. Coro. Ela passava a idéia geral e eles dramatizavam.
- Será ruim para a família!
- Vamos cair em desgraça, ninguém mais vai querer falar conosco!
- A noive pediu explicitamente sua presença.
- Ela considerá absolutamente necessário que você vá!
Agora eles olham para você. Todos os parentes enfileirados observam por sobre os ombros atarracados da tia. Qual será sua resposta?
"eu não posso ir" soava sua voz débil e infeliz.
- Como você não pode ir?
- Tem pernas, tem braços, tem cabeça! Não tem é razão de perder um evento destes!
- Acha que é tudo uma brincadeira?
- Acha que somos bobos, que somos enganados, que vamos deixar você estragar tudo sem motivo?
Ah não, você pensa. Tem motivo sim.
- Você deve ir. grita a tia, levantando os braços dramáticamente.
- Você deve ir. gritam os seus parentes, batendo contra o peito, o rosto, as pernas, fingindo que choram da desgraça, que tudo acabou.
Sua alma esmigalhada, sua vergonha exposta. Por que a noiva, de todas as pessoas, queria que você fosse ao casamento dela, ainda mais depois de você ter deixado bem claro que esse é o pior acontecimento, passado e futuro, de sua vida, que de agora em diante não tinha a menor pretensão de ser algo melhor do que meramente infeliz.
Ah, mas a tia...
- Só te fará bem se for.
- Não pode ao menos dar um motivo sequer para não ir, vejam que impertinência!
- Levante-se dessa cama.
- Saia daí que o quarto já está escuro, está fedido e bagunçado e não aguentamos mais ter um preguiçoso em casa, um belo dum faz-nada imbecil que só nos dá trabalho!
- Ouviu-nos, não ouviu? fala a tia.
- Ouviu muito bem, que estamos morrendo de preocupação e quase que temos um ataque de nervos pensando no seu bem e você que não sai daí só nos preocupa demais!
- Olhe que há coisas piores para se acontecer, diz a tia.
- Enchente, furacão, falta de colheita, incêndio, filho que não vai no casamento, guerra civil, assassinato, tanta coisa ruim, tanta tragédia da qual fomos salvos!
- Muito piores que um coração partido.
- Muito piores!
- Então se levante, diz a tia e os parentes começam a rodar ao redor de sua cama, falando todos juntos e sem pausas.
- O que você pensa, estamos preocupados, não importa a moça, você precisa ir, se ele ao menos fosse mais velho, tudo será resolvido, em poucos instantes tudo se acabará, construímos dedicadamente, virada, rompante, desastre, megera debilitada, começam as brigas, onde ele vai, será que ele escolhe, o que podemos fazer, vamos deixá-lo, não podemos deixá-lo, tudo o que acontece é.
Você está no meio do furacão familiar que não o deixa pensar. Todos os parentes olham para você e sem entenderem nada da situação podem falar os comentários mais destruídores possíveis.
- E na dor você levanta, fala a tia.
- E na dor você levanta.
Naquele dia você continuou e foi ao casamento.
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sábado, novembro 08, 2008
Mbumbusa (warrior's cry)
Eles caminhavam escondidos pela sombra larga da árvore napal. O homem estica o dedo e o garoto rapidamente entende o que ele quer dizer. Ali dorme uma família de leopardos, por sobre os galhos da árvore. Vamos dar a volta.
Eles caminham sobre as folhas secas em perfeito silêncio, pois fazem três dias que estão juntos fora de casa, dormindo onde podem, comendo o que encontram, e caçando. Também fazem três dias que se conhecem.
- E se ele sair da floresta?, pergunta o garoto enquanto se arrumam para dormir sob os galhos de uma outra árvore napal. Não vamos conseguir seguir os rastros para dentro do deserto.
O homem deu de ombros e fechou os olhos. Quando acontecer, quando acontecer, ele parecia dizer. Para que se preocupar agora? Estamos seguindo nossa caça, não estamos?
Dormiram pouco. Estavam se acostumando nestes dias a dormirem apenas algumas poucas horas. Todo o tempo que dispunham era necessário.
Durante o dia, o homem metia o nariz no chão e ia seguindo. Ali, via uma folha amassada. Aqui, uma rocha movida. Só podia ser o rastro da caça que perseguiam.
Não está longe, não está longe, o garoto lia em suas costas curvadas. Mas temos que correr.
Dentro da selva abafada e úmida haviam várias distrações para o garoto enquanto ele esperava o homem decifrar as pistas. Às vezes ele pensava em como seria difícil a vida deste homem; em outras se distraía com uma borboleta. Não podemos culpá-lo, ainda era muito jovem.
Uma certa rotina de perseguidores se instalou. Acordavam logo para aproveitar toda a luz que podiam, comiam pouco e rapidamente: não havia tempo para caçar outra coisa que não sua presa. Logo estavam dentro da natureza, acostumados com seus sons e suas figuras. Caminhavam rápido. E em silêncio completo. Quando o homem olhava para trás, para o garoto que o seguia, seus olhos pareciam dizer Está indo muito bem. Parece até que nasceu para ser caçador.
Até que a perseguição os levou para o limite da floresta.
Exatamente como temiam, os rastros entravam no grande deserto rochoso.
O homem hesitou por um instante e logo abaixou-se e começou a procurar na areia algum sinal de passagem. Mas era difícil, muito mais difícil do que até então.
Porém, para quem seguira sua caça a vida inteira, esta não seria a hora de desistir. Os passos do homem se aceleraram para dentro do desolado. O garoto, atrás, mal acompanhava os saltos que ele dava pelas rochas. Mas podia ler claramente a excitação em seu rosto que dizia Vamos, talvez ele esteja logo ali, atrás daquelas rochas!
As duas mãos se moveram até os arcos pendurados nas cinturas. Estariam prontos?
Mas, por mais que corressem, não encontraram ninguém além dos promontórios rochosos. Exaustos, continuaram seguindo, pois nunca se sabe se é no próximo que encontraremos o que buscamos.
Até que o homem caiu no chão e disse que não aguentaria mais continuar. Teriam que dormir ali mesmo, desanimados e frustrados. Montaram acampamento e o garoto ficou de guarda, para o caso de chacais curiosos aparecerem.
No dia seguinte, conversaram. Estranhamente não conversavam desde que haviam se encontrado e decidido unirem-se, há apenas quatro dias atrás.
Você tem certeza de que continuar é a melhor decisão para si? parece perguntar o homem com seu rosto tenso e marcado.
- Sim, eu vou com você até o fim, diz o garoto. Eu aguento, posso caçar por dias sem me cansar.
O homem tem um sorriso amargo que parece dizer E por anos? E por anos então? Conseguirá continuar firme tendo abandonado tudo menos sua caçada?
- Ele queimou minha aldeia e matou meu pai. Não há nada mais importante para mim do que matá-lo.
Agora é o garoto que encara o homem. Ele não sabe o que aconteceu a este homem há tantos anos atrás que ainda perdura na forma de vingança. Não perguntara na noite em que se encontraram e se uniram para perseguir o assassino. Naquela noite, muito aconteceu. Atrás do rastro de fogo que o assassino deixou para trás veio um viajante, um caçador na procura de sua presa esguia.
- É fácil segui-lo, na verdade. fala o homem com uma voz clara e limpa que o garoto nunca escutara antes. Seu séquito e seus incêndios denunciam-no facilmente. Porém, ele sempre está um passo à frente. Ele sabe se esconder, mas logo fica inquieto e levanta outra chama para me chamar. De incêndio em incêndio eu vou, perseguindo-o.
- Você acha que ele sabe que você está atrás dele?
O homem sorri. Seu sorriso diz: Não sei.
Mas ele gosta de acreditar que sim. Gosta de pensar que toda presa pressente um caçador. Senão, que motivo ele teria para andar de um lado a outro, sem direção, como se fugisse?
Então continuaram a caminhar. Agora o sol era muito mais forte do que antes, dentro da floresta, e queima as costas dos dois. O garoto esté cansado mas continua a andar, decidido a mostrar que ainda pode prosseguir na caçada.
As mãos do homem estão áridas e secas, com grandes sulcos que parecem dizer Olhem. Passei por tanta coisa que nem posso me lembrar de tudo.
Chegam enfim a um entreposto. Dois homens da natureza em um elemento estranho. A cidade os incomoda com seus barulhos, movimentos súbitos e sujeira que escorre por toda a parte. Ainda assim o homem não perde seu rastro e continua a seguir sua presa mesmo que seja cada vez mais difícil. Os mercadores são deslumbrantes demais para o garoto, que se distraí diante de tantas cores. Não havia nada assim em sua aldeia, somente quando o fogo deitado pelo assassino de seu pai lambeu as casas e destruiu as árvores. Somente naquela noite escura houvera tanto barulho e confusão.
Quando olha para frente o homem desapareceu. Seu sumiço soa como uma advertência. Nenhum guerreiro pode perder de vista aquilo que segue. Nenhum guerreiro pode se permitir perder-se. Mas o garoto é jovem. Sabe andar em silência na floresta mas não sabe caminhar na cidade. Tem mêdo.
Porém o mêdo também é passageiro. Aos poucos ele percebe: há ali uma pegada na areia que só pode ser do homem. Um colar que se movimenta sozinho em uma banca é sinal de sua passagem. O cheiro dele ainda está no ar.
O garoto anda pelas ruas com mais desenvoltura, porque aprendeu a ler os sinais da floresta que permaneceram apesar das casas e dos homens. Ele vira a esquina à tempo de ver um pé sumir porta adentro. Segue-o para a sombra de uma casa a tempo de ver em longo corredor uma sombra que caminha. O garoto corre confiante e entra no pátio. As mulheres conversam enquanto costuram e ninguém parece se dar conta de sua presença.
Uma porta com uma certa poeira parece indicar o caminho. Foi ali que ele entrou? O garoto entra também e sobre uma longa escada, seus pés tropeçam um pouco, ainda não está acostumado. Chega lá em cima a tempo de ver uma porta se fechando. Abre-a e dá conta da situação em um instante.
Lá, sentado em uma cadeira, está o assassino de seu pai. Gordo, surpreso, vestido de branco com um pequeno fruto nas mãos, pronto para comer. Ao redor, duas mulheres de rosto branco próximas de uma bandeja dourada e o resto de seu séquito comem espalhados pelo quarto, iluminados pela forte luz do dia que entra da varanda e consegue pouco avanço sobre a penumbra da sala.
Nenhum sinal do homem por ali. O garoto pensa no arco que carrega na cintura. Será rápido o suficiente?
Eles caminham sobre as folhas secas em perfeito silêncio, pois fazem três dias que estão juntos fora de casa, dormindo onde podem, comendo o que encontram, e caçando. Também fazem três dias que se conhecem.
- E se ele sair da floresta?, pergunta o garoto enquanto se arrumam para dormir sob os galhos de uma outra árvore napal. Não vamos conseguir seguir os rastros para dentro do deserto.
O homem deu de ombros e fechou os olhos. Quando acontecer, quando acontecer, ele parecia dizer. Para que se preocupar agora? Estamos seguindo nossa caça, não estamos?
Dormiram pouco. Estavam se acostumando nestes dias a dormirem apenas algumas poucas horas. Todo o tempo que dispunham era necessário.
Durante o dia, o homem metia o nariz no chão e ia seguindo. Ali, via uma folha amassada. Aqui, uma rocha movida. Só podia ser o rastro da caça que perseguiam.
Não está longe, não está longe, o garoto lia em suas costas curvadas. Mas temos que correr.
Dentro da selva abafada e úmida haviam várias distrações para o garoto enquanto ele esperava o homem decifrar as pistas. Às vezes ele pensava em como seria difícil a vida deste homem; em outras se distraía com uma borboleta. Não podemos culpá-lo, ainda era muito jovem.
Uma certa rotina de perseguidores se instalou. Acordavam logo para aproveitar toda a luz que podiam, comiam pouco e rapidamente: não havia tempo para caçar outra coisa que não sua presa. Logo estavam dentro da natureza, acostumados com seus sons e suas figuras. Caminhavam rápido. E em silêncio completo. Quando o homem olhava para trás, para o garoto que o seguia, seus olhos pareciam dizer Está indo muito bem. Parece até que nasceu para ser caçador.
Até que a perseguição os levou para o limite da floresta.
Exatamente como temiam, os rastros entravam no grande deserto rochoso.
O homem hesitou por um instante e logo abaixou-se e começou a procurar na areia algum sinal de passagem. Mas era difícil, muito mais difícil do que até então.
Porém, para quem seguira sua caça a vida inteira, esta não seria a hora de desistir. Os passos do homem se aceleraram para dentro do desolado. O garoto, atrás, mal acompanhava os saltos que ele dava pelas rochas. Mas podia ler claramente a excitação em seu rosto que dizia Vamos, talvez ele esteja logo ali, atrás daquelas rochas!
As duas mãos se moveram até os arcos pendurados nas cinturas. Estariam prontos?
Mas, por mais que corressem, não encontraram ninguém além dos promontórios rochosos. Exaustos, continuaram seguindo, pois nunca se sabe se é no próximo que encontraremos o que buscamos.
Até que o homem caiu no chão e disse que não aguentaria mais continuar. Teriam que dormir ali mesmo, desanimados e frustrados. Montaram acampamento e o garoto ficou de guarda, para o caso de chacais curiosos aparecerem.
No dia seguinte, conversaram. Estranhamente não conversavam desde que haviam se encontrado e decidido unirem-se, há apenas quatro dias atrás.
Você tem certeza de que continuar é a melhor decisão para si? parece perguntar o homem com seu rosto tenso e marcado.
- Sim, eu vou com você até o fim, diz o garoto. Eu aguento, posso caçar por dias sem me cansar.
O homem tem um sorriso amargo que parece dizer E por anos? E por anos então? Conseguirá continuar firme tendo abandonado tudo menos sua caçada?
- Ele queimou minha aldeia e matou meu pai. Não há nada mais importante para mim do que matá-lo.
Agora é o garoto que encara o homem. Ele não sabe o que aconteceu a este homem há tantos anos atrás que ainda perdura na forma de vingança. Não perguntara na noite em que se encontraram e se uniram para perseguir o assassino. Naquela noite, muito aconteceu. Atrás do rastro de fogo que o assassino deixou para trás veio um viajante, um caçador na procura de sua presa esguia.
- É fácil segui-lo, na verdade. fala o homem com uma voz clara e limpa que o garoto nunca escutara antes. Seu séquito e seus incêndios denunciam-no facilmente. Porém, ele sempre está um passo à frente. Ele sabe se esconder, mas logo fica inquieto e levanta outra chama para me chamar. De incêndio em incêndio eu vou, perseguindo-o.
- Você acha que ele sabe que você está atrás dele?
O homem sorri. Seu sorriso diz: Não sei.
Mas ele gosta de acreditar que sim. Gosta de pensar que toda presa pressente um caçador. Senão, que motivo ele teria para andar de um lado a outro, sem direção, como se fugisse?
Então continuaram a caminhar. Agora o sol era muito mais forte do que antes, dentro da floresta, e queima as costas dos dois. O garoto esté cansado mas continua a andar, decidido a mostrar que ainda pode prosseguir na caçada.
As mãos do homem estão áridas e secas, com grandes sulcos que parecem dizer Olhem. Passei por tanta coisa que nem posso me lembrar de tudo.
Chegam enfim a um entreposto. Dois homens da natureza em um elemento estranho. A cidade os incomoda com seus barulhos, movimentos súbitos e sujeira que escorre por toda a parte. Ainda assim o homem não perde seu rastro e continua a seguir sua presa mesmo que seja cada vez mais difícil. Os mercadores são deslumbrantes demais para o garoto, que se distraí diante de tantas cores. Não havia nada assim em sua aldeia, somente quando o fogo deitado pelo assassino de seu pai lambeu as casas e destruiu as árvores. Somente naquela noite escura houvera tanto barulho e confusão.
Quando olha para frente o homem desapareceu. Seu sumiço soa como uma advertência. Nenhum guerreiro pode perder de vista aquilo que segue. Nenhum guerreiro pode se permitir perder-se. Mas o garoto é jovem. Sabe andar em silência na floresta mas não sabe caminhar na cidade. Tem mêdo.
Porém o mêdo também é passageiro. Aos poucos ele percebe: há ali uma pegada na areia que só pode ser do homem. Um colar que se movimenta sozinho em uma banca é sinal de sua passagem. O cheiro dele ainda está no ar.
O garoto anda pelas ruas com mais desenvoltura, porque aprendeu a ler os sinais da floresta que permaneceram apesar das casas e dos homens. Ele vira a esquina à tempo de ver um pé sumir porta adentro. Segue-o para a sombra de uma casa a tempo de ver em longo corredor uma sombra que caminha. O garoto corre confiante e entra no pátio. As mulheres conversam enquanto costuram e ninguém parece se dar conta de sua presença.
Uma porta com uma certa poeira parece indicar o caminho. Foi ali que ele entrou? O garoto entra também e sobre uma longa escada, seus pés tropeçam um pouco, ainda não está acostumado. Chega lá em cima a tempo de ver uma porta se fechando. Abre-a e dá conta da situação em um instante.
Lá, sentado em uma cadeira, está o assassino de seu pai. Gordo, surpreso, vestido de branco com um pequeno fruto nas mãos, pronto para comer. Ao redor, duas mulheres de rosto branco próximas de uma bandeja dourada e o resto de seu séquito comem espalhados pelo quarto, iluminados pela forte luz do dia que entra da varanda e consegue pouco avanço sobre a penumbra da sala.
Nenhum sinal do homem por ali. O garoto pensa no arco que carrega na cintura. Será rápido o suficiente?
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quinta-feira, novembro 06, 2008
Busigan (shame)
Caminhavam em uma longa fila, logo no amanhecer.
Alguns levavam vassouras, outros pequenas mudas de plantas, flautas e tambores, muita palha chacoalhava à medida que andavam e seus trajes coloridos se destacavam do verde da colina e da neblina branca do começo de cada dia.
Conversavam, riam.
Pequenas gotas de orvalho pingavam de suas roupas.
E, claro, não podíamos deixar de lado as máscaras que usavam e eram exuberantes, engraçadas, amedrontadoras, fantásticas; um grupo inteiro de mascarados avançava alegremente por uma pequena trilha na grama úmida.
Seguiam para onde?
Nesta montanha, neste caminho?
Aos poucos um vale aparece. Nas casas, tão simples, eles já são esperados.
Começam a caminhar cada vez mais rápido e adicionam brincadeiras aos seus passos, pulos, cambalhotas, acrobacias, tudo o que permitem suas fantasias feitas de palha seca. Para que saibam que chegaram, começam a cantar sua canção e à medida que vêem as crianças correrem aceleram os passos.
Os adultos fecham as portas, trancam as janelas.
Não dá certo: eles são fortes e abrem o que foi fechado.
Os máscarados entram na aldeia.
As crianças fogem chorando, mas não podem escapar. Ali uma garota de vestido verde cai no chão e é amparado por um homem de máscara de dragão que a coloca sobre o ombro esperneando e chorando e logo os dois somem na neblina.
O homem da máscara de dragão volta.
E apanha outra criança; logo a confusão se instala na aldeia, pois aqueles que não fugiram ontem à noite não têm mais tempo de fugir e nem para onde ir, é como se os músicos e acrobatas soubessem de todos os esconderijos e fossem muito mais fortes do que qualquer porta de madeira ou de pedra.
A confusão se instala, é palha e cor para todo o lado e uma música terrível e assombrada não pára de tocar, as velhas choram porque já viram aquilo uma vez e sabem que é tudo rápido e estão certas, já se vê que os mascarados começam a sumir.
Desaparecem dentro da neblina.
Junto com as crianças.
Os homens armados de facões e foices ainda tentam recuperar o orgulho perdido, mas vêm que será inútil o esforço desperdiçado e logo desistem e se unem ao choro das mulheres. Em volta, é visível o estado catastrófico da aldeia, pois basta uma olhada rápida para se ver que sumiram quase todas as crianças, duas ou três sobraram apenas.
É tudo rápido e fatal.
E acontecerá de novo na próxima geração.
Alguns levavam vassouras, outros pequenas mudas de plantas, flautas e tambores, muita palha chacoalhava à medida que andavam e seus trajes coloridos se destacavam do verde da colina e da neblina branca do começo de cada dia.
Conversavam, riam.
Pequenas gotas de orvalho pingavam de suas roupas.
E, claro, não podíamos deixar de lado as máscaras que usavam e eram exuberantes, engraçadas, amedrontadoras, fantásticas; um grupo inteiro de mascarados avançava alegremente por uma pequena trilha na grama úmida.
Seguiam para onde?
Nesta montanha, neste caminho?
Aos poucos um vale aparece. Nas casas, tão simples, eles já são esperados.
Começam a caminhar cada vez mais rápido e adicionam brincadeiras aos seus passos, pulos, cambalhotas, acrobacias, tudo o que permitem suas fantasias feitas de palha seca. Para que saibam que chegaram, começam a cantar sua canção e à medida que vêem as crianças correrem aceleram os passos.
Os adultos fecham as portas, trancam as janelas.
Não dá certo: eles são fortes e abrem o que foi fechado.
Os máscarados entram na aldeia.
As crianças fogem chorando, mas não podem escapar. Ali uma garota de vestido verde cai no chão e é amparado por um homem de máscara de dragão que a coloca sobre o ombro esperneando e chorando e logo os dois somem na neblina.
O homem da máscara de dragão volta.
E apanha outra criança; logo a confusão se instala na aldeia, pois aqueles que não fugiram ontem à noite não têm mais tempo de fugir e nem para onde ir, é como se os músicos e acrobatas soubessem de todos os esconderijos e fossem muito mais fortes do que qualquer porta de madeira ou de pedra.
A confusão se instala, é palha e cor para todo o lado e uma música terrível e assombrada não pára de tocar, as velhas choram porque já viram aquilo uma vez e sabem que é tudo rápido e estão certas, já se vê que os mascarados começam a sumir.
Desaparecem dentro da neblina.
Junto com as crianças.
Os homens armados de facões e foices ainda tentam recuperar o orgulho perdido, mas vêm que será inútil o esforço desperdiçado e logo desistem e se unem ao choro das mulheres. Em volta, é visível o estado catastrófico da aldeia, pois basta uma olhada rápida para se ver que sumiram quase todas as crianças, duas ou três sobraram apenas.
É tudo rápido e fatal.
E acontecerá de novo na próxima geração.
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Vinango (voyage by canoe)
Recebem-no com colares. E já pode sentir o sol sumir por trás das montanhas verdes da ilha. É tão curta a duração do dia nestas praias!, ele pensa.
Levam-no para a casa onde morou sua mãe. É aqui, aponta a matriarca, gorda e feliz. Está vendo?, naquele canto, foi ali que você nasceu.
Ele simplesmente acena com a cabeça. De repente sente que não pode mais ficar ali. Sai da casa rapidamente e volta para a praia.
Os remadores, que não o esperavam tão cedo, estão conversando e rindo. Estranham de vê-lo ali, mas fingem uma prontidão, estendendo os remos verticalmente.
Ali na praia ainda está sol, ele pensa. Mas percebemos claramente que são seus últimos raios, logo sumirá também, é uma despedida.
Um pouco distante, as mulheres cantam ao voltarem do campo de abacaxis, sem perceberem a agitação que começa a se formar na praia.
Ele pensa duas vezes antes de subir na canoa novamente.
Olha para a matriarca, que está assustada, para os homens da aldeia, curiosos. E então se despede com um aceno de cabeça.
Me perdoem, diz. Foi um erro ter vindo aqui.
Ainda com o colar florido pendurado no pescoço ele parte na canoa. No mar, o sol ainda está forte.
Porém, percebia-se que o homem havia cruzado sua linha de sombra.
Levam-no para a casa onde morou sua mãe. É aqui, aponta a matriarca, gorda e feliz. Está vendo?, naquele canto, foi ali que você nasceu.
Ele simplesmente acena com a cabeça. De repente sente que não pode mais ficar ali. Sai da casa rapidamente e volta para a praia.
Os remadores, que não o esperavam tão cedo, estão conversando e rindo. Estranham de vê-lo ali, mas fingem uma prontidão, estendendo os remos verticalmente.
Ali na praia ainda está sol, ele pensa. Mas percebemos claramente que são seus últimos raios, logo sumirá também, é uma despedida.
Um pouco distante, as mulheres cantam ao voltarem do campo de abacaxis, sem perceberem a agitação que começa a se formar na praia.
Ele pensa duas vezes antes de subir na canoa novamente.
Olha para a matriarca, que está assustada, para os homens da aldeia, curiosos. E então se despede com um aceno de cabeça.
Me perdoem, diz. Foi um erro ter vindo aqui.
Ainda com o colar florido pendurado no pescoço ele parte na canoa. No mar, o sol ainda está forte.
Porém, percebia-se que o homem havia cruzado sua linha de sombra.
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The Runners
When day is gone,
ere night is come.
The grasshoppers listen!
With hearts -
flickering and tumbling
- they come!
Running in the high grass
no breath, no thougth
Rushing hair,
floating clothe
"They are here, they are here!"
cry the cicadas.
In the grass, in the green,
As the dusk falls in.
The runners!
ere night is come.
The grasshoppers listen!
With hearts -
flickering and tumbling
- they come!
Running in the high grass
no breath, no thougth
Rushing hair,
floating clothe
"They are here, they are here!"
cry the cicadas.
In the grass, in the green,
As the dusk falls in.
The runners!
segunda-feira, novembro 03, 2008
O Palácio Oceânico Conta Duas Histórias
Quando começou a seca, ninguém esperava que ela durasse tanto. Todos olhavam para o horizonte e esperavam que a chuva viesse a qualquer momento. Somente quando oito meses se passaram sem que nenhuma gota caísse do céu os homens do entreposto começaram a se procupar. Da porta de seu estabelecimento, Hakim passava as tardes quentes e abafadas olhando para as montanhas. No ar quente, elas eram azuis.
Uma noite, sem poder dormir por causa do calor intenso, Hakim saiu de casa e caminhou pelo longo planalto desértico onde ficava o entreposto. Se afastou das habitações até que se encontrou no centro do vazio.
Nas montanhas, agora não tão distantes, pululavam chacais.
Hakim ficou olhando para as nuvens que flutuavam além do deserto. Era possível enxergá-las se movendo depressa, tão rápido quanto a fumaça que subia das fogueiras, tão roxa e escura que contrastava com a noite.
No centro das nuvens, Hakim olhou assustado, estava um palácio. Ele voava sereno e determinado. Luzes perfeitas piscavam diante de si.
Então, ele se sentiu puxado. Suavemente, como em um sonho, ele flutuou para cima e na direção das luzes. As estruturas espirais o engoliram suavemente e as portas do Palácio se fecharam. Hakim escutava o som sussurrado, como ondas do mar ao fundo ou o eco de uma concha escutado a uma certa distância.
As mãos de Hakim adquiriram um colorido pálido e seus passos tinham a cadência de um sonâmbulo. Lá, ele viu as Janelas.
Em uma delas, a primeira, podia enxergar o entreposto do deserto. A seca havia destruído quase tudo em volta.
Em outra janela, um urso que molhava as patas devagar na água fria de um rio.
Na seguinte, uma moça triste e entediada sentada na janela. Hakim podia ver mais que imagens, podia ver as histórias. Ele viu: ela perdera a si mesma. Uma moça que experimentara tudo e que não conseguia achar o que era o mais importante. Ele viu: cinco peixes mortos no aquário da casa. Ela ainda chorava, sem perceber. Ele viu: o brinco jogado na lama, perdido.
Haviam mais de trinta janelas, todas atarracadas e feitas do mesmo material metálico e insubstituível. Porém, era só uma que chamava Hakim. "Talvez seja por isso que estou aqui, ele pensou. Estou aqui para olhar por aquela janela.
Nesta, outra história assim:
"Uma libélula pousou em minha mão hoje. Havia somente água à nossa volta, então permiti que ela ficasse ali. Era a mão que haviam me dito para manter firme e segurando a corda sem soltar então considerei a libélula de uma gentileza tremenda. Para protegê-la, teria de manter a mão segura, e assim aprenderia à força a lição que manteria o barco firme.
Ela me fez companhia enquanto o céu escurecia à frente. Não se preocupe, conversávamos, a chuva traz vento, que traz movimento, que irá nos tirar daqui. Por isso não é absurdo estarmos rumando na direção da chuva, estamos apenas seguindo pelo caminho que pode ser seguido.
Segure firme - eu pedia"
E Hakim via: quem dera fosse capaz para os homens se comunicarem com os animais. Assim ela entenderia, assim ela saberia que não podia se mover, mesmo que toda a tormenta a assustasse. O homem no barco sentia que tudo ficaria bem.
E a janela mostrou:
"Mais tarde, a libélula pousaria em meu pé. Mas já era tarde.
Tudo havia sumido, engolido pelo escuro e pelas águas."
Apesar do clima árido, as montanhas eram azuis. Como se dissessem Olhem, apesar de tudo há esperança, as dificuldades podem ser contornadas.
Não estamos no inferno, apesar de tudo. Bastava a Hakim que olhasse para as montanhas para que se lembrasse disso.
Uma noite, sem poder dormir por causa do calor intenso, Hakim saiu de casa e caminhou pelo longo planalto desértico onde ficava o entreposto. Se afastou das habitações até que se encontrou no centro do vazio.
Nas montanhas, agora não tão distantes, pululavam chacais.
Hakim ficou olhando para as nuvens que flutuavam além do deserto. Era possível enxergá-las se movendo depressa, tão rápido quanto a fumaça que subia das fogueiras, tão roxa e escura que contrastava com a noite.
No centro das nuvens, Hakim olhou assustado, estava um palácio. Ele voava sereno e determinado. Luzes perfeitas piscavam diante de si.
Então, ele se sentiu puxado. Suavemente, como em um sonho, ele flutuou para cima e na direção das luzes. As estruturas espirais o engoliram suavemente e as portas do Palácio se fecharam. Hakim escutava o som sussurrado, como ondas do mar ao fundo ou o eco de uma concha escutado a uma certa distância.
As mãos de Hakim adquiriram um colorido pálido e seus passos tinham a cadência de um sonâmbulo. Lá, ele viu as Janelas.
Em uma delas, a primeira, podia enxergar o entreposto do deserto. A seca havia destruído quase tudo em volta.
Em outra janela, um urso que molhava as patas devagar na água fria de um rio.
Na seguinte, uma moça triste e entediada sentada na janela. Hakim podia ver mais que imagens, podia ver as histórias. Ele viu: ela perdera a si mesma. Uma moça que experimentara tudo e que não conseguia achar o que era o mais importante. Ele viu: cinco peixes mortos no aquário da casa. Ela ainda chorava, sem perceber. Ele viu: o brinco jogado na lama, perdido.
Haviam mais de trinta janelas, todas atarracadas e feitas do mesmo material metálico e insubstituível. Porém, era só uma que chamava Hakim. "Talvez seja por isso que estou aqui, ele pensou. Estou aqui para olhar por aquela janela.
Nesta, outra história assim:
"Uma libélula pousou em minha mão hoje. Havia somente água à nossa volta, então permiti que ela ficasse ali. Era a mão que haviam me dito para manter firme e segurando a corda sem soltar então considerei a libélula de uma gentileza tremenda. Para protegê-la, teria de manter a mão segura, e assim aprenderia à força a lição que manteria o barco firme.
Ela me fez companhia enquanto o céu escurecia à frente. Não se preocupe, conversávamos, a chuva traz vento, que traz movimento, que irá nos tirar daqui. Por isso não é absurdo estarmos rumando na direção da chuva, estamos apenas seguindo pelo caminho que pode ser seguido.
Segure firme - eu pedia"
E Hakim via: quem dera fosse capaz para os homens se comunicarem com os animais. Assim ela entenderia, assim ela saberia que não podia se mover, mesmo que toda a tormenta a assustasse. O homem no barco sentia que tudo ficaria bem.
E a janela mostrou:
"Mais tarde, a libélula pousaria em meu pé. Mas já era tarde.
Tudo havia sumido, engolido pelo escuro e pelas águas."
Apesar do clima árido, as montanhas eram azuis. Como se dissessem Olhem, apesar de tudo há esperança, as dificuldades podem ser contornadas.
Não estamos no inferno, apesar de tudo. Bastava a Hakim que olhasse para as montanhas para que se lembrasse disso.
sábado, novembro 01, 2008
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